terça-feira, 29 de dezembro de 2009

fuga

quando meus pais chegaram aqui no brasil, em mil novencentos e quarenta e nove, fugitivos de guerra, meu pai já possuía uma família grande aqui em são paulo. sua mãe, minha avó, tinha oito irmãos e todos já se encontravam aqui há bastante tempo. a origem de minha família no brasil remonta a mil novecentos e quatro, quando, ao deparar com uma noiva arranjada que era surda, muda e manca, o tio-avô de meu pai, lá na polônia, resolveu fugir para o local mais distante que podia imaginar: o brasil. e assim eu estou aqui, digitando coisas neste blog. graças à surda muda manca polonesa.

domingo, 27 de dezembro de 2009

sebo

existe um fotógrafo croata chamado eugen bavcar, que é cego. ficou cego aos poucos, quando criança, mas conseguiu continuar fotografando, com a ajuda de assistentes que verbalizam as imagens para ele. uma vez, em subotica, na sérvia, entrei num desses sebos antigos, cheio de livros amontoados, com um dono evidentemente muito mais interessado em ler do que em vender. entrei e perguntei a ele: você tem algum livro daquele fotógrafo cego? ele me respondeu: você é do monty python?

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

cachorro

o cachorro do goya virou protetor de tela do meu computador. veio lá da espanha, do século dezoito e veio dar aqui, na minha frente, olhando para aquele lugar onde talvez alguém o ajude, com o queixo apoiado sobre uma superfície que eu não sei adivinhar qual é, mas que o impede de saltar e que o faz olhar com mais curiosidade e carência ainda. eu não posso salvá-lo, cachorro, meu amigo, apesar de você estar tão perto de mim. te escolhi para me acompanhar aqui dentro porque também me sinto assim, tantas vezes, como você, olhando precariamente, por cima de um muro alto demais, atrás do qual alguém deveria vir me ajudar. esse alguém, agora, estranhamente, é você.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

trema

as tremas desaparecidas com o acordo ortográfico foram todas se esconder numa caverna. lá elas conversam: você era trema de quê? de gu ou de qu? de aguentar ou de sequela? você gosta dos pontos e vírgulas ou prefere os dois pontos? eu prefiro todas as pontuações em duplas. não gosto das marcações unitárias, como a vírgula e o ponto final. e assim elas passaram o ano falando e falando. agora, quando chegar dois mil e dez, elas combinaram de ir secretamente até as palavras de muitas pessoas legais e aparecer de surpresa, quando a pessoa menos estiver esperando. por isso, se no ano novo, você encontrar uma água com trema, não adianta tentar tirar. ela escolheu você. que em dois mil e dez todos encontrem palavras com tremas inesperadas. e não as tirem de lá.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

frase

vivo apenas aqui e ali numa palavrinha em cuja vogal, por exemplo, perco por um instante a minha cabeça inútil. a primeira e a última letra são princípio e fim de meu sentimento pisciforme. tem umas coisas que algumas pessoas dizem, como essa frase do kafka, que a gente pensa: que droga, era pra ter sido eu!

sábado, 19 de dezembro de 2009

teoria

contra a violência, tenho e pratico uma teoria que deve ser burra ou ingênua ou as duas coisas, mas que eu teimo em acreditar que é certeiramente subversiva. contra a violência, a atitude mais inteligente, civil e eficaz é se proteger cada vez menos. deixar as janelas do carro abertas, sorrir quando um lavador de pára-brisa se aproximar e deixá-lo fazer o seu trabalho, dar esmolas, ter um carro simples, não ter cadeados difíceis nem portões altos e sair às ruas sem medo. deixamos de ser alvo e passamos, ainda pensando de forma burra (e talvez até ignorante) a ser o mais próximos que podemos, companheiros uns dos outros. sempre disse isso aos meus alunos, pratico isso na vida e, por enquanto, não tenho por que me arrepender. talvez venha a pagar pela boca leviana, mas acho que não. e isso não é por algum tipo de arrogância assistencialista, não. é a mais pura vida, que, acredito, quanto mais inábil, mais chances tem de ser democrática.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

proparoxítona

minha mãe é meio húngara, meio iugoslava, porque a cidade em que ela nasceu fica na fronteira dos dois países e lá se falam as duas línguas: sérvio e húngaro. mesmo assim, tenho uma ligação bem mais forte com a hungria do que com a iugoslávia. talvez porque o guimarães rosa tenha dito que quem domina a língua húngara tem parentesco com o diabo e porque o seu mistério está no fato de ela ser toda proparoxítona e quase sem irmãs do mesmo tronco (afora o finlandês), eu sempre tenha sentido muita atração pela língua e, por extensão, pelo país, pela culinária, pelo povo. quando estive em budapeste, fascinada até pela feiúra aparente de pest (parecida com a de são paulo), entrava nas livrarias e perguntava: você tem algum livro sobre os mistérios da língua húngara? os vendedores, sem exceção, respondiam, entre bravos e assustados: mistério da língua húngara? qual mistério? eu dizia: mas é uma língua única na europa; não é eslava, nem indo-europeia. mas isso é mistério? eles falavam. o húngaro é muito parecido com o finlandês, totalmente normal. não existe mistério nenhum na nossa língua. é. eu ofendia os húngaros ao considerá-los misteriosos. aquele monte de obelixes andando lindos pelas ruas e falando proparoxítonas são normais. deve ser que nós, pobres paroxítonos, é que somos pobremente estranhos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

pera

nos casos de brigas leves, não há nada que uma frase como tira pra mim a casca em volta do pão não resolva. mas quando a questão é bem mais grave, densa e resistente, só há duas soluções: o tempo e a pergunta: vamos tomar um sorvete de chokissimo com pera na vipiteno?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

não

vi um urso de pelúcia largado sobre uma cômoda velha, dentro de um apartamento cansado, enquanto passava de carro pelo minhocão. vi quadros de algum artesão frustrado, pendurados do lado de fora do apartamento, ainda passando pelo minhocão. vi a maria bethania cantando lindamente, falando de amor, festa e devoção. vi meus alunos falando do mito de perséfone e de evita perón, dos buddenbrook, do sagrado e do profano. vi uma nutricionista falando de alimentação enteral e parenteral e vi como ela cuida dos seus pacientes e se preocupa para que eles fiquem bons. mas não vi a nina, não vi a nina e só sei isso.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

porcelana

bruce chatwin, um escritor historiador, no livro utz, fala de um colecionador tcheco de raras porcelanas da alemanha. o colecionador percebe nas porcelanas simulacros de golems, figuras feitas de argila que podem adquirir vida, ou que praticamente ja possuem vida, dependendo somente de algumas palavras secretas para que isso ocorra. os colecionadores sempre escondem aspectos estranhos da personalidade humana. parece que guardam em si segredos e idiossincrasias que o restante da humanidade tem vergonha ou dificuldade de conhecer. tenho uma curiosidade amorosa por eles e tambem adoro colecionar. coleciono ninhos, pequenos objetos, cacarecos, brinquedos. parece que, colecionando, guardamos algo repetido mas irrepetivel da passagem do tempo, que fica mergulhado ali, no objeto, retirado da realidade, do seu contexto, morto, mas por isso mesmo secretamente disposto a uma nova forma de vida, cujo nome talvez somente o colecionador saiba.

domingo, 6 de dezembro de 2009

nina

sacrificamos e cremamos a nina, nosso anjo, nossa gata. gosto da palavra sacrifício e da cremação, porque me lembra que, no sacrifício, os animais eram entregues aos deuses, que se alimentam do perfume exalado na fumaça. que a fumaça da nina alimente o ar e os deuses, como ela nos alimentou de alegria e coragem durante toda sua vida.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

orelha

depois de ter entrevistado o philip roth e ele ter feito com que eu me sentisse como uma adolescente lobotomizada e fã da victoria beckham, pela fleugma com que ele respondia a tudo e pela certeza incontornável dos seus nãos, fiquei vagando por nova iorque como uma zumbi boba. primeiro, entrei na takashimaia, uma loja de departamentos japonesa caríssima e com as coisas absolutamente mais lindas que eu já vi, fui ao salão de chá e pedi um chá com biscoitos de cinquenta dólares. tomei o chá como uma lady, mas não foi o suficiente para me recuperar. saí de lá e, subitamente, encontrei a solução. entrei numa loja da disney e comprei um dumbo. pronto, me curei da fúria incansável da genialidade e me amparei nas orelhas burras de um velho amigo legal.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

amor

como é possível ainda encontrar definições inesperadas do amor, depois de quatro mil anos de literatura? o david grossman me (nos) presenteou com isso: alguém com quem estar calado.

domingo, 29 de novembro de 2009

palito

olha, vou dizer algo muito sério. restaurante, pra mim, pra ser bom mesmo, só tendo palito de dente. se não, não presta.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

ocorrência

hoje telefonei da estrada e a leda me disse que o david foi assistir aula de literatura junto com ela na usp. foram juntos ver a aula do maravilhoso professor alcides villaça sobre o conto singular ocorrência, do machado de assis. ela perguntou se ele queria conhecer como era uma aula na usp, ele quis. pegaram o ônibus juntos, foram, assistiram e ele adorou. eu disse: leda, mas como você conseguiu? ela disse: mãe, a gente tá brother. eu chorei. como uma ausência da mãe faz bem.




quinta-feira, 26 de novembro de 2009

três

ontem almocei em fartura, onde só existe um restaurante. comi carne de panela com mandioquinha e cenoura cozida, salada e tomei um refrigerante. estava tão bom, que repeti. nem tinha prestado atenção no preço. na hora de pagar, me aproximei do caixa e perguntei quanto era. três. o moço falou três. paguei três. três.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

interior

estou dando aulas de literatura nas bibliotecas do interior de são paulo. hoje, entre os alunos, havia uma menina autista. não tinha percebido nada, foram as outras que me avisaram. nós já tínhamos conversado e ela me disse que tinha prestado vestibular para veterinária, não tinha passado e tinha ficado muito triste. precisava fazer quarenta e cinco pontos e tinha feito vinte e nove. depois que me avisaram de seu autismo, fiquei reparando num sorriso fixo em seu rosto, na voz que parecia artificial, como se ela fizesse força para falar. pedi que todos escrevessem uma crônica. quando chegou a vez dela, ela disse: vou falar sobre fronteiras. e começou: quero atravessar fronteiras, lutar com dragões, ultrapassr os caminhos, ir para onde ninguém foi. fiquei olhando. em que fronteira eu estou, estava, para dizer alguma coisa a ela? espantosamente, foi ela que me colocou do lado de lá de seu país de sorriso fixo e foi a minha fala que não soava mais de verdade.

domingo, 22 de novembro de 2009

problema

algumas coisas um pouco difíceis estão acontecendo e fico pensando em como lidar com elas. acho que um ponto bom para enfrentar certas complicações é um ponto médio entre a aceitação do problema - ele existe -, e uma certa resistência - é preciso agir. ficar no nó entre essas duas forças, a que permanece e a que briga, sem acatar nem a inércia nem o combate remido. não digo que saiba fazer isso, mas estou tentando e só a tentativa já me acalma. carregar o peso e a leveza no corpo e na alma.

