quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

pessoas

há muito tempo

as pessoas, quando se encontravam

gritavam:

ah, oh, sim!

agora não.

as pessoas

têm falado muito baixo.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

véu

theodor adorno disse a conhecida frase: "escrever poesia depois de auschwitz é um ato bárbaro". embora esta frase estivesse dentro de um contexto maior e não seja tão restritiva quanto parece, ainda assim, e sem ter vivido nada sequer semelhante àquilo, ouso dizer que, depois de auschwitz, só é possível escrever poesia. como a língua ficou manca diante do uso que dela foi feito, como se tornou impossível falar sobre o indizível em língua de homens, a única língua possível é aquela do incomunicável, do incomunicante, do que não tem como objetivo a impossível comunicação. para falar das coisas como coisas só é possível dizer, como paul celan: "deixa-nos respirar o véu que nos esconde um do outro".

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

esquecimento

o saudável esquecimento da dor parece implicar também, e necessariamente, no esquecimento do prazer. isso faz surgirem algumas perguntas: será que o esquecimento da dor (de toda dor) é mesmo saudável? e será que o prazer também é esquecido porque sua lembrança provoca o medo de mais dores? será que quem consegue esquecer a dor teme também o prazer? uma espécie de termostato da memória parece ligar a dor e o prazer como sensações que guardam certas semelhanças, seja por efeitos físicos, psíquicos e até de origem supersticiosa ou cultural, não sei. sei que, por isso, temo esquecer a dor. temo que, com isso, minha economia mental me proíba de lembrar do prazer.

sábado, 25 de dezembro de 2010

roda

quando eu era pequena, antes de dormir eu imaginava uma roda gigante girando cada vez mais rápido para um mesmo lado, até que ela disparasse desenfreadamente. daí eu tentava parar aquele movimento e girá-la para o outro lado. às vezes eu conseguia, às vezes não. aos poucos fui desenvolvendo uma técnica de blefar a roda. quando ela menos percebesse, em seu giro louco, eu pegava e, num tranco, conseguia fazer ela mudar de direção. daí, dormia.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

sempre

mesmo que a física há muito tempo tenha descoberto que o tempo é irreversível e que caminhamos sem volta para um fim qualquer, todo fim de ano teima em negar essa lei e nos faz acreditar, como num poema, como nas colheitas, como nos nascimentos, que não é nada disso. tudo vai e vai se repetir para sempre e termos chegado a dezembro significa que felizmente recomeçará janeiro e celebraremos humanamente a repetição.





quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

teto

algumas coisas que, de tão especiais (ou banais, ou sagradas), deveriam ter um teto máximo de vezes por mês para serem pronunciadas pelas pessoas:
- verdade (três vezes por mês)
- verbos no pretérito mais que perfeito (uma vez por mês)
- sempre ou nunca (uma vez por mês)
- verbos no futuro simples (duas vezes por mês)
- eu te amo (uma vez por semestre).

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

iou

de acordo com giambatista vico, a primeira palavra pronunciada pelo homem teria sido "iou", de onde deriva "deus". esta palavra seria como um grito primal, resultado da visão que o homem teria tido do primeiro raio. segundo ele, no paraíso não chovia e foi somente depois da expulsão de adão de lá, e com a primeira chuva, que teria surgido a primeira palavra. a língua de adão com deus, para vico, era mental e muda, não pronunciada. o primeiro grito do homem, então, foi consequência do espanto, do medo. será que adão não sentia medo nem espanto? o que será que adão conversava com deus na língua mental? haveria comunicação ou somente uma continuidade integrada de ideias, ou, nem isso, de sensações? o que será que deus podia pensar? por que adão não disse "iou"?

sábado, 18 de dezembro de 2010

para todos os meus amigos que me fizeram tanto bem neste ano

um amigo fala pra o outro amigo: "ah, estou de saco cheio disso, disso e daquilo". o outro: "ah, você sempre está de saco cheio de alguma coisa. isso não é novidade." o um: "é mesmo. você já me conhece há tanto tempo. dessa coisa eu já fiquei de saco cheio no ano passado e dessa outra faz uns três anos." o outro: "então larga de besteira." o um: "larga você." ninguém gosta que eu faça comentários nos finais dos posts mas eu preciso dizer que acho que é por isso que eles são amigos.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

aplicação

toda noite, antes de dormir, ou então quando eu me despedia do meu pai por qualquer motivo, ele dizia: "aplica", que era para eu dar um beijo. aplico, pai; em você, que não está mais aqui e em todo mundo que quiser e aparecer. sou muito aplicada em aplicar, pai.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

trinta

não gosto de balanços de final de ano. para mim, soam como aquelas pessoas que, quando encontramos depois de trinta anos e perguntamos: "oi, tudo bem?", a pessoa responde, vertiginosamente: "tudo bem, há quanto tempo! sou veterinário, casei, tive dois filhos. um é engenheiro mecânico e o outro é budista. mora em valladolid. separei, estou com uma clínica na vila olímpia. está tudo ótimo. e você?"

domingo, 12 de dezembro de 2010

tornado

na bienal há um vídeo de um homem que caminha peremptoriamente na direção de um tornado, e não contra ele, como todos. ele vai em sua direção até entrar dentro dele, com a câmera na mão. lá dentro, ele conta ter sentido paz e silêncio. o tornado é um bloco, uma coisa de ar maciça, um tigre de ar. que lindo ir na direção do monstro, morar dentro dele e sentir-se em paz. sei que a arte é sempre morrer de alguma forma e que sem essa morte não há vida possível.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

verdade

o empreiteiro que está conduzindo a reforma da minha casa chama ede varol. não tive coragem de perguntar para ele a origem do nome, mas, para mim, ele é superior àquele que supostamente o emprestou a ele ou, no caso, o andy warhol. a maior parte do tempo ele fica em silêncio. às vezes ele canta. hoje, ele e o pedreiro ficaram conversando: "a vida é dura mas é boa". "é, é dura mas é boa, é verdade".

