terça-feira, 29 de dezembro de 2009

fuga

quando meus pais chegaram aqui no brasil, em mil novencentos e quarenta e nove, fugitivos de guerra, meu pai já possuía uma família grande aqui em são paulo. sua mãe, minha avó, tinha oito irmãos e todos já se encontravam aqui há bastante tempo. a origem de minha família no brasil remonta a mil novecentos e quatro, quando, ao deparar com uma noiva arranjada que era surda, muda e manca, o tio-avô de meu pai, lá na polônia, resolveu fugir para o local mais distante que podia imaginar: o brasil. e assim eu estou aqui, digitando coisas neste blog. graças à surda muda manca polonesa.

domingo, 27 de dezembro de 2009

sebo

existe um fotógrafo croata chamado eugen bavcar, que é cego. ficou cego aos poucos, quando criança, mas conseguiu continuar fotografando, com a ajuda de assistentes que verbalizam as imagens para ele. uma vez, em subotica, na sérvia, entrei num desses sebos antigos, cheio de livros amontoados, com um dono evidentemente muito mais interessado em ler do que em vender. entrei e perguntei a ele: você tem algum livro daquele fotógrafo cego? ele me respondeu: você é do monty python?

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

cachorro

o cachorro do goya virou protetor de tela do meu computador. veio lá da espanha, do século dezoito e veio dar aqui, na minha frente, olhando para aquele lugar onde talvez alguém o ajude, com o queixo apoiado sobre uma superfície que eu não sei adivinhar qual é, mas que o impede de saltar e que o faz olhar com mais curiosidade e carência ainda. eu não posso salvá-lo, cachorro, meu amigo, apesar de você estar tão perto de mim. te escolhi para me acompanhar aqui dentro porque também me sinto assim, tantas vezes, como você, olhando precariamente, por cima de um muro alto demais, atrás do qual alguém deveria vir me ajudar. esse alguém, agora, estranhamente, é você.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

trema

as tremas desaparecidas com o acordo ortográfico foram todas se esconder numa caverna. lá elas conversam: você era trema de quê? de gu ou de qu? de aguentar ou de sequela? você gosta dos pontos e vírgulas ou prefere os dois pontos? eu prefiro todas as pontuações em duplas. não gosto das marcações unitárias, como a vírgula e o ponto final. e assim elas passaram o ano falando e falando. agora, quando chegar dois mil e dez, elas combinaram de ir secretamente até as palavras de muitas pessoas legais e aparecer de surpresa, quando a pessoa menos estiver esperando. por isso, se no ano novo, você encontrar uma água com trema, não adianta tentar tirar. ela escolheu você. que em dois mil e dez todos encontrem palavras com tremas inesperadas. e não as tirem de lá.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

frase

vivo apenas aqui e ali numa palavrinha em cuja vogal, por exemplo, perco por um instante a minha cabeça inútil. a primeira e a última letra são princípio e fim de meu sentimento pisciforme. tem umas coisas que algumas pessoas dizem, como essa frase do kafka, que a gente pensa: que droga, era pra ter sido eu!

sábado, 19 de dezembro de 2009

teoria

contra a violência, tenho e pratico uma teoria que deve ser burra ou ingênua ou as duas coisas, mas que eu teimo em acreditar que é certeiramente subversiva. contra a violência, a atitude mais inteligente, civil e eficaz é se proteger cada vez menos. deixar as janelas do carro abertas, sorrir quando um lavador de pára-brisa se aproximar e deixá-lo fazer o seu trabalho, dar esmolas, ter um carro simples, não ter cadeados difíceis nem portões altos e sair às ruas sem medo. deixamos de ser alvo e passamos, ainda pensando de forma burra (e talvez até ignorante) a ser o mais próximos que podemos, companheiros uns dos outros. sempre disse isso aos meus alunos, pratico isso na vida e, por enquanto, não tenho por que me arrepender. talvez venha a pagar pela boca leviana, mas acho que não. e isso não é por algum tipo de arrogância assistencialista, não. é a mais pura vida, que, acredito, quanto mais inábil, mais chances tem de ser democrática.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

