terça-feira, 29 de setembro de 2009

dante

pensei numa versão pequeno-burguesa e contemporânea dos círculos do inferno de dante; já colecionei alguns: vários ônibus repletos de crianças se dirigindo simultaneamente ao parque da mônica. uma loja de enfeites de natal, em setembro, na rua estados unidos. uma loja chamada queen pet, cujo painel publicitário mostra um chiuauha cingido com uma coroa vermelha. por enquanto só tenho três, todos pertencentes à mesma categoria e colecionados em cerca de meia hora.

sábado, 26 de setembro de 2009

salmão

no livro ver:amor, de david grossman, a personagem empreende uma viagem marítima acompanhando um cardume de salmões. os salmões atravessam o mar contra as correntezas, enfrentam obstáculos, pulam por cachoeiras, para finalmente chegarem ao seu destino, desovarem e morrerem. a personagem se pergunta: por que será que eles fazem isso? mas depois conclui. os humanos, que vivem com cuidado e medo e que sempre fincam uma espécie de salto alto na terra para não escorregar, não vivem a vida, vivem a morte. os salmões não vivem para chegar em algum lugar, vivem só a vida, perigosa e imprevista. depois, chegam e morrem. afinal, já viveram. que salmões sabidos!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

areia

quando eu tinha uns sete anos, fui a um acampamento e fiquei impressionada porque conheci a areia movediça. era a terra que engolia as pessoas, o fundo do mundo chamando os humanos. um garoto havia caído nela e ficou afundado até os joelhos. vieram os monitores e o tiraram de lá. fiquei com medo e assustada por alguns anos. areia movediça era uma expressão proibida. uns dez anos mais tarde, conheci um garoto que viria a ser meu namorado e futuro marido. ao acaso, contei para ele a história da areia movediça. era ele. tinha sido ele o menino afundado na areia. o fundo do mundo tinha se revirado e agora mais uma vez eu era engolida por forças desconhecidas: o tempo, o acaso e alguma outra coisa que eu não sei nomear.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

pai

meu pai dizia que não suportava duas coisas em uma mulher: meia desfiada e calcanhar rachado. também dizia que o século vinte tinha três maldições: a pílula anticoncepcional, a televisão e a empregada doméstica. era fã do jânio e do fidel e só votava no lula. um de seus sonhos era ser guarda de trânsito; o outro, presidente da república. puxa, que homem legal, o meu pai.

domingo, 20 de setembro de 2009

tiramisu

subindo no elevador para a casa de minha mãe, ela carregava o tiramisu, que é meu carimbo culinário, com uma certa negligência. num determinado momento, a massa escorregou para um dos lados e quase transbordou. eu disse: olha, toma mais cuidado, por favor. e bufei. passaram uns dois segundos, ela se aproximou de mim e me deu um beijo carinhoso.puxa, naquela hora podia até jogar o tiramisu no chão,se quisesse.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

festa

quando eu ainda morava na rua correia dos santos, em frente ao colégio santa inês, cujo pátio eu ficava olhando durante horas, minha mãe me preparou uma festa de aniversário, à qual ninguém compareceu. ficamos eu e minha mãe olhando por aquela mesma janela, esperando alguém chegar e só posso imaginar que a tristeza dela deve ter sido ainda maior do que a minha. fui então, na mesma tarde, para a casa da reny, amiga bem mais rica do que eu, que morava num apartamento duplex na rua silva pinto. na casa dela havia várias amigas reunidas, todas de cochicho e sorrisinhos. o irmão mais velho da reny, charles, tinha um telefone com a forma do paul maccartney, se não me engano. num determinado momento, todas se juntaram no enorme banheiro, saíram e me disseram que eu deveria ir embora, porque elas iriam todas juntas para a casa de uma delas. insisti, disse que queria ir junto, mas elas faziam caretas e inventavam desculpas. fui embora, sabendo que era tudo mentira. se eu contasse essa história hoje para minha mãe, ela nunca acreditaria, porque ela sabe se esquecer do que não interessa. mas eu ainda vejo meu rosto e o dela colados contra a janela e o vapor que minha boca formou no vidro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

armas

david grossman é alguém que, como toda grande pessoa, é um acontecimento e uma experiência de ternura e sabedoria. diz que a literatura deve enfraquecer, e não fortalecer o mundo, porque assim as pessoas se desarmam e pessoas expostas são muito mais interessantes do que aquelas que se entrincheiram. o vocabulário bélico, é claro, não é casual e, em seu caso, é muito mais significativo. expor-se é duro, traz consequências difíceis e indesejadas, mas é a maior subversão.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

mauricio

o mauricio mogilnik foi o maior, o melhor, o mais saudoso e verdadeiro educador que já conheci. de longe melhor que paulo freire, sem sua afetação para o estrelato. era, talvez, a única pessoa, de quem se podia dizer que era bom o suficiente para ser modesto. mauricio, ontem ouvi várias vezes o seu nome durante uma premiação e chorei em todas elas. onde quer que você esteja, pó deitado, pó de estrelas ou conselheiro dos anjos, minha memória está sempre em você.