sábado, 21 de novembro de 2009

ausência

a marina bedran está fazendo seu mestrado sobre a correspondência entre henry james e robert louis stevenson, o primeiro na inglaterra e o segundo no taiti. uma parte dessa correspondência está publicada na última edição da revista serrote. em uma das cartas, james diz que suas saudades do amigo são tamanhas , que ele já não consegue mais acreditar nem em sua existência física e pede, implora a ele que volte. no finalzinho da carta, diz assim: estou com uma asa dolorida, uma geografia inadequada e uma esperança imorredoura. a esperança imorredoura a gente tolera. mas a asa dolorida e a geografia inadequada são a melhor descrição de ausência que já vi.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

ônibus

quando minha avó chegou ao brasil, em mil novecentos e quarenta e nove, tinha muito pouco estudo e vinha de uma situação de pobreza e sofrimento extremos. foi morar na rua josé paulino, num apartamento emprestado, onde havia um corredor estreito e comprido, em que ela estendia peças de tecido, cortava e costurava roupas para crianças, junto com minha mãe. depois ela punha as roupas numa maleta e saía para vender: na rua, em feiras, em lojas. uma vez, quando ela ainda não falava nada de português (como quase não falou pelo resto da vida), ela perguntou que ônibus deveria tomar para ir até a avenida são joão. ela falava sao ioao, porque o j, em iugoslavo, tem som de i. depois de muita gesticulação, disseram para ela tomar o ônibus número trinta e dois. ela ficou parada no ponto, esperou passarem trinta e dois ônibus e entrou. puxa, como os enganos são bonitos.

sábado, 14 de novembro de 2009

ente

se categorias como o ser e o ente realmente existirem, elas não estão coincidindo nesses últimos dias.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

irmã

eu estava deitada, meio doente, na cama da minha irmã mais velha. acho que eu tinha uns quatro ou cinco anos. ela estava pronta para sair. passou pelo quarto e disse: tchau, no. eu olhei para ela, triste e pedi: té, fica, vai. ela disse: está bem. e ficou. sou profundamente agradecida a ela por isso até hoje. às vezes é tão bom ficar.

domingo, 8 de novembro de 2009

acidente

e o que parecia impossível aconteceu. ontem achei que a vida era um acidente burro: minha gata tinha desaparecido. fiquei impotente como um vaso vazio. ela está muito doente e então ficamos sabendo que gatos muito doentes desaparecem, não vão muito longe e ficam escondidos até morrer. fui em todas as casas vizinhas, vasculhei quintais, acordei de madrugada pra chamá-la pela rua, chorei e me consolei dizendo que seria melhor para ela e para mim, apesar de saber que não era verdade. e hoje, no meio de um macarrão triste, ela reapareceu, como se nunca tivesse sumido. fiquei feliz como se ela nem estivesse doente; como se tivesse acabado de nascer. e a vida, de acidente burro, virou um acidente bom. um erro certo. além disso, fui ao aniversário surpresa de uma das pessoas mais legais que existem, o mauricio pereira. e pronto. que bom que o mundo é circular.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

vida

esses dias estive com uma pessoa muito velha, mas com ótima saúde e aparência. o problema é que é uma pessoa extremamente vaidosa, com toques racistas, traços de ódio pela família que aparecem quase involuntariamente e um vasto leque de preconceitos e idiossincrasias bobas. enquanto conversava com ele, tive uma visão horrível, que me assusta até agora: pensei que ele era idêntico a uma barata que sofreu um pisão e que agoniza histericamente pela vida, girando em falso e gratuitamente. a única diferença entre ele e a barata era que essa pessoa era dotada de voz e algum tipo de pensamento. penso que, para que não nos tornemos baratas desesperadas, é preciso aprender sempre e cada vez mais a desapegar-se de si e da vida. acredito que seja a única coisa que realmente nos separa das baratas. só desapegando-se da vida, poderemos viver humanamente, sem lutarmos doidamente contra a morte.

domingo, 1 de novembro de 2009

lágrima

o oftalmologista disse que eu tenho síndrome da lágrima seca. pronto, ele sintetizou com um diagnóstico todos os meus problemas existenciais atuais. o seguro saúde cobriu a consulta e saiu infinitamente mais barato do que alguns anos de psicanálise para, provavelmente, chegar à mesma conclusão: choro e chego a ter síndrome (que é uma corrente simultânea de coisas). ou seja, todas coisas líquidas; mas algum equipamento interno de secagem enxuga tudo. para resolver o problema, mesmo que paliativamente, um colírio lubrificante, que produz lágrimas artificiais. bom, por enquanto, é tudo o que tenho.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

decote

de aniversário, dei uma blusa sem manga e uma camisa de seda para ela. a blusa combinava com os pespontos da camisa e tinha o decote atrás. ela disse que usaria o decote na frente, porque ninguém ia ver o lado de trás. falei para ela: mãe, você veste a camisa e, assim, como quem não quer nada, tira e dá uma viradinha para mostrar as costas. pedi para ela provar a roupa. ela provou e veio mostrar para todo mundo. ficaram lindas. pedi para ela dar a viradinha. ela deu um giro e tirou só um lado da camisa, deixando o ombro à mostra e exibindo parte das costas, cheias de sardas. ela mesma em seguida se envergonhou da própria desenvoltura e todos rimos juntos. tomara que minha memória possa para sempre guardar essa cena, que me fez tão bem.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

pomba

tenho uma gata muito doente e um cachorro epiléptico. sou completamente apaixonada pelos dois e sei que faz parte de uma espécie de moira da minha vida cuidar deles. aprendo muito com isso e só posso dizer que saí ganhando muito mais do que perdendo. aliás, não perdi nada mesmo. mas agora uma pomba começou a se considerar inquilina da minha casa e vem todo dia pousar na muretinha do lado de fora da cozinha, para roubar a ração do cachorro. sempre a mesma pomba. hoje, vi uma sombra pelo box do chuveiro e era ela lá, burra, acreditando que entraria sorrateira em casa. ontem um bem-te-vi bateu a cabeça no vidro da cozinha e ficou um tempo meio tonto, no quintal. gata doente, cachorro epiléptico e bem-te-vi tonto, tudo bem. mas pomba não.

sábado, 24 de outubro de 2009

rugas

parece que o ruim de envelhecer são as rugas. elas são ruins mesmo. preferiria não tê-las. mesmo assim, pensando à distância, elas têm alguma coisa de interessante: são como anotações em um livro. uma pessoa sem rugas é ilegível. mas, além disso, envelhecer tem tantas vantagens: é como se não fosse mais tão necessário ir em busca das coisas, internas ou externas. chegamos num meio do caminho, em que as coisas e você estão presentes, consumadas, razoavelmente compreendidas e agora só basta experimentá-las, até o ponto possível. não precisa ser até o fim, mas já se conhece o caminho e o começo. um certo caminho andado. é bom ver os filhos grandes, a mesa posta, os problemas menos graves e, às vezes, que a maior preocupação do dia seja onde é que fui colocar os óculos?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

pássaro

o zezinho é o jardineiro da escola onde eu trabalhava. conversando com ele, vi que ele gostava muito de passarinhos, como eu, embora eu não entenda nada sobre eles. num outro dia, apareceu no meu quintal um passarinho manco. guardei ele numa caixa, coloquei água numa tampinha de garrafa e espalhei farelo de pão. cobri com um cobertor e deixei ele lá uns três dias, até ele parecer mais animado. mas não voava. no quarto dia, resolvi levá-lo para o zezinho, porque achei que ele saberia cuidar melhor. o zezinho identificou o passarinho na hora: era uma coleirinha. depois de alguns dias, o zezinho me disse que a coleirinha tinha ficado boa, já tinha voado, e que ele tinha uma surpresa para mim. me levou até a pequena garagem onde ele guarda suas coisinhas e me deu uma escultura de passarinho. disse assim: eu fico olhando as árvores aqui da escola e vejo formas de pássaros nos galhos. daí eu só corto e pinto, porque o pássaro já estava lá. e foi assim. troquei um pássaro de verdade por outro, talvez mais de verdade ainda.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

casamento

estávamos eu e meu pai esperando o motorista chegar para nos levar ao meu casamento. fiquei me olhando no espelho e perguntei para ele: estou bonita? ele disse: um pouco gorda. não me lembro disso como um trauma; só acho muito engraçado e um pouco triste também. eu estava realmente um pouco gorda e meu pai também não devia estar muito contente. depois de vários anos escrevi um conto chamado um pouco gorda e até hoje sempre me acho um pouco gorda. bom, também não é tão grave assim.

sábado, 17 de outubro de 2009

coisas

essa é a centésima vez que escrevo aqui e meu desejo é que este blog continue a ser escrito com o espírito e a força do sem-querer, uma das melhores coisas da vida e uma das coisas que a faz ser bela, apesar de toda a chatice das coisas feitas de propósito.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

shampoo

estou fazendo uma tradução simultânea sobre uma nova marca de shampoo. enquanto aguardo a outra tradutora, estudo lukacs, para um curso que vou dar sobre teoria do romance. na sala em que estudo e leio sobre a decadência da objetividade redentora na direção de uma subjetividade perdida, os representantes da nova marca de shampoo falam que o comercial com a chuva não funciona muito bem para mulheres com cabelos ressecados. fico ali pensando que essa confusão e coincidência de registros tem algo de muito bom: é verdade, a subjetividade perdida está lá, no shampoo e na respectiva propaganda. mas, ao mesmo tempo, que chato seria se não existisse um shampoo para me salvar dela.

sábado, 10 de outubro de 2009

escolha

às vezes, percebo que, nas minhas escolhas, existe um componente suicida. me atiro nas coisas perigosamente, sem pensar, para depois descobrir que não deveria. como um exemplo pequeno: se estou dirigindo e falando ao celular, e dou de cara com um guarda de trânsito, ao invés de disfarçar o celular, eu o mostro com todo desprendimento. como um exemplo grande: aceitei uma proposta de trabalho absurda, mal paga e difícil, sem nem ao menos hesitar. faço coisas assim desde pequena. e mais, não me arrependo. esta forma miúda de suicídio me dá um estranho orgulho e me constitui. preciso disso para me sentir ativa e minimamente marginal. talvez não sirva para nada e até me faça um pouco mal, mas preciso sempre morrer um pouco para estar bem viva.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

lóbulo

no ginásio, o henrique e eu éramos os esquisitos. e gostávamos muito de ser assim, inclusive encenando esse papel com eloquência e exagero. o henrique bem mais do que eu. o clóvis era o professor de educação moral e cívica. ele era baixo, gordo e muito bonzinho. o henrique gostava de apertar o lóbulo da orelha dele, que era gordinho. na aula de religião judaica, estudamos a respeito de um rabino medieval que se chamava ibn shaprut. o henrique matava aula e passava em frente à janela da sala gritando: ibn, calibn! ibn, didn, cleibn, vafn, lero, lero! como é bom ser esquisito.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

mãe

quando eles eram pequenos, inventava várias personagens que eram as mães chatas. tinha a nordestina militante de esquerda, a super protetora excessivamente carinhosa, a opressora niilista, a deprimida negligente. eles me pediam: mãe, faz uma mãe chata! agora vão os dois viajar e ficar um ano fora do brasil. sinto calores fora de hora, às vezes um gosto amargo na boca, vontade de ir junto ou uma alegria ridícula porque eles vão ficar tão bem sozinhos. ensino os dois a fazer comidas, o melhor produto para limpar sujeira, peço para me contarem até sobre uma velhinha que eles vão encontrar numa esquina. pronto. virei uma mãe chata.