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

ivana arruda

ela elogia muito, mas nunca à toa. se não gosta, fala. ela fala de si, mas não é vaidosa nem presunçosa. ela fala de coisas simples da vida dela, mas de um jeito tal que as deixa interessante para todo mundo. ela consegue fazer uma crítica literária com sabor, precisão e que deixa com muita vontade de ler o livro. se ela dá um conselho culinário, eu sigo. ela é corajosa, valente e sua alegria é conquistada, não fácil. a gente pode às vezes discordar dela, mas é uma pessoa de quem é bom discordar, porque nela é tudo tão verdadeiro, que discordar fica bom. eu não a vejo muito, mas eu a sinto como amiga. amiga fraterna.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

isso

uma coisa menos sábia do que o silêncio, menos plena do que uma sensação, menos verdadeira do que a própria coisa. era só isso o que eu queria. será que você poderia me dizer isso?

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

ritmo

a quantidade de coisas viola os ritmos, estabelecendo, em seu lugar, compensações, arranjos, consertos, arrumações, substituições, emendas, improvisos. a respiração também acompanha este rompimento e os ombros sobem, a garganta prende, os dentes atritam, as costas vergam. no final do ano, os dias não passam, mas empurram-se e o natal e o ano novo são dias que ficam lá desmaiados embaixo dos outros dias, só com um dedo para fora, que fica gritando esgoelado: preciso passar, preciso falar uma coisa! de repente, no meio de uma hora atropelada da tarde, um daqueles bichinhos de luz nos lembra que há ritmo ainda, e uma respiração funda e lenta me faz acompanhar uma coisa, por um minuto que seja, em seu tempo propício.

domingo, 5 de dezembro de 2010

receita

receita prática para ser eu: olhar o vidro de geleia para ver se sobrou alguma lá no fundo, mas fazê-lo apontando o vidro para baixo, exatamente sobre a calça do pijama recém-lavado, de forma tal que o único resto de geleia restante, que já está líquido por ser pouco, respingue matematicamente sobre a calça, sendo que a geleia deve naturalmente ser de framboesa, para que a mancha não saia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

leite

amor não é abstrato nem grande. é prático e pequeno. amor é quer um leite?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

dobras

rugas são dobras e dobrar não é reduzir algo a sua metade, como tendemos a pensar, mas duplicá-lo, com o mesmo sentido de duplo ou dobro. assim, venho descobrindo que minhas rugas são duplos de mim, são minha pele agregada de mais tempo e sabedoria. não vou perdendo anos à medida que envelheço, vou ganhando-os. quando tiver oitenta anos, portanto, estarei perto de uns cento e sessenta, dependendo da quantidade de dobras. como faço tudo para evitá-las, mas mesmo assim elas teimam e vêm, talvez com oitenta já tenha uns cento e quarenta e morrerei velhíssima e dobrada.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

visão

meu aprendizado das coisas do mundo é tão absolutamente mediado por palavras, que creio ter desaprendido a praticar o sentido da visão sem esta mediação. para cada trabalho de arte que vejo, quando percebo já estou narrando, pontuando, acentuando, interpretando metáforas. se não consigo fazer isto, quando o apelo sensível é tão forte que me retira as palavras, sinto uma mistura de prazer e abandono. fico só diante de um barulho visual. então me entedio, fico emburrada ou, como no caso de alguém feito anish kapoor, consigo esquecer de mim. ver, para mim, é um esforço que precisa combater décadas de letras, palavras, línguas e histórias atabalhoadas, atropelando-se umas às outras, temerosas de cair por terra no momento em que eu conseguir olhar.

sábado, 27 de novembro de 2010

circunstância

um amor ainda não realizado produz uma sensação de flutuação, de embalo ligeiro, de nostalgia do que ainda está por vir. rapidamente porém, chega a circunstância, líder máxima das forças militares da realidade, e abate a tiros ou simplesmente com um puxãozinho, o voo bobo do apaixonado. o amor que iria acontecer nem foi e já passou. já passou.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

tia

ela me dizia, quando abria a porta: "ói ela, com as calças do pai dela!"; ela falava que eu me chamava noemi porque quando eu nasci, meu pai, que queria muito um menino, teria dito: "no é minha"; ela batia toddy quente no liquidificador, antes de nós irmos para a escola. punha num copo comprido, que ficava cheio de espuma na borda. do bife dela eu não gostava, porque ela batia muito e fritava com alho; ela era bem mais jovem e antenada que minha mãe; era brasileira, estudada, e não estrangeira, o que me dava uma ponta de inveja da minha prima; ela era brava e ao mesmo tempo engraçada; se pintava muito e a cara ficava cheia de pó de arroz; tinha uma casa chique, cheia de quadros e móveis diferentes, com degraus na sala e uma copa acarpetada, com as paredes forradas de madeira. hoje ela morreu e eu só guardo dela o passado. quem era ela, além de minhas memórias? não sei, nunca vou saber.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

degraus

oração bandeiriana para as pessoas um pouco doentes: peço, de coração, que diminuam os degraus das escadas; peço que na televisão só passem filmes bons; peço que a tva assine enfim o universal channel para que os doentes possam assistir house; peço que os hotéis não tenham carpete nos quartos; peço que os livros não deem sono; peço que os remédios para dor de garganta não deem dor de estômago, o que, por sua vez, exige outros remédios, que fazem mal para outras partes; peço que as canjas sejam bem temperadas e sem caldo de carne maggi; peço que a paciência, deusa dos que estão um pouco doentes, jogue sobre nós sua longa manta e não nos peça para descosturá-la durante as noites.