sábado, 12 de setembro de 2009

donas

na sala de espera do ginecologista: você tem babá? ah, não. prefiro não ter. não confio nelas. ah, eu tenho uma que está comigo há trinta e cinco anos, foi minha babá também. vem da bahia, as baianas são de confiança. mas então é diferente. essas que a gente pega aqui se metem em tudo, pensam que são donas da casa, ficam querendo mandar nas outras empregadas. é, aí não dá certo mesmo. e tem mais uma, elas ficam grávidas também. dá pra acreditar? têm a coragem de engravidar. não, donas, não dá pra acreditar. já sabia que a mediocridade burguesa era muito funda, mas quando a escuto assim, em estado bruto, na minha frente, ainda me dói no pé, no umbigo e no centro da alma.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

barquinho

o epicursimo é uma concepção atomista e materialista da natureza, que busca a indiferença diante da morte e uma ética que identifica o bem aos prazeres comedidos e espirituais que, por passarem pelo crivo da reflexão, seriam impermeáveis ao sofrimento incluído nas paixões humanas. mas eu conheço uma canção que é ainda superior ao pensamento epicurista, embora o contenha: row, row, row, my boat, gently down the stream; merrily, merrily, merrily, merrily; life is but a dream. a tradução literal é: rema, rema, rema meu barco; gentilmente pelo riacho; alegremente, alegremente, alegremente, alegremente; a vida não é mais do que um sonho. gosto especialmente da repetição quádrupla do alegremente e, em inglês, de life is but a dream, que é muito mais bonito do que a vida não é mais do que um sonho. como seria bom dizer, em português: a vida é mas um sonho. mas tudo bem.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

jardim

quando uma menina tão linda como ela fica triste, eu me lembro de uma canção antiga e canto pra ela: a menina mais linda do jardim, tem a trança, o sorriso e a boca mais bonitos do jardim; como ela pode ficar triste, se ela é a menina mais bonita do jardim?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

navajo

Que a sabedoria dos índios navajos esteja sempre comigo.

Feliz possa caminhar.
Feliz com abundantes nuvens negras possa caminhar.
Feliz com abundantes chuvas possa caminhar.
Feliz com abundantes plantas possa caminhar.
Feliz por uma senda de pólen possa caminhar.
Feliz possa caminhar.
Como aconteceu em dias distantes possa agora caminhar.
Que defronte de mim seja tudo belo.
Que atras de mim seja tudo belo.
Que debaixo de mim seja tudo belo.
Que por cima de mim seja tudo belo.
Que derredor de mim seja tudo belo.
Belo belo acaba aqui. Belo belo acaba aqui.

domingo, 6 de setembro de 2009

cossacos

há dias que não me saía da cabeça uma canção russa, de um exército de cossacos, mas cuja letra eu só conheço em hebraico. o refrão diz assim em português: não temos rédeas, mesmo não tendo cavalos; se nos perguntarem sobre o que nós montamos, responderemos: nós montamos sobre nossos cavalos. essas palavras sintetizam uma ideia de desobediência aliada à fantasia que sempre procurei seguir. ao mesmo tempo, elas me surgiram como possibilidade de mote para um conto. mas não consegui descobrir a letra inteira da canção em russo. finalmente, depois de várias buscas, descobri a letra inteira em hebraico e consegui toda a tradução. mas, num determinado momento, a canção fala uma palavra que nenhum google me explicava: budioni. pesquisei em todos os lugares possíveis e nada. após algumas horas, já esquecida disso e depois de receber uma notícia triste, fui me refugiar em um dos livros que mais amo: cavalaria vermelha, do isaac babel. logo na introdução, o tradutor conta que babel era membro da cavalaria vermelha, onde serviam também vários cossacos. o destacamento ao qual babel pertencia era comandado pelo soldado budioni. e foi assim. quase cem anos depois da revolução vermelha, aqui no brasil, a palavra budioni saltitava na minha cabeça e dormia no livro de babel, na estante da minha biblioteca. desavisadamente, fui a ponte e o destinatário de budioni. budioni, babel, canção, cossacos, notícia ruim, tempo, vocês todos formaram subitamente uma massa única e eu agradeço a todos vocês.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

chão

em éfeso, supostamente a cidade em ruínas mais conservada da europa, soube que haveria um concerto, à noite, no teatro romano. chegando lá, o concerto era fechado. só para convidados importantes. esperei a chegada dos músicos - uma orquestra de câmara de músicos pobres e instrumentos cansados (exatamente como eu mais gosto) - e entrei com eles, fingindo ser musicista também. a antiga cidade romana vazia, numa noite de lua cheia, iluminada para a ocasião, e o teatro romano íntegro, cheio de convidados que vinham de um cruzeiro para petroleiros americanos, assistir a um concerto exclusivo de mozart. os convidados, champagne, caviar e eu. no intervalo, a hostess do navio veio gentilmente me perguntar: você é passageira? não, não sou. sinto muito, senhora, mas será necessário retirar-se. saí e fiquei do lado de fora, sentada no chão ancestral de éfeso, onde pisou heráclito, que descobriu a história de nunca duas vezes no mesmo rio, ouvindo o resto de mozart. meu amigo ainda conseguiu dizer para a hostess: já fui expulso de lugares melhores! eu nunca fui.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

oitocentos

descobri o contato do gerente do restaurante fasano e escrevi para ele: sou professora há mais de vinte anos, doutora pela universidade de são paulo, colaboradora de um dos maiores jornais do país e gostaria muito de jantar em seu restaurante. mas não posso arcar com os custos. ele respondeu que me receberia com prazer e que daria um desconto de trinta e cinco por cento. mas qual é o preço de um jantar para dois? oitocentos. com trinta e cinco por cento fica cerca de quinhentos. senhor gerente do fasano, mesmo assim não posso ir. senhor gerente do fasano, o senhor poderia me explicar a origem de todas as injustiças - sociais, econômicas e culturais, no brasil e no resto do mundo inteiro?