domingo, 4 de outubro de 2009

estatuto

guardo comigo alguns segredos completamente bobos, mas que faço questão de não compartilhar e que considero quase sagrados, talvez justamente por sua insignificância. cuido de alguns deles diariamente e sei que eles se tornaram meus companheiros. outros não. até esqueço que existem, mas eles caminham comigo. assim sendo, vou criar o primeiro artigo de um novo estatuto dos direitos ao avesso do cidadão: todas as pessoas, desde as crianças até os mais velhos, devem ter pleno direito à mentira e ao segredo. ninguém deve desvendá-los nem desmenti-los; quem transgredir este direito receberá a pena de ter que ouvir a verdade, somente a verdade, durante muitos anos seguidos.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

dança

estamos ensaiando a música ping-pong, do gilberto gil, na academia da claudia mello, para dançar no jardim da luz. somos cinquenta mulheres, baixas, altas, gordas, magras, mais velhas, mais jovens, todas juntas cantando yes-me-we, I and I. somos companheiras, comendo o mesmo pão, rindo juntas dos nossos erros, que são, no momento da dança, o que cada uma tem de melhor. somos lindas porque estamos juntas, porque somos eu e nós, eu e eu, porque cada uma é eu e, nessa hora, excepcionalmente, esse eu é imenso e nele cabem todas as mulheres do mundo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

dante

pensei numa versão pequeno-burguesa e contemporânea dos círculos do inferno de dante; já colecionei alguns: vários ônibus repletos de crianças se dirigindo simultaneamente ao parque da mônica. uma loja de enfeites de natal, em setembro, na rua estados unidos. uma loja chamada queen pet, cujo painel publicitário mostra um chiuauha cingido com uma coroa vermelha. por enquanto só tenho três, todos pertencentes à mesma categoria e colecionados em cerca de meia hora.

sábado, 26 de setembro de 2009

salmão

no livro ver:amor, de david grossman, a personagem empreende uma viagem marítima acompanhando um cardume de salmões. os salmões atravessam o mar contra as correntezas, enfrentam obstáculos, pulam por cachoeiras, para finalmente chegarem ao seu destino, desovarem e morrerem. a personagem se pergunta: por que será que eles fazem isso? mas depois conclui. os humanos, que vivem com cuidado e medo e que sempre fincam uma espécie de salto alto na terra para não escorregar, não vivem a vida, vivem a morte. os salmões não vivem para chegar em algum lugar, vivem só a vida, perigosa e imprevista. depois, chegam e morrem. afinal, já viveram. que salmões sabidos!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

areia

quando eu tinha uns sete anos, fui a um acampamento e fiquei impressionada porque conheci a areia movediça. era a terra que engolia as pessoas, o fundo do mundo chamando os humanos. um garoto havia caído nela e ficou afundado até os joelhos. vieram os monitores e o tiraram de lá. fiquei com medo e assustada por alguns anos. areia movediça era uma expressão proibida. uns dez anos mais tarde, conheci um garoto que viria a ser meu namorado e futuro marido. ao acaso, contei para ele a história da areia movediça. era ele. tinha sido ele o menino afundado na areia. o fundo do mundo tinha se revirado e agora mais uma vez eu era engolida por forças desconhecidas: o tempo, o acaso e alguma outra coisa que eu não sei nomear.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

pai

meu pai dizia que não suportava duas coisas em uma mulher: meia desfiada e calcanhar rachado. também dizia que o século vinte tinha três maldições: a pílula anticoncepcional, a televisão e a empregada doméstica. era fã do jânio e do fidel e só votava no lula. um de seus sonhos era ser guarda de trânsito; o outro, presidente da república. puxa, que homem legal, o meu pai.

domingo, 20 de setembro de 2009

tiramisu

subindo no elevador para a casa de minha mãe, ela carregava o tiramisu, que é meu carimbo culinário, com uma certa negligência. num determinado momento, a massa escorregou para um dos lados e quase transbordou. eu disse: olha, toma mais cuidado, por favor. e bufei. passaram uns dois segundos, ela se aproximou de mim e me deu um beijo carinhoso.puxa, naquela hora podia até jogar o tiramisu no chão,se quisesse.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

festa

quando eu ainda morava na rua correia dos santos, em frente ao colégio santa inês, cujo pátio eu ficava olhando durante horas, minha mãe me preparou uma festa de aniversário, à qual ninguém compareceu. ficamos eu e minha mãe olhando por aquela mesma janela, esperando alguém chegar e só posso imaginar que a tristeza dela deve ter sido ainda maior do que a minha. fui então, na mesma tarde, para a casa da reny, amiga bem mais rica do que eu, que morava num apartamento duplex na rua silva pinto. na casa dela havia várias amigas reunidas, todas de cochicho e sorrisinhos. o irmão mais velho da reny, charles, tinha um telefone com a forma do paul maccartney, se não me engano. num determinado momento, todas se juntaram no enorme banheiro, saíram e me disseram que eu deveria ir embora, porque elas iriam todas juntas para a casa de uma delas. insisti, disse que queria ir junto, mas elas faziam caretas e inventavam desculpas. fui embora, sabendo que era tudo mentira. se eu contasse essa história hoje para minha mãe, ela nunca acreditaria, porque ela sabe se esquecer do que não interessa. mas eu ainda vejo meu rosto e o dela colados contra a janela e o vapor que minha boca formou no vidro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

armas

david grossman é alguém que, como toda grande pessoa, é um acontecimento e uma experiência de ternura e sabedoria. diz que a literatura deve enfraquecer, e não fortalecer o mundo, porque assim as pessoas se desarmam e pessoas expostas são muito mais interessantes do que aquelas que se entrincheiram. o vocabulário bélico, é claro, não é casual e, em seu caso, é muito mais significativo. expor-se é duro, traz consequências difíceis e indesejadas, mas é a maior subversão.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

mauricio

o mauricio mogilnik foi o maior, o melhor, o mais saudoso e verdadeiro educador que já conheci. de longe melhor que paulo freire, sem sua afetação para o estrelato. era, talvez, a única pessoa, de quem se podia dizer que era bom o suficiente para ser modesto. mauricio, ontem ouvi várias vezes o seu nome durante uma premiação e chorei em todas elas. onde quer que você esteja, pó deitado, pó de estrelas ou conselheiro dos anjos, minha memória está sempre em você.

sábado, 12 de setembro de 2009

donas

na sala de espera do ginecologista: você tem babá? ah, não. prefiro não ter. não confio nelas. ah, eu tenho uma que está comigo há trinta e cinco anos, foi minha babá também. vem da bahia, as baianas são de confiança. mas então é diferente. essas que a gente pega aqui se metem em tudo, pensam que são donas da casa, ficam querendo mandar nas outras empregadas. é, aí não dá certo mesmo. e tem mais uma, elas ficam grávidas também. dá pra acreditar? têm a coragem de engravidar. não, donas, não dá pra acreditar. já sabia que a mediocridade burguesa era muito funda, mas quando a escuto assim, em estado bruto, na minha frente, ainda me dói no pé, no umbigo e no centro da alma.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

barquinho

o epicursimo é uma concepção atomista e materialista da natureza, que busca a indiferença diante da morte e uma ética que identifica o bem aos prazeres comedidos e espirituais que, por passarem pelo crivo da reflexão, seriam impermeáveis ao sofrimento incluído nas paixões humanas. mas eu conheço uma canção que é ainda superior ao pensamento epicurista, embora o contenha: row, row, row, my boat, gently down the stream; merrily, merrily, merrily, merrily; life is but a dream. a tradução literal é: rema, rema, rema meu barco; gentilmente pelo riacho; alegremente, alegremente, alegremente, alegremente; a vida não é mais do que um sonho. gosto especialmente da repetição quádrupla do alegremente e, em inglês, de life is but a dream, que é muito mais bonito do que a vida não é mais do que um sonho. como seria bom dizer, em português: a vida é mas um sonho. mas tudo bem.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

jardim

quando uma menina tão linda como ela fica triste, eu me lembro de uma canção antiga e canto pra ela: a menina mais linda do jardim, tem a trança, o sorriso e a boca mais bonitos do jardim; como ela pode ficar triste, se ela é a menina mais bonita do jardim?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

navajo

Que a sabedoria dos índios navajos esteja sempre comigo.

Feliz possa caminhar.
Feliz com abundantes nuvens negras possa caminhar.
Feliz com abundantes chuvas possa caminhar.
Feliz com abundantes plantas possa caminhar.
Feliz por uma senda de pólen possa caminhar.
Feliz possa caminhar.
Como aconteceu em dias distantes possa agora caminhar.
Que defronte de mim seja tudo belo.
Que atras de mim seja tudo belo.
Que debaixo de mim seja tudo belo.
Que por cima de mim seja tudo belo.
Que derredor de mim seja tudo belo.
Belo belo acaba aqui. Belo belo acaba aqui.

domingo, 6 de setembro de 2009

cossacos

há dias que não me saía da cabeça uma canção russa, de um exército de cossacos, mas cuja letra eu só conheço em hebraico. o refrão diz assim em português: não temos rédeas, mesmo não tendo cavalos; se nos perguntarem sobre o que nós montamos, responderemos: nós montamos sobre nossos cavalos. essas palavras sintetizam uma ideia de desobediência aliada à fantasia que sempre procurei seguir. ao mesmo tempo, elas me surgiram como possibilidade de mote para um conto. mas não consegui descobrir a letra inteira da canção em russo. finalmente, depois de várias buscas, descobri a letra inteira em hebraico e consegui toda a tradução. mas, num determinado momento, a canção fala uma palavra que nenhum google me explicava: budioni. pesquisei em todos os lugares possíveis e nada. após algumas horas, já esquecida disso e depois de receber uma notícia triste, fui me refugiar em um dos livros que mais amo: cavalaria vermelha, do isaac babel. logo na introdução, o tradutor conta que babel era membro da cavalaria vermelha, onde serviam também vários cossacos. o destacamento ao qual babel pertencia era comandado pelo soldado budioni. e foi assim. quase cem anos depois da revolução vermelha, aqui no brasil, a palavra budioni saltitava na minha cabeça e dormia no livro de babel, na estante da minha biblioteca. desavisadamente, fui a ponte e o destinatário de budioni. budioni, babel, canção, cossacos, notícia ruim, tempo, vocês todos formaram subitamente uma massa única e eu agradeço a todos vocês.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

chão

em éfeso, supostamente a cidade em ruínas mais conservada da europa, soube que haveria um concerto, à noite, no teatro romano. chegando lá, o concerto era fechado. só para convidados importantes. esperei a chegada dos músicos - uma orquestra de câmara de músicos pobres e instrumentos cansados (exatamente como eu mais gosto) - e entrei com eles, fingindo ser musicista também. a antiga cidade romana vazia, numa noite de lua cheia, iluminada para a ocasião, e o teatro romano íntegro, cheio de convidados que vinham de um cruzeiro para petroleiros americanos, assistir a um concerto exclusivo de mozart. os convidados, champagne, caviar e eu. no intervalo, a hostess do navio veio gentilmente me perguntar: você é passageira? não, não sou. sinto muito, senhora, mas será necessário retirar-se. saí e fiquei do lado de fora, sentada no chão ancestral de éfeso, onde pisou heráclito, que descobriu a história de nunca duas vezes no mesmo rio, ouvindo o resto de mozart. meu amigo ainda conseguiu dizer para a hostess: já fui expulso de lugares melhores! eu nunca fui.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

oitocentos

descobri o contato do gerente do restaurante fasano e escrevi para ele: sou professora há mais de vinte anos, doutora pela universidade de são paulo, colaboradora de um dos maiores jornais do país e gostaria muito de jantar em seu restaurante. mas não posso arcar com os custos. ele respondeu que me receberia com prazer e que daria um desconto de trinta e cinco por cento. mas qual é o preço de um jantar para dois? oitocentos. com trinta e cinco por cento fica cerca de quinhentos. senhor gerente do fasano, mesmo assim não posso ir. senhor gerente do fasano, o senhor poderia me explicar a origem de todas as injustiças - sociais, econômicas e culturais, no brasil e no resto do mundo inteiro?

