quinta-feira, 29 de outubro de 2009

decote

de aniversário, dei uma blusa sem manga e uma camisa de seda para ela. a blusa combinava com os pespontos da camisa e tinha o decote atrás. ela disse que usaria o decote na frente, porque ninguém ia ver o lado de trás. falei para ela: mãe, você veste a camisa e, assim, como quem não quer nada, tira e dá uma viradinha para mostrar as costas. pedi para ela provar a roupa. ela provou e veio mostrar para todo mundo. ficaram lindas. pedi para ela dar a viradinha. ela deu um giro e tirou só um lado da camisa, deixando o ombro à mostra e exibindo parte das costas, cheias de sardas. ela mesma em seguida se envergonhou da própria desenvoltura e todos rimos juntos. tomara que minha memória possa para sempre guardar essa cena, que me fez tão bem.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

pomba

tenho uma gata muito doente e um cachorro epiléptico. sou completamente apaixonada pelos dois e sei que faz parte de uma espécie de moira da minha vida cuidar deles. aprendo muito com isso e só posso dizer que saí ganhando muito mais do que perdendo. aliás, não perdi nada mesmo. mas agora uma pomba começou a se considerar inquilina da minha casa e vem todo dia pousar na muretinha do lado de fora da cozinha, para roubar a ração do cachorro. sempre a mesma pomba. hoje, vi uma sombra pelo box do chuveiro e era ela lá, burra, acreditando que entraria sorrateira em casa. ontem um bem-te-vi bateu a cabeça no vidro da cozinha e ficou um tempo meio tonto, no quintal. gata doente, cachorro epiléptico e bem-te-vi tonto, tudo bem. mas pomba não.

sábado, 24 de outubro de 2009

rugas

parece que o ruim de envelhecer são as rugas. elas são ruins mesmo. preferiria não tê-las. mesmo assim, pensando à distância, elas têm alguma coisa de interessante: são como anotações em um livro. uma pessoa sem rugas é ilegível. mas, além disso, envelhecer tem tantas vantagens: é como se não fosse mais tão necessário ir em busca das coisas, internas ou externas. chegamos num meio do caminho, em que as coisas e você estão presentes, consumadas, razoavelmente compreendidas e agora só basta experimentá-las, até o ponto possível. não precisa ser até o fim, mas já se conhece o caminho e o começo. um certo caminho andado. é bom ver os filhos grandes, a mesa posta, os problemas menos graves e, às vezes, que a maior preocupação do dia seja onde é que fui colocar os óculos?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

pássaro

o zezinho é o jardineiro da escola onde eu trabalhava. conversando com ele, vi que ele gostava muito de passarinhos, como eu, embora eu não entenda nada sobre eles. num outro dia, apareceu no meu quintal um passarinho manco. guardei ele numa caixa, coloquei água numa tampinha de garrafa e espalhei farelo de pão. cobri com um cobertor e deixei ele lá uns três dias, até ele parecer mais animado. mas não voava. no quarto dia, resolvi levá-lo para o zezinho, porque achei que ele saberia cuidar melhor. o zezinho identificou o passarinho na hora: era uma coleirinha. depois de alguns dias, o zezinho me disse que a coleirinha tinha ficado boa, já tinha voado, e que ele tinha uma surpresa para mim. me levou até a pequena garagem onde ele guarda suas coisinhas e me deu uma escultura de passarinho. disse assim: eu fico olhando as árvores aqui da escola e vejo formas de pássaros nos galhos. daí eu só corto e pinto, porque o pássaro já estava lá. e foi assim. troquei um pássaro de verdade por outro, talvez mais de verdade ainda.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

casamento

estávamos eu e meu pai esperando o motorista chegar para nos levar ao meu casamento. fiquei me olhando no espelho e perguntei para ele: estou bonita? ele disse: um pouco gorda. não me lembro disso como um trauma; só acho muito engraçado e um pouco triste também. eu estava realmente um pouco gorda e meu pai também não devia estar muito contente. depois de vários anos escrevi um conto chamado um pouco gorda e até hoje sempre me acho um pouco gorda. bom, também não é tão grave assim.