domingo, 21 de novembro de 2010

futuro

todo nosso escopo de memória só se refere ao passado, mas eu quero também uma memória do futuro. lembro do meu tataraneto brincando de serra, serra, serrador quando ele será bem pequenininho e depois, já adulto, lembrando-se disso. meu tataraneto terá o nome de pedro e nunca saberá da minha existência, mas eu sempre me lembrarei dele, sem mágoa alguma por isso.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

gramática

sou contra ensinar gramática. acho que é a mesma coisa que aprender como funcionam todas as partes de uma bicicleta para poder andar nela. a gramática se aprende, não se ensina. ou melhor, só se ensina para quem estiver muito interessado em aprender. agora, preciso falar: adoro a crase, os pronomes relativos e as orações subordinadas. adoro não só seu uso, elegante e diferencial, mas o próprio nome, que remonta ao latim, a um tempo em que gramática e filosofia eram fonte e fruto de um mesmo pensamento. mas desde que esse vínculo se perdeu, é absurdo ensinar gramática como se fossem as regras de falar bem. ela não é nada disso e falar bem em nada depende disso.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

canudinho

o canudinho de massa folhada recheado de creme de baunilha, que um velhinho vendia pelas ruas do bom retiro, numa banquinha que ele carregava no colo, chamava-se atirabaitina, atirabaititina ou batitina batitina?

domingo, 14 de novembro de 2010

filhos

eles são a concentração de sal e sangue que assoma na fronteira entre os olhos e o nariz, quase provocando o choro, que é rapidamente contido para que a sensação se mantenha e não se dissolva em líquido.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

folga

chata é a melhor palavra que existe para as coisas e as pessoas chatas. a vogal "a" duplicada - a mais aberta e por isso mesmo a mais impertinente das vogais da língua - o dígrafo "ch" e a consoante "t", que arrastam a vogal para o chão e criam um misto de martelamento e chiado, expressam perfeitamente a planaridade, a insistência e a folga dos chatos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

everest

uma declaração de amor que eu queria ouvir agora: vamos juntos dar a volta no quarteirão, entrar naquela igreja onde o padre diz que joga bingo, olhar os móveis que estão à venda dentro da rotatória, roubar um rolo de fita adesiva da fábrica na outra esquina e depois almoçar no chinês chamado everest?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

pau

tinha dificuldades em fazer amizades quando era pequena. na praia, então, minha mãe se aproximava de alguma criança e perguntava: "quer ser amiguinho da minha filha?", com isso quase me enterrando na areia de vergonha. a criança geralmente queria e ficava minha amiga. hoje, penso que aprendi, com ela, que ser cara de pau é uma subversão de conteúdo até político. trata-se de uma contorção na expectativa de decoro, que desarma o interlocutor e o obriga a atitudes mais sinceras, porque impensadas.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

que

a frase que deus dirige a moisés, quando se apresenta a ele sob a forma de sarça ardente, diz assim em hebraico: "ani ma she ani". como não há verbos no presente do indicativo em hebraico, a tradução literal desta frase, em português, ficaria assim: "eu o que o que eu". creio não existir tradução mais perfeita para a intenção de totalidade e eterna presença contida nesta frase. ao mesmo tempo, ela também soa como um absurdo eterno extraído de um livro de beckett. enfim, o nada de beckett está muito mais próximo da unidade divina do que nossa incapacidade linguística é capaz de alcançar.

sábado, 6 de novembro de 2010

mia

há dias venho tentando escrever um poema lindo, falando muito mal de um homem-ideia e não consigo. só saem coisas-ideias horríveis. e depois, quando eu olho para ela e a vejo brincando com um peixinho minúsculo de plástico, surfando num anúncio de jornal, se escondendo dos raios da chuva atrás da bicicleta e observando os acontecimentos do quintal a partir de um posto privilegiado no beiral da janela, daí as coisas-ideias já ficam inutilizadas como elas já eram antes de eu escrevê-las.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

sabedoria

sabedoria da aceitação e sabedoria da recusa. não sou sábia o bastante para escolher qual delas adotar. a aceitação é o recebimento gratuito (grato e desinteressado) dos eventos em sua imanência mesma. a recusa é uma briga subversiva contra a adaptação e o hábito que a passagem do tempo forçosamente deposita sobre os mesmos eventos. como saber optar?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

vão

clarice lispector, através de rodrigo s.m., o narrador de a hora da estrela, diz que "rezar é conseguir um oco de alma" e que não se pode querer mais do que isso. rezo, mesmo sem saber em que acredito ou mesmo se acredito, porque na reza abre-se um vão entre as palavras, um vão de palavras e por ela eu sei que posso sim, e me alegra, dizer o nome de deus em vão.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

passamanaria

ia passear com a minha mãe na ladeira porto geral e na vinte e cinco de março. ficava olhando aqueles rolos de fita, de cetim e, principalmente, os de passamanaria. tinha os de florzinha, de borboleta, de bolinha, xadrez, listrados. eu queria. eram iguais aos que tinha no bazar da rua três rios, com a mãe velha, brava e os filhos abobados que serviam a gente. mas na ladeira porto geral tudo parecia mais inacessível, profissional. um dia, sem que eu pedisse, minha mãe me comprou um pequeno rolo de passamanaria estampada. hoje descubro que passamanes são galões estampados entretecidos a fios de ouro, dentro da tradição francesa. mas, para mim, sempre foi uma corruptela de passa na maria.

domingo, 31 de outubro de 2010

liga

dentre as coisas que eu não sei o que são: vento encanado, rodas de liga leve, neoformalismo multiforme alimentado de solipsismo temático, ponto de bala na calda de açúcar e debrum.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

tornozelo

pequena dor no pé: receba o peso do meu corpo, que, pela sua dor, ficou um pouco mais solitário e torto. receba-o com compreensão, pois que ele é ineficiente e não sabe tudo dos equilíbrios, das forças, dos sentidos, das direções. sua sombra, com essa dor, fica projetada um pouco mais à direita e eu nunca fui boa com os dois lados. com essa sombra e uma nova inclinação, posso cair na hora do por do sol, quando as sombras se precipitam. aceite também o peso ainda maior das minhas palavras. essas, então, mal sabem se encaixar em fila. falam pelos cotovelos e meu cérebro tem tantas pontas. aceite tudo, enfim, e me permita atravessar o tempo que você dura.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

multa

ontem, numa aula sobre machado de assis, li uma frase sobre sua obra: "vale a pena viver o drama da existência quando se sabe ser, ao mesmo tempo, coche, cavalo e cocheiro, protagonista e es-
pectador da fria indiferença do destino; quando, em suma, a despeito de saber que a vida não conduz a nada de certo ou positivo, ela vale como drama ou espetáculo." e uma aluna comentou: "e nós levando multa!"