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

discussão

nós discutimos. fiquei brava e ele também. no dia seguinte, pela manhã, me arrependi. saindo do supermercado, comprei um vasinho de flores amarelas pra dar pra ele. voltando da veterinária, ele comprou um vasinho de flores amarelas pra dar pra mim.

sábado, 29 de agosto de 2009

flor

depois de uns seis anos, a primavera do quintal de casa finalmente floriu. primeiro eram pequenos botões lilases na ponta das folhas. como se a própria folha se transformasse em flor. e agora, como que da noite para o dia, ela floresceu. o tempo foi trabalhando precisamente para a produção de uma coisa súbita, que parece ter vindo assim, do nada. essa mistura de lentidão e engenharia velada com a surpresa cabal de uma flor, ainda por cima em nosso quintal, dá uma alegria que nem sei.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

televisão

poucas coisas dão melhor (e pior) a noção de que muito tempo passou, do que ver o guto, filho do moacyr franco, na televisão. olhando para ele, olheiras fundas, calvo, bem mais velho do que era o moacyr franco quando eu era pequena, refiz um caminho súbito que foi da minha televisão pequena cor de laranja até minhas próprias olheiras atuais. eu adorava o guto e o mano, sonhava com eles e achava que eles viriam me buscar. gostava da música que o moacyr franco cantava sobre o garrincha: "sua ilusão entra em campo no estádio vazio, uma torcida de sonhos aplaude o talvez". brincava com minha prima no dial do rádio gigante da casa dela, embutido num armário de jacarandá. cada estação era um país diferente e sempre tinha um moacyr franco: um francês, um japonês, um americano. guto, você bem que podia ter vindo me buscar.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

comida

em mil novecentos e quarenta e quatro, quando já se anunciava ao longe a derrocada dos alemães, marguerite duras fazia parte da resistência francesa, seu chefe era françois mitterrand e seu marido havia sido capturado pela gestapo. ela, por uma estranha espécie de solidariedade, mas também por total impossibilidade, quase não comia e estava magra como um deportado. assustadoramente, um oficial nazista com veleidades artísticas se encantou por ela e a convidava para sair diariamente. preocupava-se com seu estado de saúde e a levava a restaurantes clandestinos onde se servia carne fresca e abundante, vinhos, batatas, leite. ela recusava tudo ou, para não levantar suspeitas, levava para casa e, ao chegar lá, jogava tudo no esgoto. me pergunto, com muitas dúvidas, se conseguiria fazer o mesmo. é impossível saber, mas tenho impressão de que não o faria e tenho raiva de mim por isso. sinto-me forte o suficiente para enfrentar muitas dificuldades e ousada para desafiar muitas coisas. mas aqui, empaco. a comida e sua carência, acho, eram o sinônimo da guerra. quem conseguiu resistir a ela, podia, como marguerite duras fez com orgulho, matar um nazista.

sábado, 22 de agosto de 2009

oração

que sempre, sempre, eu possa receber mensagens como essa, que recebi hoje da joaninha. bolo de uvas pretas (santa isabel). um quilo de uvas pretas lavadas e secas (será melhor um pouquinho mais); uma colher e meia de óleo; cento e cinquenta gramas de manteiga; pouco menos de duzentos e cinquenta gramas de farinha de trigo; duzentos e cinquenta gramas de açúcar; três gemas uma a uma; raspas de limão; três claras em neve. usar forma de aro, de abrir. colocar toda a massa na forma. depois colocar toda a uva por cima, sem mexer. a uva desce e a massa sobe. a uva santa isabel frutifica entre fins de janeiro, fevereiro e começo de março.





sexta-feira, 21 de agosto de 2009

lista

a burrice pragmática sempre foi, para mim, um motivo de orgulho. uma vaidade às avessas, uma espécie de teimosia arrogante em não compreender nem participar de fichas, tabelas, listas, sistemas. mas tenho recebido a vingança lenta das listas, que se abateram com ferocidade esperta sobre mim e isso me fez perceber que a recusa prepotente em ceder à organização é que é burrice. ou bem somos inocentemente canhotos ou bem participamos minimamente do mundo. empunhar o canhotismo como uma bandeira é uma maneira trocada e fraca de brigar. e o que é pior, com consequências ruins somente para o empunhador burro da bandeira canhota.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

exemplo

alguém conhece versos mais perfeitos do que "se fizer bom tempo amanhã, eu vou. mas, se por exemplo chover, não vou"? e o "por exemplo" não faz toda a diferença?

domingo, 16 de agosto de 2009

ônibus

no ônibus, em meio a um grupo grande de corintianos que batiam no teto, batucavam e cantavam hinos da fiel, eu me continha nervosa, porque queria e não queria participar. ficava olhando curiosa, mas desviava o olhar quando coincidia com o deles. eu ia ao cinema e eles, claro, ao jogo. fiquei com um pouco de vergonha de ir ao cinema, em meio àquela manifestação feliz de iminência do jogo, à qual nenhum cinema se compara. quando chegava perto do meu ponto, um torcedor me perguntou: você é corintiana? respondi que sim. imediatamente, eles, juntos, começaram a cantar: uéu, uéu, uéu, tiazinha é da fiel! pronto, me puseram no meu lugar bem rápido e eu pude ir ao cinema tranquila.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

fundo

a nina, minha gata, está novamente doente. ela me olha crédula do fundo dos seus olhos grandes e me aceita. a mim, aos remédios, aos exames, aos traslados. sua elegância permite um miado baixo. só isso. eu não, nina. tenho vontade de chorar aos berros porque você adoece e tua ignorância da doença só faz aumentar minha sensação de impotência. às pessoas, que sabem de si e minimamente compreendem que estão doentes, permite-se que morram. mas como permitir que alguém que nada sabe, nada julga, nada pede, também vá embora? a morte exige um pouco de lógica. nina, me ajude.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

mim

a senhora muito elegante, que recentemente se mudou do rio de janeiro para são paulo e que aqui conhece poucas pessoas e lugares, disse assim para mim: sou apaixonada por mim mesma e sou completamente correspondida! tá aí, matou a pau.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

cinema

antonio candido conta que, por volta de mil novecentos e vinte e seis, ele e um dos dois irmãos eram apaixonados por cinema, que passava uma vez por mês na cidadezinha no interior de minas onde ele morava. ele e um primo também obcecado pelos filmes, colecionavam revistas sobre cinema e tinham um hábito lindo: recortar todas as cenas que conseguissem de um mesmo filme, fazer tiras de papel almaço colado e colar, nestas tiras, as cenas do filme escolhido na sequência certa, entremeando com aquelas telinhas enfeitadas com os dizeres dos atores, que eles mesmos se esmeravam em escrever com capricho. com o máximo de cenas acumuladas na ordem correta, eles pregavam o papel em suportes de madeira e enrolavam como um pergaminho. diante da plateia curiosa e maravilhada - os outros dois irmãos - eles desenrolavam as cenas como se fossem elas também um filminho privado. depois que surgiu o cinema falado, antonio candido conta que perdeu o encanto tão grande que sentia pelo cinema. onde estão estes filminhos, onde está esta plateia de dois irmãos, onde estãos as letras bonitas das telas entre as cenas? por que não dá para ter tudo?

sábado, 8 de agosto de 2009

tempo

meu pai gostava muito da elis regina. quando ela morreu, de forma inesperada e trágica, ele não se conformou. de repente, do nada, no meio de um silêncio na sala, ele dizia, com o seu sotaque lindo: elis regina móreu. e assim ficou. mesmo cinco anos depois da morte dela, quando baixava um silêncio e ninguém tinha o que dizer, por motivos bobos ou graves, ele dizia: elis regina móreu. nós ríamos muito. mas para ele era a síntese lapidar do tempo que passa e não poupa nem a nós nem à elis regina. hoje meu pai já não está mais aqui, muitos outros também não estão e, muitas vezes, quando baixa um silêncio e eu sinto o tempo passando bem rente de mim, até ouvindo seu barulhinho, me pego dizendo: elis regina móreu.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

segredo (para o paulo neves)

eu acho que descobri teu segredo. você é um acompanhador das coisas. por exemplo, surge uma caneta. você vai até ela e diz: olá, caneta, bem-vinda à vida. vou te mostrar as coisas. então você acompanha a caneta por todas as mãos e lugares pelos quais ela passa. quando chega o momento de inutilizá-la, você também a acompanha e diz: até logo, caneta. que bom que você esteve por aqui. e assim você faz com as coisas, as canções, os poemas e as pessoas. eu não adivinhei o teu segredo, paulo, não adivinhei?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

escambo

os minutos que vêm logo depois de acordar, ainda entre o sono e a vigília, são cheios de possibilidades que, assim que a vigília predomina, soam absurdos. durante esses minutos tenho certeza de que vou publicar um livro único sobre o qual ninguém nunca tinha pensado e que vai fazer um sucesso internacional; encontro uma maneira de conseguir visitar minha mãe todos os dias; descubro um jeito de fazer escambo com os melhores restaurantes da cidade: redijo os cardápios e, em troca, eles me oferecem jantares de graça por um ano. não, mais de um ano, quem sabe para sempre. essa brecha de luz embaçada, esse tempo não cronológico, não linear, entre a entrega ao outro e a posse de si mesmo é um momento privilegiado, que eu gostaria de agarrar com os dedos e levar comigo na bolsa. nos momentos chatos do dia, eu o tiraria de lá, vestiria como se fossem óculos e veria o mundo com cores esfumaçadas, brilhantes, engraçadas, do jeito que eu quisesse.