sábado, 17 de outubro de 2009

coisas

essa é a centésima vez que escrevo aqui e meu desejo é que este blog continue a ser escrito com o espírito e a força do sem-querer, uma das melhores coisas da vida e uma das coisas que a faz ser bela, apesar de toda a chatice das coisas feitas de propósito.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

shampoo

estou fazendo uma tradução simultânea sobre uma nova marca de shampoo. enquanto aguardo a outra tradutora, estudo lukacs, para um curso que vou dar sobre teoria do romance. na sala em que estudo e leio sobre a decadência da objetividade redentora na direção de uma subjetividade perdida, os representantes da nova marca de shampoo falam que o comercial com a chuva não funciona muito bem para mulheres com cabelos ressecados. fico ali pensando que essa confusão e coincidência de registros tem algo de muito bom: é verdade, a subjetividade perdida está lá, no shampoo e na respectiva propaganda. mas, ao mesmo tempo, que chato seria se não existisse um shampoo para me salvar dela.

sábado, 10 de outubro de 2009

escolha

às vezes, percebo que, nas minhas escolhas, existe um componente suicida. me atiro nas coisas perigosamente, sem pensar, para depois descobrir que não deveria. como um exemplo pequeno: se estou dirigindo e falando ao celular, e dou de cara com um guarda de trânsito, ao invés de disfarçar o celular, eu o mostro com todo desprendimento. como um exemplo grande: aceitei uma proposta de trabalho absurda, mal paga e difícil, sem nem ao menos hesitar. faço coisas assim desde pequena. e mais, não me arrependo. esta forma miúda de suicídio me dá um estranho orgulho e me constitui. preciso disso para me sentir ativa e minimamente marginal. talvez não sirva para nada e até me faça um pouco mal, mas preciso sempre morrer um pouco para estar bem viva.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

lóbulo

no ginásio, o henrique e eu éramos os esquisitos. e gostávamos muito de ser assim, inclusive encenando esse papel com eloquência e exagero. o henrique bem mais do que eu. o clóvis era o professor de educação moral e cívica. ele era baixo, gordo e muito bonzinho. o henrique gostava de apertar o lóbulo da orelha dele, que era gordinho. na aula de religião judaica, estudamos a respeito de um rabino medieval que se chamava ibn shaprut. o henrique matava aula e passava em frente à janela da sala gritando: ibn, calibn! ibn, didn, cleibn, vafn, lero, lero! como é bom ser esquisito.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

mãe

quando eles eram pequenos, inventava várias personagens que eram as mães chatas. tinha a nordestina militante de esquerda, a super protetora excessivamente carinhosa, a opressora niilista, a deprimida negligente. eles me pediam: mãe, faz uma mãe chata! agora vão os dois viajar e ficar um ano fora do brasil. sinto calores fora de hora, às vezes um gosto amargo na boca, vontade de ir junto ou uma alegria ridícula porque eles vão ficar tão bem sozinhos. ensino os dois a fazer comidas, o melhor produto para limpar sujeira, peço para me contarem até sobre uma velhinha que eles vão encontrar numa esquina. pronto. virei uma mãe chata.

domingo, 4 de outubro de 2009

estatuto

guardo comigo alguns segredos completamente bobos, mas que faço questão de não compartilhar e que considero quase sagrados, talvez justamente por sua insignificância. cuido de alguns deles diariamente e sei que eles se tornaram meus companheiros. outros não. até esqueço que existem, mas eles caminham comigo. assim sendo, vou criar o primeiro artigo de um novo estatuto dos direitos ao avesso do cidadão: todas as pessoas, desde as crianças até os mais velhos, devem ter pleno direito à mentira e ao segredo. ninguém deve desvendá-los nem desmenti-los; quem transgredir este direito receberá a pena de ter que ouvir a verdade, somente a verdade, durante muitos anos seguidos.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

dança

estamos ensaiando a música ping-pong, do gilberto gil, na academia da claudia mello, para dançar no jardim da luz. somos cinquenta mulheres, baixas, altas, gordas, magras, mais velhas, mais jovens, todas juntas cantando yes-me-we, I and I. somos companheiras, comendo o mesmo pão, rindo juntas dos nossos erros, que são, no momento da dança, o que cada uma tem de melhor. somos lindas porque estamos juntas, porque somos eu e nós, eu e eu, porque cada uma é eu e, nessa hora, excepcionalmente, esse eu é imenso e nele cabem todas as mulheres do mundo.