terça-feira, 26 de outubro de 2010

finalidade

imagino que, em função de uma das acepções do verbo "dar" ser a de "resultar", como em "dois em dois dá quatro" ou como em "deu uma dor nas costas", os falantes do português, por associação, acabaram criando a ideia de uma coisa "dar certo" ou "dar errado". é, no fundo, a ideia de que uma coisa resultou certa ou errada. isso, aplicado a relacionamentos, é terrível. um relacionamento resultar errado significa que, como finalidade, ele não correspondeu ao que se esperava dele. mas desde quando um relacionamento é a sua finalidade? se ele aconteceu, ele "se deu"; não "deu certo nem errado". aconteceu. e, até onde sei e acredito, é disso que se trata estar junto.

domingo, 24 de outubro de 2010

ovo

o ovo cozido (que na minha família é ovo duro) é a expressão máxima da dignidade culinária. simples, perfeito na sua integridade de forma, sabor, cores e textura, é a comida dos imigrantes russos ou japoneses chegando ao brasil nas décadas de quarenta e cinquenta, do migrante nordestino que chega a são paulo, da lancheira preparada pelas mães pobres e ricas. não se rende a situações de extrema carência, mantendo sempre classe e altivez; não se subordina a preparos muito refinados, pronunciando-se mesmo sobre os ingredientes mias raros. pede isolamento, para que sua inteireza permaneça como uma das verdades absolutas, em que sempre se pode confiar. consola os tristes, alimenta o corpo e a alma e alegra ainda mais aqueles que somente o buscam por diversão. mas não se deve brincar demais com o ovo cozido. ele é sério e de alguma forma, impenetrável. preenche nossas necessidades mais íntimas, mas não permite violar seu mistério. o ovo é palindrômico, completo, circular, inviolável.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

agelastos

tenho medo de rato; de cobra; de guerra; do bolo queimar; de contemporizar demais; da minha raiva; de raio. mas do que eu tenho mais medo, mais medo mesmo, é de uma coisa que eu acabei de aprender com o milan kundera: os agelastos, aqueles que não sabem, não querem e não gostam de rir.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

particípio

a forma verbal mais bonita da língua portuguesa é o particípio presente. mistura de nome e verbo, passado e presente, ele indica que uma ação está em estado de ocorrência atual, gradual e permanente. assim, o sol poente está se pondo agora, aos poucos e sempre. isso faz com que o sol, de alguma maneira, esteja constantemente se pondo, mesmo quando é de manhã; como se ele estivesse de prontidão para o ocaso, o que efetivamente está. gosto também de pensar que todas as palavras do português que terminam com "ente" ou "ante" também são particípios presentes. dessa forma, estante é aquilo que fica estando para sempre e instante é aquilo que insta, uma instância permanente, uma instabilidade que está sempre em estado de acontecimento.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

mortadela

de algumas coisas que mais me lembro na vida: o pedacinho de vidro de garrafa tônica que eu quase engoli; o sanduíche de mortadela da padaria da tocantins com a guarani; o dinheiro enrolado num elástico que meu pai carregava no bolso lateral da calça de tergal; o henrique se escondendo atrás da cortina enorme da sala da quarta série e me gritando búuuu; o zé maria me chamando de boemiiiiiia quando eu entrava na sala do segundo a; minhas cinco viagens completas entre santana e jabaquara quando o metrô inaugurou em mil novecentos e setenta e quatro; o seriado da família holandesa que naufragava e vivia numa ilha com casinhas no topo das árvores; a brincadeira que eu e a suely fazíamos no rádio da sala da casa dela, fingindo que era foguete; o toddy batido no liquidificador na casa da tia richa; o porta guardanapo com nome do dono, na mesma casa da tia richa; o táxi de um banco só em que minha mãe e eu íamos ao cine paissandu, todos os domingos de manhã, assistir à matinê; os dois pastéis de queijo que minha mãe me comprava no largo do paissandu, depois da matinê; o menino que, enquanto eu dormia numa poltrona do ônibus, na volta da colônia de férias, se sentou lá de surpresa e, quando eu abri os olhos, disse que gostava de mim.

domingo, 17 de outubro de 2010

noção

meus antigos alunos me chamavam de "sem noção". um deles contava que, no grau máximo de braveza, eu virava pra eles e dizia, colérica: "seus, seus, seus....bobos!". enfim, ao longo dos anos e depois de tantas demonstrações de falta de esperteza, acabei concluindo que sou mesmo meio abobada. mas, para além da defesa da bobice (como a que faz clarice lispector), aprendi também a usá-la a meu favor, como um tipo de linguagem - não premeditada - mas ainda assim um aspecto que mais me ajuda do que atrapalha. agora, um dos exemplos maiores de "sem noçãozice" que já cometi, foi quando, durante uma aula, peguei minha bolsa e um aluno perguntou: "tá vazando, noemi?". olhei para minha calça, para o chão, para ele e respondi: "não, não estou vazando! você tá vendo alguma mancha?"

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

bacalhau

sozinha em são paulo, me dei de presente ir ao antiquarius, comer bacalhau. mas nenhum, nenhum bacalhau aguenta as conversas que ouvi: "tenho mais perfil corporativo que de empreendedorismo"; " com uma conversinha aqui, outra ali, elegemos ele prefeito fácil, fácil"; "não quero dispor da ligia de forma alguma; ela é uma excelente funcionária"; "se esse partideco ganhar, melhor; assim me mudo de uma vez pros estados unidos e abro uma consultoria"; "quanto vai sair: doze, no máximo doze milhões; quinze, nem pensar"; "uma mensalidade escolar aqui em são paulo não sai por menos de três mil reais por mês, contando balé, inglês e umas aulinhas de teatro" e o mais indigesto de todos, ainda regado ao som de uma bossa-nova de elevador: "os banheiros aqui de são paulo não se comparam com os da suíça".