domingo, 2 de agosto de 2009

taxi

quando voltamos ao hotel de varsóvia, o kanonia, à meia-noite e meia, a leda descobriu que tinha perdido o celular. liguei para o número dela e atendeu um senhor de voz grossa: álo! álo! speak english? no, no anglutski. polska. telefon? da, telefon. ia jezuitska ulitsa (rua jesuitska). daí só entendi o cara dizer, bem bravo, que não levaria o telefone na rua jesuitzka coisa nenhuma. fiquei tentando falar o polonês que não falo. du, táxi? da, supertáxi. ele era o spupertáxi. levei correndo o telefone para a recepcionista do hotel, que era praticamente uma espelunca, e ela conversou com o motorista do supertáxi. disse que ele não viria trazer o celular, que estava próximo dali e que devolveria o celular a um custo de vinte zlotys, contanto que nós fôssemos buscar. eu já estava de pijamas. coloquei um casaco por cima do pijama, as botas e fomos, numa neve que chegava até os nossos joelhos, atravessar a cidade antiga para encontrar o motorista do supertáxi. chegamos, pagamos e ele nos devolveu o celular sem falar nem uma palavra. voltamos rindo, chorando mesmo de rir, molhadas e inventamos o supertaxi, um super-herói que resgata celulares a vinte zlotys e que só tinha entrado em ação uma única vez, talvez para nunca mais.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

no meio de um trânsito enorme na ladeira do pacaembu que sobe para a doutor arnaldo, um carro sai de ré do estacionamento de um consultório médico e vem vindo também de ré na minha direção, sem parar mesmo enquanto eu buzino freneticamente, até bater de ré no meu pára-choque. perplexa pelo motorista não ter parado, olho com cuidado para dentro do carro e vejo, estarrecida, que não tem ninguém. o carro que bateu em mim de ré estava vazio. mais alguns minutos, eu já do lado de fora, aparece o dono, saindo do consultório. era o joel, um amigo de infância, que eu não via há muito tempo. ele tinha estacionado o carro, não tinha puxado direito o freio de mão e o carro veio fazendo o caminho contrário, até bater no meu. o joel: querida, há quanto tempo. e eu: joel, que bom te reencontrar. assim, de ré, o tempo fez o caminho contrário, acenou com o vazio e, rapidamente, o preencheu com o joel. acho que era disso que o einstein falava quando disse que o tempo faz curva.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

trem

pela primeira vez em mais ou menos trinta anos prestei atenção na letra de trem azul: coisas que a gente se esquece de dizer e coisas que ficaram muito tempo por dizer, na canção do vento não se cansam de voar. assim, ouvindo, me dei conta súbita de que essas coisas, as que a gente esquece de dizer e as que ficam muito tempo por serem ditas sejam, talvez, das coisas que mais dóem. os trinta anos em que eu não tinha ouvido essa letra vieram, pá, voando no vento e bateram na minha cara e eu lembrei de tantas coisas que eu não disse porque esqueci de dizê-las ou porque ficaram mudas dentro de mim.

terça-feira, 28 de julho de 2009

cornetto

uma e meia da manhã e eu resolvi que queria de qualquer maneira comer um cornetto de charge. o charge já é o chocolate em si. o amendoim, o chocolate, o crocante e a goma que puxa fazem com que ele se pareça mais com um produto de um tempo artesanal e não propriamente industrial. o nome coincide com o conteúdo de uma maneira que comer um charge, para mim, lembra uma atividade da ordem do poético. mas cornetto de charge é melhor. o cornetto também é uma invenção perfeita, de industrialização da casquinha e de evocação de uma infância perdida. aliás, o charge lembra um torrone que eu comia no parque trianon com minha mãe e de que só eu me lembro em toda a cidade, o torrone raquel. circulamos por toda a zona oeste atrás de uma geladeira da nestlé, mas só tinha da kibon, cujo mega, mesmo o de chocolate belga, não chega aos pés do cornetto de charge. numa padaria que fica aberta vinte e quatro horas havia uma geladeira da kibon e outra de uma marca italiana chique que vende picolés de capuccino e cookies com menta a seis reais. acabei comprando um desses. não chega aos pés do cornetto de charge. muito pouca coisa chega.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

véspera

sonhei com uma coreografia: enquanto alguém tocava somente as notas suficientes para se reconhecer que se tratava do chorinho odeon, bem lentamente, nota por nota (tã.....tã......tã......tã....tã), circulavam pelo palco, simultaneamente e em grande velocidade, vários personagens típicos de algum circo de filme em preto em branco: uma bailarina de tutu dava muitas piruetas, um mágico punha e tirava seguidamente a cartola, um domador ranzinza tocava um apito, um ciclista pedalava uma bicicleta de uma roda só. a música lenta e os movimentos rápidos estabeleciam um contraste que tornava o sonho ainda mais onírico, se é que isso é possível. sei que não vou realizar esta coreografia e que ela vai permanecer como um desejo à véspera de acontecer, como talvez sejam todos os sonhos. que pena, achei tão bonito.

sábado, 25 de julho de 2009

dor

depois de uma tarde de bicicleta com o david, o dia seguinte trouxe dores fortes nas costas. manco, arrasto a perna, nenhuma posição alivia muito. a dor não é escandalosa, mas contínua e precisa, parecendo executar um trabalho planejado e paciente, embora gratuito. o mundo, nos dias frios e nublados, e na posição horizontal em que fico a maior parte do dia, é um mundo diferente. as coisas como que se arrastam, pesadas e as pessoas viram personagens de um livro que estou lendo ao vivo. o que você quer comer? macarrão. quer que traga um suco? quero, por favor. de repente, no meio do suco, quero saber: o que você nunca perdoaria em alguém? suco, conversas sérias, sonhos estranhos se misturam para quem tem uma dor. ela vai passar, mas, para todos os efeitos, vai deixar sua inscrição e passagem no líquido entre as vértebras e na minha vida. as dores falam.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

garfo

os dois últimos livros que li, until the end of the world, do david grossman, e patrimony, do philip roth, falam, correspondenemtente, sobre o medo da perda de um filho e o processo lento de acompanhamento da morte do pai. em pouco tempo vivi essas duas experiências contíguas e, de alguma forma, contrárias. mas, de qualquer forma, vivi bem próxima de sensações relacionadas à morte. foi difícil, mas bom também. não é exatamente que tenha compreendido melhor o que é a morte ou como perder alguém, mas principalmente aprendi um pouco mais (creio) a envelhecer. o inevitável do envelhecimento pode terminar por significar algo bom: o melhor de alguém é mesmo a maneira como se fala de uma barbearia que havia na esquina da rua lexington com a terceira, ou será que era a quinta? o melhor é como se segura o garfo, como se arruma o batom no reflexo de um garfo durante o jantar. e isso só mesmo a velhice permite saber. (ninguém arruma o batom em garfo, mas sim em faca ou colher e isso já é sinal de velhice também)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

etiqueta

abriu uma fábrica de etiquetas, aparentemente clandestina, do lado da minha casa. passando de carro ao lado, eles tinham deixado latas e latas para o lixo recolher. desci para olhar e havia centenas, milhares de rolos de etiquetas de todas as cores, formatos e tamanhos, todas intactas. etiquetas redondas e cor de rosa, quadradas e vermelhas, retangulares e brancas. havia inclusive um rolo com etiquetas dizendo chave de segurança. milhares delas. mas o melhor de todos é um azul turquesa, ainda sem o corte da etiqueta, como se fosse um rolo de contact estreito. o que alguém pode esperar mais do que essa sorte na vida?

terça-feira, 21 de julho de 2009

tailleur

ela era bonita e sensível e casada com um membro da guarda nacional britânica, rico e austero. ele só usava ternos e ela, tailleurs. um dia ele a traiu. ela tentou o suicídio. na clínica de reabilitação, ela conheceu um chef de cozinha italiana, que também tinha tentado o suicídio, parece que por depressão. apaixonaram-se. hoje eles cuidam de um dos maiores resataurantes de comida italiana da inglaterra, cuja principal freguesa é, justamente, a rainha elizabeth. não importa se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida; também não acho que seja a improbabilidade que torna essa história tão bonita. penso que quanto mais a vida se afasta desesperadamente da morte, mais morta ela fica. é preciso ter a morte por perto como possibilidade: os fins, as perdas, o tempo. sem isso parece que a vida fica como um tapete liso de ternos e tailleurs.

domingo, 19 de julho de 2009

gengibre

comprei um ralador de porcelana pequeno de uma face só. parece que sua função principal é ralar gengibre. ele é lindo e se parece com alguma ferramenta japonesa de uma dinastia no, em que os cozinheiros imperiais se esmeravam na preparação de pratos raros e cheios de especiarias finas. resolvi então fazer uma sopa de abóbora com gengibre. fui ralar o gengibre bem fresco, ainda úmido e cheiroso, e todas as fibras da raiz ficaram entaladas no ralador. precisei ficar batendo e retirando com um palito. mas enquanto retirava minuciosamente as fibras com uma espécie de estilete que inventei com o palito de dentes, fiquei pensando em muitas coisas boas e ruins, misturadas ao apelo da tarefa detalhada, ao cheiro forte e à expectativa da sopa. é claro. deve ser para isso que serve esse ralador.

sábado, 18 de julho de 2009

losango

tenho certeza de que nada faz sentido e também de que faz todo sentido dobrar os guardanapos em forma de losango para as visitas de um jantar.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

nada

enquanto leio o narrador do livro o planeta do sr. sammler, de saul bellow, reclamar da sua superestrutura explicativa, uma tristeza que advém de uma obsessão de tudo interpretar, a maria canta no banheiro: agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar, do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

entrevista

quase consegui entrevistar a sophie calle, mas não deu certo. passeando por uma outra exposição, os monitores me seguiam obsessivamente com os olhos. finalmente um deles tomou coragem, se aproximou de mim e me abordou: desculpe, mas você é a sophie calle? mais si, je suis sophie calle. mais excuzes mois, je ne parle pas portugais. sô um pouc, com sotac. ah, mas você fala bem português. ê qu eu estudê um poc. ah! e você está gostando do brasil? muit. ê muit interressant. tiraram fotos comigo e ficaram felizes. também fiquei. não só a entrevistei como a conheci por dentro e fui um trabalho dela que nem mesmo ela chegou a saber. o mundo recompensa os entrevistadores desvalidos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

mãe

david grossman já tinha escrito praticamente todo o livro until the end of the world antes da morte de seu filho mais velho, dentro de um tanque do exército israelense. o livro também é sobre o medo da perda de um filho em seus últimos dias de exército, por uma mãe muito ligada a ele. israel surge, nesse livro, como uma terra em que todas as pessoas, israelenses, árabes, palestinos, são de alguma forma exilados. um país de exilados, mesmo que o exílio seja dentro e não fora. às vezes, o exílio interno é realmente pior do que o outro, o literal. como tolerar estar fora de algo de que você é parte? como ser parte de algo do qual você está sempre do lado de fora? como ser mãe de um filho que parte para a guerra? quando o mundo para o qual os filhos partem não é uma guerra? ser mãe é também uma forma de exílio.