proparoxítona

minha mãe é meio húngara, meio iugoslava, porque a cidade em que ela nasceu fica na fronteira dos dois países e lá se falam as duas línguas: sérvio e húngaro. mesmo assim, tenho uma ligação bem mais forte com a hungria do que com a iugoslávia. talvez porque o guimarães rosa tenha dito que quem domina a língua húngara tem parentesco com o diabo e porque o seu mistério está no fato de ela ser toda proparoxítona e quase sem irmãs do mesmo tronco (afora o finlandês), eu sempre tenha sentido muita atração pela língua e, por extensão, pelo país, pela culinária, pelo povo. quando estive em budapeste, fascinada até pela feiúra aparente de pest (parecida com a de são paulo), entrava nas livrarias e perguntava: você tem algum livro sobre os mistérios da língua húngara? os vendedores, sem exceção, respondiam, entre bravos e assustados: mistério da língua húngara? qual mistério? eu dizia: mas é uma língua única na europa; não é eslava, nem indo-europeia. mas isso é mistério? eles falavam. o húngaro é muito parecido com o finlandês, totalmente normal. não existe mistério nenhum na nossa língua. é. eu ofendia os húngaros ao considerá-los misteriosos. aquele monte de obelixes andando lindos pelas ruas e falando proparoxítonas são normais. deve ser que nós, pobres paroxítonos, é que somos pobremente estranhos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

pera

nos casos de brigas leves, não há nada que uma frase como tira pra mim a casca em volta do pão não resolva. mas quando a questão é bem mais grave, densa e resistente, só há duas soluções: o tempo e a pergunta: vamos tomar um sorvete de chokissimo com pera na vipiteno?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

não

vi um urso de pelúcia largado sobre uma cômoda velha, dentro de um apartamento cansado, enquanto passava de carro pelo minhocão. vi quadros de algum artesão frustrado, pendurados do lado de fora do apartamento, ainda passando pelo minhocão. vi a maria bethania cantando lindamente, falando de amor, festa e devoção. vi meus alunos falando do mito de perséfone e de evita perón, dos buddenbrook, do sagrado e do profano. vi uma nutricionista falando de alimentação enteral e parenteral e vi como ela cuida dos seus pacientes e se preocupa para que eles fiquem bons. mas não vi a nina, não vi a nina e só sei isso.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

porcelana

bruce chatwin, um escritor historiador, no livro utz, fala de um colecionador tcheco de raras porcelanas da alemanha. o colecionador percebe nas porcelanas simulacros de golems, figuras feitas de argila que podem adquirir vida, ou que praticamente ja possuem vida, dependendo somente de algumas palavras secretas para que isso ocorra. os colecionadores sempre escondem aspectos estranhos da personalidade humana. parece que guardam em si segredos e idiossincrasias que o restante da humanidade tem vergonha ou dificuldade de conhecer. tenho uma curiosidade amorosa por eles e tambem adoro colecionar. coleciono ninhos, pequenos objetos, cacarecos, brinquedos. parece que, colecionando, guardamos algo repetido mas irrepetivel da passagem do tempo, que fica mergulhado ali, no objeto, retirado da realidade, do seu contexto, morto, mas por isso mesmo secretamente disposto a uma nova forma de vida, cujo nome talvez somente o colecionador saiba.

domingo, 6 de dezembro de 2009

nina

sacrificamos e cremamos a nina, nosso anjo, nossa gata. gosto da palavra sacrifício e da cremação, porque me lembra que, no sacrifício, os animais eram entregues aos deuses, que se alimentam do perfume exalado na fumaça. que a fumaça da nina alimente o ar e os deuses, como ela nos alimentou de alegria e coragem durante toda sua vida.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

orelha

depois de ter entrevistado o philip roth e ele ter feito com que eu me sentisse como uma adolescente lobotomizada e fã da victoria beckham, pela fleugma com que ele respondia a tudo e pela certeza incontornável dos seus nãos, fiquei vagando por nova iorque como uma zumbi boba. primeiro, entrei na takashimaia, uma loja de departamentos japonesa caríssima e com as coisas absolutamente mais lindas que eu já vi, fui ao salão de chá e pedi um chá com biscoitos de cinquenta dólares. tomei o chá como uma lady, mas não foi o suficiente para me recuperar. saí de lá e, subitamente, encontrei a solução. entrei numa loja da disney e comprei um dumbo. pronto, me curei da fúria incansável da genialidade e me amparei nas orelhas burras de um velho amigo legal.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

amor

como é possível ainda encontrar definições inesperadas do amor, depois de quatro mil anos de literatura? o david grossman me (nos) presenteou com isso: alguém com quem estar calado.