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

anjos

se houver mesmo anjos, não os imagino em outro estado que não tristes, apartados de qualquer possibilidade de adaptação, esta praga de uma civilização desaurada. e, entre os anjos que, mesmo não os havendo, sei que existiram, o maior deles foi bruno schulz, que, em um dos contos do livro "sanatório", fala de uma primavera que se fez côncava e vazia, naquele ano de sua infância, até que o personagem descobriu que sua concavidade se devia à revelação que a própria primavera lhe reservava: um álbum de selos. só os anjos conseguem ver as formas dos dias e, mais ainda, enxergar nelas sua razão de ser: a espera, ou a chegada de um presente.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

ditados II

acredito que, pelo fato de meus pais nunca terem dominado muito bem o português, eles nunca pronunciavam ditados em casa, em situação alguma. ditados são propriedade de quem domina perfeitamente uma língua. o resultado disso, pelo menos para mim, foi uma certa "afasia de ditados", que mantenho até hoje. gostaria muito de saber usá-los, mas, quando vejo, faço o uso trocado. assim, sai: tá na hora da onça fumar; o bicho vai comer; atirou no que viu, errou; uma no cravo, outra na ferra bruta; acendeu uma vela pra cada defunto; em gato escaldado não se olha os dentes e uma coleção de deslocamentos e misturas de diversas origens. mas não é que às vezes funciona?

domingo, 10 de outubro de 2010

combinações

combinações aparentemente impossíveis que já presenciei: um saxofonista dinamarquês na turquia; um crítico de comida búlgaro e gay em varsóvia; uma ex-professora de cinema morando na rua; um estudante de medicina motorista de táxi em budapeste; um sorveteiro, em fartura, que já leu camus, sabe nelson rodrigues de cor e não gosta do estadão, só da folha; um vigia de usina de açúcar que acabou de aprender a ler e está escrevendo um livro; uma ovelha que acalma um cavalo no jockey clube de são paulo.

sábado, 9 de outubro de 2010

vingança

eu vi: no casamento da minha sobrinha, às quatro horas da manhã, dezenas de são paulinos cantando juntos o hino do corinthians, guiados pela bateria da gaviões da fiel e isso me deixou muito, mas muito muito feliz.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

leda

quando ela ri, e assim cumpre o destino de ser alegre, como quer o seu nome, sei que a vida é vã, que não tem nem nunca terá utilidade alguma e é justamente isso o que mais me consola.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

tangente

uma das melhores formulações de milan kundera, que é melhor teórico do que escritor - ou melhor, acho que é um escritor teórico - é a seguinte: no tempo de dostoievski, a culpa ia atrás da punição; no tempo de kafka, a punição é que vai atrás do culpado. kafka literaliza nossa culpa incontornável; somos culpados antes de termos infringido alguma lei e a lei não serve para nos proteger, mas para nos punir. a máxima de outro gênio da língua, roland barthes, também cabe perfeitamente aqui: fascismo não é proibir de dizer, mas obrigar a dizer. estamos todos cercados por uma língua cada vez mais carregada de mediações -tecnicismos, jargões - que nos impõe caminhos que percorremos sem perceber e que, quando vimos, já nos levaram à infração. cada vez me parece que a única via é a do jogo dentro deste código: atirar bolinhas de gude na língua, levantar a bola de um jeito tão deslocado, que a língua não consiga cortar de volta. a bola lhe chega torcida e ela se contorce toda para pegá-la. daí sim ela fica nossa amiga e aliada e conseguimos passar, de fininho, pelas tangentes que as senhas deixam largadas por aí.

domingo, 3 de outubro de 2010

livro

gosto dos livros eletrônicos, mas como prefiro os de papel e não quero que eles desapareçam, estou listando motivos prosaicos, mas fundamentais, para mantê-los. um: com os livros eletrônicos não se pode conhecer a personalidade de uma pessoa, quando se vai a sua casa, observando as lombadas nas suas estantes. dois: quando se fecha um livro eletrônico, não dá pra continuar olhando para a capa e saber que ele está lá parado, a sua espera, para garantir seu sono e saúde. três: não dá para folhear um livro eletrônico. quatro: não dá para tomar vinho, cozinhar e comer em cima de um livro eletrônico. cinco: não dá para tomar banho de banheira com um livro eletrônico no colo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

intersecção

trivial, etimologicamente, é a posição da prostituta que espera na intersecção entre três caminhos. sempre achei que só a trivialidade nos salvaria da mediocridade e das alturas, onde só moram deuses e santos. mas não sabia que, desde sua origem lexical, ela o faria de forma tão precisa e criativa.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

tamanquinhos

o tio arthur me deu o grande livro de poesia para crianças, que eu lia todas as noites. hoje, por causa do barulho dos meus chinelos, lembrei da canção dos tamanquinhos. troc, troc, troc, troc, vão cantando os tamanquinhos, troc, troc, troc, troc, ligeirinhos, ligeirinhos, troc, troc, troc, troc, pelas portas dos vizinhos. tamanquinhos, vocês cantam o som que faço quando desço as escadas, quando vou para o trabalho, quando fico triste, quando converso com alguém. vocês reverberam ritmados no fundo da memória, enquanto a vida vai passando e, quando vocês decidem, como hoje, vêm à tona me lembrar que, para sempre, são vocês que coordenam meus passos e meus caminhos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

graciliano

severino, porteiro do tuca, que é de palmeira dos índios, cidade de graciliano ramos, me contou esta história: quando graciliano era prefeito de lá, uma mulher que vendia bananas teve toda sua mercadoria pisoteada por um cavaleiro arrogante. era domingo. ela se dirigiu imediatamente à casa do prefeito, que terminava o café da manhã, e lhe contou toda a história, reclamando do prejuízo. graciliano mandou chamar a polícia, que caçou o tal sujeito e o trouxe até sua casa. graciliano então exigiu o ressarcimento. o fulano tirou o dinheiro do bolso e disse: isso aqui que eu tô dando é uma esmolinha. graciliano disse: tudo bem, então. a esmola o senhor dá, agora o prejuízo o senhor paga. e fez o sujeito pagar duas vezes.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