sábado, 11 de julho de 2009

chuva

embora a maioria das gramáticas ainda comece afirmando que os termos essenciais da oração são o sujeito e o predicado, as mesmas gramáticas, mais adiante, fornecem como exemplo de tipos de sujeito, a oração sem sujeito. mas essa incoereência normativa não tem a menor importância. a oração sem sujeito é real e linda e mais lindos ainda são os exemplos clássicos desse tipo de oração oferecidos pelas gramáticas. fenômenos da natureza: amanhece, anoitece, chove. chove. não há sujeito praticando a ação, nem objeto a recebê-la. o verbo não transita; estaciona. é só a própria coisa acontecendo; acontecimento puro. o som e o significado em perfeita harmonia e coincidência. a natureza agindo por si mesma e nós, enfastiados de tantos sermos sujeitos, só a observá-la. queria muitas orações sem sujeito. só verbos soltos pingando.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

gol

em mais ou menos quatro horas vi o ronaldo fazer três gols, o james taylor cantar fire and rain, a lua cheia do quintal de casa e ouvi glenn gould tocando bach. às vezes é muito bom fazer parte desse grupo que, de acordo com o próprio james taylor, é o único capaz de se perder. perder-se nos salva.

terça-feira, 7 de julho de 2009

clarice

vi: um cego carregando uma guitarra, uma barraquinha de churros com potes grandes de mostarda dentro, várias galinhas juntas e presas dentro de uma mesma gaiola batendo com o bico contra as grades, um mendigo deitado sobre um colchão com um arranjo de flores do lado. tudo enquanto esperava o sinal abrir, num mesmo canto de uma mesma rua. podia ficar lá para sempre olhando.

domingo, 5 de julho de 2009

beijo

ela estava vestindo um conjuntinho de calça verde clara e blusa de malha verde mais escura com um casaquinho verde também. pintou o cabelo, penteou e esperava por nós sorridente na calçada. andando na rua, eu a abracei por trás e lhe dei um beijo na cabeça. ela me abraçou também. agora que a melhor amiga está doente, ela vai sozinha ao cinema. disse assim: vou eu comigo mesma. mas você não sente falta das amigas? não muito. todas têm uma doença, dói aqui, dói ali, então vou sozinha. olha para a leda e fala: não gosto dela! e dá um beijo. ela disse que eu sou a mais beijoqueira da família. gosta de tudo: da comida, do lugar, da companhia. paga a conta toda e acha barato. eu fico olhando para ela: como você está aqui, mãe? que bom ter você comigo.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

bola

em alguns dias, talvez sob a influência também da temperatura do ambiente e da coloração do céu, forma-se uma pequena bola endurecida, porém imaginária, na cavidade entre os peitos. ela contém, se a apalparmos com cuidado, o conteúdo e o tamanho exatos de uma pequena angústia (angústia significa passagem difícil). não se pode apalpar demais, no entanto, sob pena de que a bola endurecida cresça muito e gratuitamente, ou se desfaça sem que se possa conhecê-la melhor. é somente uma pequena angústia; não grande nem grave. pequena e medianamente companheira. deve-se tocá-la com sutileza: lentamente, ela nos dirá a que veio, e, também com lentidão, se mantivermos delicadeza no diálogo e soubermos escutar seu silêncio, ela encontrará seu caminho pela passagem difícil daquela cavidade e atravessará para o outro lado. para fora ou mais para dentro ainda, não importa. mas ela passará.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

canção

numa aula do zé miguel wisnik e do arthur nestrovski sobre a canção, fiquei pensando como é bom que a gente possa chamar nossos dois maiores compositores de caetano e de chico. não precisa de veloso nem de buarque. os nomes caetano e chico alçam a brasileirice a uma altura cultíssima, ao mesmo tempo em que alegremente rebaixam a alta cultura para o nível familiar, de conversar com o vizinho na porta de casa. como é sofisticado o povo que pode cantar em coro iracema e o homem velho.

terça-feira, 30 de junho de 2009

dinheiro

um arranjo mixuruca de flores no supermercado santa maria custa duzentos e vinte reais. paguei o seguro saúde atrasado e a multa é de dez por cento, ou seja, cento e cinquenta reais. o dinheiro hiper sobrefaturado deve circular por meandros subterrâneos das cidades, como salmões medrosos correndo contra a correnteza do esgoto, saltando pinguelas, canos, buracos e indo parar, como notas obedientes, solitárias, nos bolsos de executivos comilões. que triste um pequeno arranjo de flores custar duzentos e vinte reais.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

menina

a menina de dezesseis anos falou de música, de cinema e de sexo. nós três tínhamos todas mais de quarenta anos. ficamos escutando a menina e rimos tanto até chorar. ela falava com uma desenvoltura que nós perdemos e talvez nunca tenhamos tido. não havia vergonha ou moralidade envolvida. éramos quatro mulheres alegres instantaneamente amigas pelo brilho dos olhos da menina. não quisemos ter dezesseis anos, não sentimos inveja. ela fez com que cada uma de nós quisessse ser exatamente o que é. uma menor, outra média, outra maior; uma com quarenta e quatro, outra com quarenta e sete e outra com cinquenta e dois. a menina linda, de tão linda, pos cada coisa em seu lugar, cada uma na alegria solitária e coletiva de ser só o que é e de estar junto de quem gosta.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

pai

meu pai dizia ne ima niko kutchi, que é não tem ninguém em casa, em iugoslavo. dizia nie lepo, que é não está bonito. dizia laje, que é mentira. dizia otchen dobro, que é muito bom. goran bregovic, o mágico cigano de uma música que vem lá de uma floresta eslava inexistente para transformar o mundo em alegria, diz niko neznam, ninguém sabe. ninguém sabe nada mesmo, nem meu pai, nem goran bregovic, nem eu. ninguém sabe nada e essa é a melhor coisa que pode haver.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

carroça

a caminho da etapa final de um concurso importante, vi uma carroça, conduzida por um pangaré velhinho, despelado e cabisbaixo. na boléia ia uma família: o pai, a mãe - de lenço na cabeça - e seis crianças bem pequenas. a mãe ainda ajudava uma delas a subir para todos poderem partir. as crianças eram bem pequenas. todas bonitas, de cabelos encaracolados. era como se vidas secas tivesse aterrissado na vila madalena. a simultaneidade desses acontecimentos, meu concurso e a família na carroça, foi como um atrito entre dois pólos elétricos opostos, provocando um choque no circuito monotemático do meu cérebro: concurso, concurso, concurso. a carroça abriu uma vala no concurso e fez com que tudo se alargasse, se estreitasse, fez um buraco em meu caminho reto. e olha, agora o concurso nem faz mais tanta diferença.

terça-feira, 23 de junho de 2009

dedo

ficção vem de fingere que, em latim, significa moldar, dar forma. daí também finger, dedo, que era o que dava forma à matéria e a tranformava em representação, mentira, ficção. assim, ficção e dedo mantêm uma relação secreta, linguística e cabe a nós, que nos habituamos a viver não nos bastidores, mas na superfície da língua, redescobrir sua antiga coincidência. o dedo, extensão instrumental e simbólica do corpo, fazedor de instrumentos e ferramentas, responsável pelo aspecto funcional da humanidade, é também o melhor mediador para plantarmos nossos poemas no mundo. o dedo é um pré-pente, pré-martelo, pré-caneta: habita a fonte física da ficção e conversa diretamente com ela. dedo, escuta os meus poemas e faz alguns pra mim?

domingo, 21 de junho de 2009

letra

a leda está lendo a história sem fim para a marina, que tem sete anos. a marina perguntou: leda, de que tamanho você acha que são os personagens do livro? a leda disse: do tamanho de gente normal. a marina disse achar que eles são pequenininhos. por quê? a leda perguntou. porque se não, eles não caberiam no livro. ao mesmo tempo em que a marina imagina as criaturas fantásticas de um reino desconhecido, ela também pensa que os personagens são feitos de letrinhas e que estão lá, dentro delas. como uma penetração profunda na intimidade das letras, enxergando infinitamente o mundo de onde elas vêm e para onde elas vão e nos levam. a história não horizontal nem linear, mas vertical e vertiginosa das letras sem fim.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

missa

fui fazer uma inalação no pronto-socorro. na minha frente, um rapaz de camisa vermelha, celular na mão, cantarolava sem parar, em voz bem alta, uma canção em uma língua desconhecida. para mim soava como alguma derivação do russo. ele tirava sangue lentamente e comentava também os movimentos da seringa e dos fios. comentava para ninguém, só para si mesmo. nós todos ali, naquela sala, inalando ar, reunidos, e o moço cantando. to rro li shat la kav nin tlo piiiis. os enfermeiros passando e perguntando: melhorou? de um a dez quanto você está sentindo de dor? quer levar o inalador para casa? não. tadinho do inalador. ninguém quer levar ele para casa. ao mesmo tempo me sentia a mais solitária das resfriadas, mas, também, senti fazer parte de uma comunhão de respiradores, embalada pela cantiga estranha. moço da cantiga estranha, você me salvou da burocracia da gripe e a transformou em uma missa russa.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

medo

o vigia que cuida da rua durante o dia, seu madruga, é medroso. ele tem medo da chuva, de ladrão, das pessoas, de doença. é desconfiado, rabugento e feio. meu cachorro, que é epiléptico, teve um pequeno ataque, e ele viu. ficou com medo. é perigoso? não. dá na gente? não. posso ficar perto dele? pode. mas tem certeza que eu posso? tenho, seu madruga. e, agora, toda vez que eu saio de casa, ele me pergunta as mesmas coisas, nessa ordem. talvez o seu madruga seja uma vítima do medo, não sei. mas penso que o medo, o medo o, é a pior mediação criada em conjunto pela natureza e pelo homem para se relacionar com o mundo. é uma linguagem triste, falsamente protetora. o medo é a máscara de uma pequen morte nos contaminando os dias.

terça-feira, 16 de junho de 2009

ora

num livro lindo de david grossman, until the end of the land, a personagem de nome também lindo, ora (que quer dizer luz em hebraico, mas luz no feminino, portanto alguma coisa como iluminada), conta que, quando pequenas, ela e sua amiga ada mantinham um almanaque de palavras protegidas. algumas palavras devem mesmo ser resguardadas do uso indevido, abusivo, vão, tacanho ou bobo. assim, pensei que também posso cuidar de palavras.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

sacada

por que será que hoje eu lembrei de uma moça que uma vez eu vi em uma sacada de um apartamento em barcelona, isso já faz bem uns dez anos? a memória funciona por ondas de sentidos e algum deles deve ter evocado essa lembrança, que aflorou assim, não convocada, até a superfície da consciência. moça de barcelona que eu nem vi direito, por que você veio hoje me chamar?