bastante

desconfio que a palavra bastante, ao menos do modo como vem sendo usada, é mentirosa. ela diz exatamente o contrário daquilo que parece dizer. dizer que alguma coisa é "bastante boa" é um eufemismo para não dizer que ela é ruim. o mesmo com "bastante inteligente", "gostei bastante" e, principalmente, para a pior de todas as apreciações de alguma coisa: "bastante interessante". que a vida sempre me proteja de ser "bastante interessante". afinal, bastante é só o que basta e só o que basta não é bastante.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

fresta

quando a gente dorme, as palavras ficam também dormindo numa caixa amarela. no momento de despertar, a tampa da caixa se abre lentamente e, pelas frestas, algumas palavras vão saindo aleatoriamente. então sai assim: "a senhora já viu uma coisa dessas?"; "lambuzado"; "dá cá aquela palha"; "verde-musgo"; "atrás do trio elétrico". elas aparecem já na nossa boca e, quando vemos, estamos falando. daí elas saem para o ar, onde se misturam com o relógio, a luz do dia, os barulhos distantes. elas não gostam muito disso e voltam para perto de nós, já todas arrumadinhas. querem entrar. a gente pega as palavras, dá uma organizada e, também um pouco tristes, condescendemos e começamos a falar coisa com coisa.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

poder

cada vez parece mais que todos optam pelo silêncio. não o silêncio contemplativo, que escuta e demora. mas o silêncio de quem não quer se comprometer. vamos a lugares, encontramos pessoas e aprendemos a falar pouco, cada vez menos. este tipo de silêncio é linguagem de poder, porque ele encerra um conteúdo claro: "não preciso de você". tendo a pensar que este tipo de discurso enviesado, mas altamente funcional e eficiente, na verdade diz exatamente o contrário: "preciso tanto de você, que jamais vou deixar que você ou alguém perceba".

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

oi

adoro a palavra oi. mal parece expressão fática, de tão expressiva e comunicativa que é. como dizer melhor o reencontro, o prazer de avistar, a brevidade do cruzamento, a brasilidade do cumprimento? ela expressa alegria rápida, surpresa e, como som, ela é completa, redonda e, por ser um ditongo monossilábico decrescente, termina rapidamente e com conclusividade o que quer dizer. o oi é ótimo. mas o problema, o problema sério, com o qual não consigo me acostumar e que me atrapalha os encontros sociais, é o "tudo bem?".

sábado, 18 de setembro de 2010

dente

como é digno ter um recipiente no banheiro onde se guardam as escovas de dentes de cada pessoa da casa e reconhecer: essa é dele, essa é dela, essa é minha. prometo, por tudo o que me é sagrado, ter um potinho para as escovas de dentes, independentemente do que possa acontecer na minha vida.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

solidão

a solidão pode ser um presente. ela obriga ao silêncio, que é a melhor resposta para grande parte das perguntas. obriga ao espaço mais amplo e mais vazio, onde o corpo respira com mais extensão e mobilidade. ela nos faz ouvir a respiração, ver melhor a pupila azul da gata. ela dá mais peso e espessura ao tempo e quase é possível ouvi-lo passar. ela é cerimoniosa e não convencional como os encontros fortuitos. ela é uma companhia que vai se descobrindo aos poucos, sempre cheia de novidades e seus segredos só se revelam com muito cuidado e graça. ela habita a noite, mas vem me visitar também durante o dia, especialmente às tardes. senta embaixo do armário do corredor e quando eu a avisto, digo: olá, solidão, entre no meu quarto, você quer um café? ela nunca quer, não gosta de incomodar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

ditados

ditados de que eu não gosto: deus ajuda quem cedo madruga; de boas intenções o inferno está cheio; mais vale um pássaro na mão do que dois voando; amigos, amigos, negócios à parte; não existe almoço grátis; dize-me com quem andas e te direi quem és; se conselho fosse bom, era vendido, não dado; é de pequenino que se torce o pepino; o ócio é a mãe de todos os vícios; lavo as minhas mãos; cada macaco no seu galho; cada qual é para o que nasce; desculpa de aleijado é muleta; gosto não se discute; manda quem pode, obedece quem deve; não se deve dar pérolas aos porcos; o pão do pobre cai sempre com a manteiga virada para o lado de baixo; passarinho que anda com morcego, acaba dormindo de ponta-cabeça; quem pode manda e quem não pode, faz; quem empresta, adeus; quem sabe faz, quem não sabe ensina; todo homem tem o seu preço.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

ovos

ele foi visitar o campo de concentração onde esteve sua avó e encontrou ali, no chão, uma nota de cem zlotys. como estava junto com um grupo de mais vinte pessoas, todas jovens como ele, resolveu que aquela nota poderia transformar aquela viagem numa lembrança única, como era única sua passagem por lá, onde sua avó, cuja história, embora em tudo se assemelhe a de tantos outros prisioneiros, também viveu uma história única. passou por uma loja de lembranças e comprou vinte ovos de cerâmica decorados, típicos dessa região da europa. no final da viagem, ofereceu um ovo a cada membro do grupo. o dinheiro no chão do campo de concentração, que lambia a face da morte, se transformou, pelas mãos de um menino, em ovos de páscoa para vinte jovens brasileiros e a vida então cresceu, se multiplicou e da memória nasceram ovos únicos e bonitos.

sábado, 11 de setembro de 2010

camundongo

em mais um livro inacreditável de philip roth, o teatro de sabbath, ele fala dos três camundongos cegos: iria, deveria e poderia. sim, são mesmo três camundongos cegos essas criaturas tirânicas conjugadas no futuro do pretérito. pequenos, horríveis, temerários e nunca conseguimos matá-los, mesmo que sejam cegos. sua cegueira os fortalece, os torna companheiros no infortúnio, que é o pior tipo de parceria que pode haver. juntos, eles decidiram rir da nossa cara; nós, criaturas totalmente submetidas ao seu poder. é preciso fundar a revolução do presente do indicativo, feita de gatinhos, cachorros e elefantes que enxergam, fazem barulho, não precisam ser exterminados e gritam pela cidade, em altos brados: devo, posso e vou.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

skype

a moça do ibge veio aqui. perguntou: tem filhos? disse que tenho e que os dois estão fora do país. daí falei: graças a deus que tem o skype. sem ele não sei o que seria de mim. ela perguntou: é seu marido?

terça-feira, 7 de setembro de 2010

doce

doce de papoula; sundae de chocolate com cobertura e fundinho de chocolate; torta de ameixas e damascos; rocambole de nozes; bolo de mel; tiramisu; brigadeiro; bolo bem molhado de coco; bolo bem molhado com abacaxi em calda virado de cabeça pra baixo; doce de semolina com amêndoas; doce de pistache; doce de leite; doce de abóbora sem coco e com coco; doce de mamão em pedaços grandes; torta de ricota doce; doce de casamento com aquela noz bem grande no meio; bolo de casamento molhado com gosto de nada; bolo com recheio de doce de leite; suspiro; só a raspinha de chocolate dos bolos de aniversário; bolo de fubá; pamonha; sorvete de pistache queimado; picolé de coco queimado da praia do gonzaga; compota de pêssegos da minha mãe; pão doce com creme escorrendo para fora; sonho de padaria; biju; bis bem geladinho; chocolícia; crepe de banana; qualquer coisa com banana doce; farofinha doce; bolinho com geléia de goiaba da minha mãe e todos os doces gostosos nesse ano de cinco mil setecentos e cinquenta e um novo e doce que vai começar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

dança

fui ver o ensaio dos dançarinos da são paulo companhia de dança. não consigo nem imaginar que o espetáculo seja mais bonito do que o ensaio. ensaiando, eles se olham no espelho, testam todos os movimentos diversas vezes, sorriem e fazem caretas e eu, a espectadora, posso ver os seus corpos bem próximos de mim. não são corpos. são verdades moventes, extensões do espaço, a própria verticalidade e horizontalidade caminhando puras em minha direção. a linda menina que faz o fauno de debussy, depois do ensaio, vem conversar comigo: "como a vida é sem graça quando não sou um fauno." menina, você é a graça que, por sorte, também solta palavras que consigo entender. as outras, as línguas que esses dançarinos falam, estão em dicionários secretos e é preciso conhecer códigos ocultos para abri-los. por enquanto, só me resta olhar, por uma fresta do muro do mundo, essa totalidade que fala uma língua adâmica.

sábado, 4 de setembro de 2010

paixão

pelo que uma pessoa se apaixona? nada de substantivos abstratos, ideias, comportamentos. ninguém se apaixona pela inteligência, a generosidade, o caráter. o que move o pathos, essa febre que junta o corpo e a alma mais do que muitas religiões, é a pálpebra caída, o paletó amassado, dois canudos no lugar de um e o jeito mais aberto de pronunciar uma letra.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

sapatos

ali, deitada na cama dela, fiquei olhando os sapatos ao pé do armário e o cabide pendurado na maçaneta da porta. no cabide, a roupa que ela vestiu ontem. a camisa lisa de manga estampada, com as mangas ainda arregaçadas, tão a cara dela, tão bem penduradinha. a bolsa imitando couro de crocodilo, compacta, com um fecho dourado, em outra maçaneta. outra bolsa mais para um canto mostrava que ela tinha ficado na dúvida, na noite anterior, sobre qual combinava melhor com a roupa. mas os sapatos, especialmente eles. pequenos, com um salto baixo, também bege, ali, um ao lado do outro, me fizeram pensar como aquilo que eu via era ela viva, como a sinto viva e próxima naqueles sapatos dispostos daquela forma e como não quero nunca vê-los guardados não ali, mas dentro de algum armário.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

pão

aprendi que a etimologia de lorde vem de hlafweard e significa "o senhor do filão de pão", daí também a palavra loaf, pedaço de pão, em inglês. lord, ainda em inglês, é uma das formas de referência ao próprio deus, como entoam vários hinos gospel e a canção de janis joplin: "oh, lord, won't you buy me, a mercedes benz", cuja tradução poderia ser: "oh, senhor do filão de pão, não dá pra você me comprar um mercedes benz?". fico imaginando os ricos lordes medievais, ou anteriores até, todos agarrados a seus filões de pão. trocaram-se os filões, mas a verdade é que até hoje os lordes estão agarrados a seus míseros pães.

domingo, 29 de agosto de 2010

sim

quando a gente quer muito que alguma coisa dê certo, é preciso, sim, como todos dizem: paciência, perseverança, determinação. mas, acima de tudo, uma coisa é indispensável: distração.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

ser

anaximandro, refletindo sobre o sentido da existência, conclui que o melhor seria não ser, já que o homem tem direito a ser, mas morre, o que tornaria a própria vida um paradoxo. bartleby, dois mil e oitocentos anos mais tarde, responderia eternamente a seu chefe, que lhe pedia uma tarefa: prefiro não fazê-lo. bartleby, que já é um enigma de rebeldia e autonomia na estranha forma de uma recusa solitária ao mundo do trabalho, fica ainda mais potente quando carregado com esse precursor pré-socrático e poderia então responder: desculpe, senhor, mas o melhor seria não ser.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

mulheres

um grupo de mulheres é como uma cadeia de montanhas e, ao mesmo tempo, uma sucessão de ondas de tamanho médio. nossos corpos juntos são fortes, quase inacessíveis e percebe-se que, por trás e no meio deles, escondem-se outras terras e línguas como também pequenos insetos que cavam buracos fundos e plantas de espécies nunca exploradas. mas somos também ondas, móveis e leves, avançando e recuando, trazendo mais conchas e moluscos para a praia, que, esta sim, são os homens que se estendem, extensos e parados, a nos aguardar.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