domingo, 14 de junho de 2009

navio

você vai me deixar recontar essa história linda que você me contou. a menina saiu da alemanha com dois, três anos. o pai, judeu, em 1938, sentia que uma guerra se aproximava. eles embarcaram num navio para vir para cá, e nesse mesmo navio viajava a seleção brasileira de futebol. a menina pequena viu, pela primeira vez, um negro, que veio brincar com ela. esse homem negro, que a espantou, era leônidas da silva. aos poucos, com a viagem longa, eles ficaram amigos. essa mulher cresceu aqui e, adulta, escreveu a biografia de iara iavelberg, uma moça também judia, que foi amante de lamarca. fiquei pensando o quanto o encontro da menina com o outro mundo, ainda no navio, não a fez interessar-se para sempre por essas colisões as mais poéticas que a vida pode nos proporcionar: a carícia do diferente num mundo que quer para sempre permanecer igual.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

caldo

olha, moço, foi muito bom você ter me dito que eu ainda dou um bom caldo. meio cruel e hiper realista, mas ainda assim, bom. agora, deixa eu te dizer uma coisa. tenho sete rugas de diferentes tamanhos e profundidades bem abaixo de cada olho. no direito mais do que no esquerdo. quando sorrio, despontam mais rugas nas laterais dos lábios, nas bordas do rosto e algumas na testa. resfrio com facilidade e, nesses casos, fungo. tenho só um pijama para o frio e um para o calor. erro muitas receitas e esqueço chaves, meias, lápis, contas e lugares onde guardei as fotografias. não sei muito bem distinguir a luz da sombra e faço enquadramentos tortos e com o dedo na frente. se não bastasse tudo isso, mancho o jornal com mamão e geléia. moço, a outra moça, a que ia mais para a frente, creio que dava um caldo melhor.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

selo

existe reconhecimento de firma por semelhança e reconhecimento de firma por autenticidade. por semelhança é quando não é a própria pessoa que leva algum documento com a sua assinatura para ser reconhecida. daí o escrivão reconhece que a assinatura é realmente parecida. por autenticidade é se a própria pessoa vai. então o escrivão reconhece não só que a assinatura é a mesma, como também que a pessoa é a própria pessoa. por semelhança, o reconhecimento de firma custa dois e noventa. por autenticidade, sete e oitenta. por que reconhecer que a pessoa é a própria pessoa custa mais caro do que reconhecer que a assinatura é parecida? penso que deveria custar menos, porque exige menos destreza e perícia investigativa. para reconhecer duas vezes que eu era eu mesma, gastei quinze e sessenta. no selo que o moço colou atestando minha identidade, tinha um errozinho que ele próprio percebeu e então ele passou cerca de dez minutos raspando o selinho com a unha para retirá-lo. eu fiquei olhando para ele. ele raspava aquele selo com tanta certeza! pode ser que esteja certo que só ele tenha a autoridade de atestar que eu seja mesmo eu.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

nariz

na quinta ou sexta série do ginásio, eu tinha um colega, que sentava logo atrás de mim, chamado ovadia saadia. para uma escola conservadora e de bairro, podia-se dizer que ele já era bem cosmopolita e com um sentido estético apurado, pois adorava filmes hollywoodianos dos anos 40 e cinema francês. tinha uma coleção de posteres raros e era, como todos, fanático pela brigitte bardot. ele dizia que me achava bonita e que, não sendo por meu nariz volumoso e torto, eu pudesse talvez passar por uma atriz francesa. ele ficava empurrando meu nariz para cima, tentando arrebitá-lo e ver como seria meu rosto assim, de nariz empinado. hoje ele continua se chamando ovadia saadia e é colunista social. sempre recebo e-mails com informações da sua coluna. ovadia, até hoje eu me olho no espelho de vez em quando, empino o nariz e fico olhando se eu poderia passar por uma atriz francesa.

terça-feira, 9 de junho de 2009

telefone

deitamos um ao lado do outro e começamos a ler juntos o primeiro capítulo de sobre amor e trevas, do amos oz. logo no início ele conta que, em jerusalem, na década de quarenta, a família toda se reunia mensalmente para ir até a farmácia mais próxima e fazer um telefonema para a outra metade da família que estava em tel-aviv. tudo isso era precedido por cartas, preparativos, rituais e, no dia combinado, todos se vestiam com capricho para ir até a farmácia fazer o telefonema. quando finalmente a ligação se completava, a conversa era sempre: como estão? alguma novidade? por aqui também não. vamos nos telefonar novamente no mês que vem, está bem? sem falta. e assim terminava a função e todos voltavam para casa. rimos tanto, com tanto carinho, que chegamos a chorar de rir. hoje não nos vestimos mais para fazer um telefonema, mas, por outro lado, rimos felizes e nostálgicos de lembrar desse tempo que não vivemos, o que não é mesma coisa, mas é muito bom também.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

definição

li três definições sensacionais feitas todas por milan kundera: a ternura é o medo que nos inspira a idade adulta; a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza; o poeta é um rapaz que sua mãe leva a exibir-se diante do mundo no qual ele não é capaz de entrar. acho as definições determinadas por uma ação bem mais eficientes do que as definições abstratas, sem personagens ou exemplos. por isso, gosto quando alguém responde a uma pergunta definidora, com a resposta: "é quando...". assim, vou inventar também uma definição ativa para um conceito abstrato: melancolia - encontro entre o capricho, a gratuidade, o tempo e o conhecimento. como sou abstrata, meu deus!

domingo, 7 de junho de 2009

mel

no site do museu do café, de santos, incidentalmente encontrei a receita do bolo de mel que eu tanto pensava em comer. bati quatro claras em neve e juntei com um copo de açúcar e quatro gemas durante muito tempo. juntei três quartos de copo de um mel muito bom, meio copo de café forte, meio copo de óleo de canola (eu não tinha óleo de milho em casa, mas achei que era a mesma coisa), trezentos e cinquenta gramas de farinha de trigo (que eu chutei que eram duas xícaras cheias), uma colher de essência de baunilha, uma xícara de uvas passas brancas, uma xícara de nozes picadas (eu coloco as nozes dentro de um saco plástico e trituro com o batedor de bife) e eu ainda acrescentei uns pedaços de tâmaras que o joão tinha trazido. ficou bem molhado, como eu queria e, comendo, lembrei do dono da farmácia paulistânia, que ficava na esquina da tocantins com a antônio coruja e onde uma vez eu ganhei um pentezinho de cabo de madrepérola.

sábado, 6 de junho de 2009

fundo

o editor perguntou se eu queria entrevistar o chico buarque. quero muito! é a coisa que eu mais quero! na entrevista, quatro jornalistas e eu. eles perguntavam se ele beijou a moça no fundo do mar, se ele sabia que ela era casada, se ele escrevia ao mesmo tempo que lia, se achava bom o lula. eu só ficava olhando. quase no final, eu perguntei: chico, você é triste? ele disse que triste, ele, não. enrubesci e me calei. puxa, que droga que o chico não é triste.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

nós

jogávamos buraco, as quatro. uma começou a cantar uma canção dos beatles e outras duas acompanharam. uma só ficava olhando e jogando muito bem. sempre foi a melhor jogadora. cantamos muito beatles e um pouco de rolling stones, nós três. fomos, assim, mais irmãs do que eu jamais me lembrava de ter sido algum dia. e ela, mais mãe.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

pequena

às vezes, forma-se uma película baça sobre a pupila, que, por sua vez, condensa-se em um líquido salino, que acaba escorrendo para baixo em forma de fio. pode-se passar a língua sobre o fiapo que se aproxima da boca, fazendo-se assim com que o líquido volte para dentro do corpo. sabe-se lá como ele voltará lá para cima, algum outro dia, e por quais razões. pode ser, entretanto, que ele nunca volte e que saia por outros caminhos. assim, uma tristeza pequena pode se transformar em suor.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

poro

por razões mais fortes do que minha vontade, precisei ficar bastante tempo escutando uma pessoa falar sobre a operação de retoque de lipoaspiração de sua prima. com todos os detalhes: sobre a operação, a preocupação da família, com quem os filhos iriam ficar, as dificuldades da gorda em questão. era a chatice em estado maciço, sem piedade nem brecha. como atravessar a chatice? onde encontrar uma fresta que nos permita escapar do retoque de uma lipoaspiração? por que ela não contém algum poro, algum caminho alternativo que seja?

terça-feira, 2 de junho de 2009

ping

numa loja de artigos esportivos, havia algumas mesas de ping-pong disponíveis. o david me chamou para uma partida. começamos e eu logo me dei conta de que a minha visão já não conseguia mais acompanhar direito os movimentos da bolinha. ficava oscilando os olhos entre o david, que tem um metro e noventa e seis e a bolinha, que tem cinco centímetros. eu o olhava, com dezessete anos, a mesma idade que eu tinha quando jogava muito ping-pong e à bolinha, que denunciava minha idade graúda. assim, jogava ping-pong de verdade e com meus olhos e memória também, que iam e vinham, do meu passado para o presente transformado naquele menino grande, e do presente de vista cansada para o passado daquela menina que ainda nem sabia de nada disso.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

paris

aprendi duas frases na aula de francês que já me fazem sentir totalmente habilitada a viver para sempre em paris, usar golas olímpicas, fumar gauloise e escrever sobre o nada: on m'a amérement reproché e je ne te le fais pas dire.

domingo, 31 de maio de 2009

armênia

não conheço a armênia. mas hoje, nos olhos do dono de um restaurante, eu a conheci. 

sábado, 30 de maio de 2009

sono

quando eles dormem, embora já grandes, parecem pequenos, na desproteção livre do seu sono. olho, beijo e acaricio o cabelo de cada um. lembro de quando eu os carregava no colo. tudo isso me dá uma pequena paz, que é tudo de que alguém precisa.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

circo

sonhei que meu nome era maria kazuma e que eu precisava escrever sobre o chico buarque e o jorge de lima. contei para um amigo, que me disse que o disco "o grande circo místico" tinha sido inteirinho baseado num poema do mesmo nome, escrito por jorge de lima. o poema é sobre várias gerações de um circo húngaro. a canção "sobre todas as coisas", que fala de alguém abandonado pelo amor de deus, é uma contra-argumentação a um trecho do poema em que uma equilibrista do circo, que tem a paixão de cristo tatuada no ventre, faz com que os homens que se aproximam dela não consigam amá-la. chico buarque pensa que ninguém deve deixar de amar por amor a deus. pensei também que a maria kazuma do meu sonho era alguma representação do meu desejo de ser a maria kodama, assistente e mulher de borges. imaginei que maria kodama fez uma viagem à hungria, onde ela conheceu esse circo, voltou para a argentina, contou para borges, que deve ter contado a jorge de lima, que escreveu o poema, que foi musicado por chico buarque e, mais tarde, sonhado por mim. não acredito em mensagens, mas na linguagem. os sonhos são, como os poemas, palavras deslocadas, que viajam pelo mundo e pelos olhos, pelas memórias e lugares, reunindo possibilidades. assim eles gostam de ser sonhados.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

buraco

aqui perto estão recapeando o rio pirajussara. já estão fazendo isso há mais de um ano. passo por lá e vejo que se organiza uma sociedade paralela, com reciclagem de lixo, churrascos nos finais de semana, medidas rígidas de segurança, gabinetes de diretores e engenheiros, sinalizações detalhadas para cada atividade. uma placa me chama a atenção: perigo, buraco aberto. naquele momento a placa é o que melhor define o que sinto. entro lá para pedir uma placa daquelas. pode ser uma avariada, moço, qualquer uma. não vai ser fácil, as placas aqui são controladas, contabilizadas e, depois de avariadas, são inutilizadas. você vai precisar fazer uma requisição especial. requisição especial para o buraco aberto? é. ninguém estranha o meu pedido, ninguém pergunta. buraco aberto, lá, é buraco aberto. consigo a placa. coloco na parede da sala. não, meu buraco não é tão grande assim e não há razão para temê-lo.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

joana maria

joana maria, você me olhou e disse que não se lembrava de mim. eu disse que já a conhecia e você respondeu: sou velha e vesga. não lembro das coisas e não enxergo direito. fiquei vesga de tanta tristura. meu marido foi minha grande paixão. não era paixão pequena, não. era grande, dessas de uma vez só. ele morreu e eu chorei tanto durante a noite que acordei vesga. então eu contei a você que minha mãe é iugoslava e você me disse que me ensinaria a fazer um bolo da europa central. não de cereja, que aqui no brasil não se acha, mas de uva preta, a santa isabel, bem preta e bem baratinha. perguntei: mas tem que tirar o caroço? você respondeu: não, a gente come devagarzinho, saboreia mais e depois cospe. depois, você cantou comigo baby e tropicália. joana maria, você pode me ensinar todas as coisas?

terça-feira, 26 de maio de 2009

ainda

minha gata, nina, tem insuficiência renal. por isso, todos os dias, preciso dar água direto na boca dela, com uma seringa. cinco vezes por dia eu a seguro no colo, como a um bebê e olho nos olhos dela. ela também nos meus. o olhar assustado e crédulo. ela crê em mim, apesar do medo. mas nina, eu creio em você mais ainda.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

luzes

estava na rua procurando urgentemente uma papelaria. quando abriu o sinal e eu a atravessar a rua correndo, um velhinho de cabelos desgrenhados, camisa regata branca e larga, calça puída e olhar dilatado, se aproximou de mim e começou: "você viu os vagalumes? tinha um grupo enorme de vagalumes por aqui! é estranho, porque os vagalumes não costumam frequentar essa parte da cidade e muito menos nessa época do ano. são paulo tem milhões de vagalumes, eles iluminam minhas noites e você sabe, não é, que sua emissão de luz vem de órgãos fosforescentes que eles possuem no abdômen, mas tenho ficado muito preocupado, porque sua luminescência tem sido ameaçada pela forte iluminação das cidades que, inclusive, interfere em sua reprodução, o que ameaça até sua própria existência. você já imaginou o mundo sem vagalumes? é por isso que eu fiquei me perguntando sobre a presença desse grupo imenso bem aqui, nessa parte da cidade. você viu?" vi uma papelaria logo adiante e fui andando naquela direção. ele veio atrás de mim e continuou falando. não dei atenção a ele. fiz tudo para que ele percebesse que eu precisava entrar na papelaria. ele acabou se dando conta, seguiu adiante e, logo mais à frente, parou outra pessoa e desatou a conversar. meu deus, onde está esse homem? onde estão os vagalumes, que eu nunca os vi? por que sua luz está ameaçada de extinção pela grande luz da cidade, que ilumina os pedestres que vão atrás de papelarias?

sábado, 23 de maio de 2009

bíceps

poucas coisas existem melhores do que a aula de ginástica da claudia mello e da adriana nunes. mexer os braços para cima e para baixo para fortalecer os biceps, enquanto ouvíamos gilberto gil cantar todos os nomes de deus fez com que me sentisse dentro de uma oração coletiva única e necessária.

N'kukluk'mba .. Oshalah
Odin .. Manitoo .. Xuedeh 
Aggayun .. Göt .. Baoh 
Allah 

Tupan .. N'Olorun .. Tamnarah 
Golorud .. Ualereh 
Zambyn .. Zeus .. Ruwatah 
Iesu .. Jah .. Shalam-Tzieh 

Amaterasu .. Bathalah 
Mandarah .. Unguleveh 
Khrisnha .. Efozu
Amma 

Yambah .. Oshun .. Asdulai 
Kalah .. Okut .. Nyaambeh 
Aquaan .. Akuah 
Jesus .. Rah .. Yelen-Dayeh 

Tentei .. Dio 
Asher .. Dieu .. Dios .. Ymanah 
Kami .. So-Ko 
Lubnah .. Theos .. Yallah 

Maomeh .. Juremah 
Shiva .. Shangoh 
Butzimmy .. Yumallad 
Yaoh 

Dumnezteu .. Banarah 
Gaya .. Munetoh 
Aton .. Amon .. Yemanjah 
Ereh .. Yaoh 

Yansan .. Adonay 
Brahma .. Gedepoh 
Tzikem-Boo .. Atzilah
Yaoh 

D'Olodum .. Yamanah 
Oshossy .. Shido 
Buda .. Gee .. Jeovah 
Ereh .. Yaoh

sexta-feira, 22 de maio de 2009

calma

estava passando perto e entrei no jockey para conhecer as baias onde ficam os cavalos de corrida. em cada baia tinha um cuidador e um cavalo imponente e circunspecto. numa delas tinha um cavalo e uma ovelha. um ao lado do outro. perguntei ao cuidador: "o que essa ovelha faz aqui?". "ela acalma ele, ué. sempre antes de correr coloco ele perto dela. eles conversam e ele fica bem calminho."

quinta-feira, 21 de maio de 2009

história

eu estava sentada no aeroporto, esperando um voo e me chamou a atenção um menino deficiente, com alguma doença mental rara. estavam ele e o pai juntos. o menino tinha uma expressão muito doce, mas batia repetidamente a cabeça contra o corpo do pai. o pai reagia com paciência, mas com um ar desolado também. fiquei pensando na dificuldade de ter um filho deficiente, quando se juntou a eles um outro filho, deficiente também. e logo mais um. eram três filhos com a mesma doença, todos grandes, fortes, bonitos e com a mesma expressão de inocência. lembrei imediatamente de um conto do oscar quiroga, a galinha degolada, que narra a história de quatro irmãos deficientes mentais abandonados pelos pais à própria sorte e mudez. no mesmo instante, sentou-se ao meu lado um rapaz e abriu um livro de contos. espiei, e o conto que ele lia era a galinha degolada. emudeci também. era como se o conto tivesse vindo até nós vivo, para nos ser contado e transformado. acho a ideia de coincidências mais bonita do que a ideia de destino. penso que elas são mais misteriosas ainda do que ele. como se forças narrativas se atraíssem para se encontrarem para aqueles que se interessam por elas. as histórias querem ser contadas. 

quarta-feira, 20 de maio de 2009

enguia

por causa do filme "o tambor", sempre detestei enguias. a combinação de réptil e peixe, cobra marinha, me causava medo e uma ideia sombria dos mistérios insondáveis do mundo. mas cortázar, em "prosa do observatório", compara os caminhos das constelações, no céu, com os caminhos das enguias, no fundo do mar. freud pesquisou a sexualidade das enguias em trieste, cidade do mistério encantador e hoje eu li esse poema do eugenio montale, que finalmente me conciliou com o engima lindo desse bicho de alma verde, que caminha pelo coração das rochas:

A Enguia

A enguia, a sereia
dos mares frios que deixa o Báltico
para alcançar nossos mares,
nossos estuários, os rios
que sobe pelas profundezas, contra a enxurrada,
de braço em braço e depois
de veio em veio, cada vez mais delgados,
sempre mais dentro, sempre mais perto do coração
da rocha, filtrando-se
por regos de lama até que um dia
uma luz desfechada dos castanheiros
acende sua chispa num poço de água parada,
nas valas que se despejam
dos flancos do Apenino, na Romagna;
a enguia, torcha, açoite,
flecha de Amor na terra
que só as nossas ravinas ou os ressecados
regatos pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a verde alma que procura
a vida onde só
reina a aridez e a desolação,
a centelha que diz
tudo começa quando tudo parece
carbonizar-se, galho enterrado;
breve arco-íris, íris gêmea
daquela que teus cílios encastoa
e que fazes brilhar intacta entre os filhos
do homem, afundados no teu lamaçal, podes tu
não crê-la irmã?

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

terça-feira, 19 de maio de 2009

língua

tinha um homem distribuindo jornais na rua. ele mostrou a língua para uma mulher e fez um barulho. eu mostrei a língua para ele e fiz um barulho igual. ele riu. eu ri. foi bom.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

piano

Através das lâminas da persiana, eu vejo várias peças de roupa penduradas no varal, estendendo-se ao sol. Sempre acho essa cena linda, mas não entendo o porquê. Hoje, olhando para as roupas, me lembrei que, quando eu era pequena, tinha uma professora de piano linda e alegre que, para que eu aprendesse a escutar as coisas, me levava para o quintal de sua casa e pedia que eu imaginasse cenas bonitas. Me lembro que, ouvindo alguma sonata, pensei em um varal estendido, com muitas roupas penduradas e uma mulher preocupada em fazer cabê-las todas. A professora gostou muito e agora eu entendi tudo.

domingo, 17 de maio de 2009

arte

conheci uma mulher que trabalha como arrumadeira numa galeria de arte. com o tempo, de tanto ver as obras e os artistas, ela criou sua própria coleção imaginária. uma coleção mental, mas numerada, catalogada e avaliada toda na memória. outro dia ela veio correndo e disse: comprei! comprei mais um! ela escolhe as obras minuciosamente, demora para arrematá-las e finalmente decide. então cataloga na memória e numera. já possui quatrocentas e tantas. agora diga: quem é o artista aqui? 

sexta-feira, 15 de maio de 2009

ninho

coleciono ninhos. mas só ninhos já abandonados pelas mães passarinhas: aqueles que caem ou os que ficam abandonados nas árvores. e não os procuro. são eles que precisam vir até mim, se não não quero. o porteiro da escola veio hoje me mostrar um ninho de beija-flor incrustado numa fenda do muro do estacionamento. enfiou a mão lá dentro e o retirou. uma concha de paus, barbante e fio de nylon muito bem entrelaçados, formando uma trama mínima. menor do que uma palma da mão fechada. lá uma beija-flor fêmea chocou e de lá nasceu um beija-flor pequeno, que agora já deve ser grande e já deve ter beijado milhares de flores, numa velocidade maior do que o nosso olhar é capaz de captar. e o ninho dele, sua casa, mora na minha parede. ninho - que nome lindo para uma casa.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

lagarta

o marceneiro que estava aqui em casa me disse: olha!. na ameixeira do quintal tinha uns doze papagaios. grandes, azuis e verdes, comendo ameixas. comiam como se fossem macaquinhos. descascavam a pele, mordiam e cuspiam o caroço fora. fiquei dançando pela casa como uma lagarta listrada. à noite falei pro joão: vieram doze papagaios aqui. ele disse: nada, eram só maritacas.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

terça-feira, 12 de maio de 2009

água

a leda pegou um táxi outro dia. ele viu que ela lia um livro e disse que adorava ler. que seu ídolo era o fernandes. fernandes? é, o millor fernandes. que ele tinha um livro dele em casa, e que não venderia nem por um milhão de reais. que tinha sido pescador e que pra ele deus existia, sim, mas era a água.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

gata

Seu Adálio, o vigia da minha rua, cuidava de muitos gatinhos que nasceram pela vizinhança, quase todos pretos. Um dia, faz uns seis meses, a carrocinha veio e os levou a todos. Hoje, quando saía de casa, Seu Adálio veio correndo : a senhora não vai acreditar no que eu vou lhe contar. Depois de seis meses, aquela gatinha pretinha, que gostava tanto de mim, voltou sozinha. Foi ontem à meia-noite e meia que eu ouvi um miado. Quando fui ver, ela tava lá no tapetinho. E não me largou mais. Agora disseram que eu posso ficar com ela. Imagina só, seis meses caminhando até voltar pra cá. Como pode um bichinho fazer uma coisa dessas?