nomes

os ostrogodos magiares, a quem eu respeito muito, e que falam uma língua que, de acordo com guimarães rosa, só fala quem tem parte com o demo, me enviaram lá do fundo do tempo e das planícies húngaras, duas pessoas que eu mal conheço, mas com quem me sinto prontamente identificada: adriana komives e veronika paulics. como gosto de ouvir esses nomes que terminam em s, precedidos de consoantes cujas combinações são estranhas ao português. como gosto da letra k nesses nomes, que os torna imediatamente antigos, ou mais que antigos, ancestrais. pessoas com esses nomes estão aí para tudo, haja o que houver, e lutariam tranquilamente contra os godos nórdicos numa batalha de drakkars. agradeço a este blog, aos ostrogodos, aos nomes das minhas amigas e a elas, por levarem a força de seus nomes para sua vida, para o mundo e, como um acaso destinado, também para mim.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

consoante

torta é de comer; truta também; trator é de andar; trato é de cumprir; rota é de seguir; tártaro é de temer; torta também é de desviar; ator é de imitar; rato é de assustar; tiritar é de tremer; treta é de enganar; rito é de repetir; arte é de brincar; trote é de pular; reto é de desentortar; tora é de pesar; toar é de cantar; irritar é de brigar e já estou me afastando da brincadeira porque não lembro de outras palavras com t e r, que, juntas, formam um dos melhores encontros consonantais da língua portuguesa.

sábado, 21 de agosto de 2010

dualidade

onde, quando e por que deus estiver, ele se alegra em saber que existe um homem que é padre, mora no grajaú, em são paulo, acorda às quatro horas da manhã, pega o trem às cinco e cinquenta, vai até a estação usp, pega o ônibus até a estação vila madalena do metrô, vai até a estação sumaré e anda a pé até a puc, na rua monte alegre, onde chega antes das nove para assistir minha aula e me ensina a diferença entre dualidade e dualismo, e por que deve se fazer uma leitura alegórica sobre o fato de eva ter nascido da costela de adão.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

piada

quando eu era bem pequena, meu pai me punha para dormir quase todas as noites. ele se deitava ao meu lado e eu sempre pedia para ele contar a mesma piada. daí ele contava: "isaac e jacob eram irmãos e estava muito frio. jacob pediu para isaac: isaac, feche a janela, está muito frio lá fora. e isaac respondia: e se eu fechar a janela, vai ficar mais quente lá fora?" ele contava e nós sempre ríamos como se fosse a primeira vez.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

machado

às vezes ouço o som de uma palavra como ax, que é machado em inglês e tenho a sensação de estar diante não de um significado, mas da origem mesma da língua. daí penso em acha, que em português é um monte de lenha; em eixo, que em inglês é axis; na letra h, que é em espanhol é ache; no próprio desenho do machado que lembra uma letra, e que, de tão necessário e original, deve ter inspirado os primeiros inventores das letras e pictogramas; penso na letra xis e na própria palavra ax. como é possível que haja uma coincidência tão grande entre um objeto e o som que coube a ele? e por que só em inglês? por que não temos direito, nós, em português, a dizer axa para o machado?

domingo, 15 de agosto de 2010

nota

só outro dia aprendi que blue note é a nota triste, associação que eu nunca tinha feito antes. me contaram que essa nota é uma herança das escalas musicais entoadas pelos africanos em suas canções de trabalho. assim, numa melodia diatônica tradicional do ocidente, a nota triste soa como uma nota inesperada na linha melódica, uma terça, uma quinta, ou uma sétima mais para baixo. quando o ouvinte espera um intervalo maior, vem esse intervalo menor e é essa diminuição do tempo entre duas notas que é triste. a tristeza, ou melhor, a tristeza azul, é a diminuição do intervalo esperado.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

chopin

cada nota do noturno opus nove número dois de chopin soa como uma possibilidade inteira, a terra inteira se curvando na direção do sol, o mar obedecendo ao vento, ou somente um palito de fósforos riscando o fogo. as notas seguem umas às outras, mas é como se não precisasse; como se cada uma delas, mesmo nas sequências mais rápidas, existisse sozinha e a outra só viesse para lhe fazer companhia. a melodia bate diretamente no peito e posso sentir meu coração e pulmão mais firmes e prontos para a vida.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

ou

era um homem chamado flavio, ou um acento circunflexo na letra errada, ou um ponto de ônibus vazio, ou os braços cruzados de uma mulher muito gorda, ou as rugas nos cantos dos olhos de uma senhora que podia ser minha mãe, ou o ferrinho de prender pão solto no chão da cozinha, ou o sinal amarelo piscando sem parar numa esquina de pinheiros, ou um exercício de ginástica mal feito, ou um sonho que perambulava em busca de alguém que o sonhara, ou uma menina bonita de saia roxa, ou a meia-calça brilhante de outra menina, ou a lâmpada pequena num fiário de lâmpadas maiores, ou o paralelepípedo quebrado numa rua antiga do butantã, ou a fita de vhs numa vídeolocadora, ou um pedaço da meia soquete que estava um pouco desfiado, ou a alça meio arrebentada de uma mala verde, ou a prega de um vestido bonito, ou uma mosca dentro de uma teia de aranha?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

corredeira

o david e eu decidimos fazer um rafting no rio jordão. eu estava emocionada por estar no mesmo lugar onde jesus foi batizado e o david não estava nem aí. o rafting foi, aos poucos, se revelando como um programa familiar demais para o nosso desejo de aventura. era liso, não tinha nem uma única corredeira. o barco só ia indo. do nada, resolvemos então começar a cantar músicas dos beatles. i wanna hold your hand; help; yesterday; norwegian wood; eleanor rigby e, depois, cassia eller: quando o segundo sol chegaaaaar, para realinhar as órbitas dos planetas. gritávamos no rio jordão. foi muito melhor que corredeiras.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

fechadura

uma fechadura tem vários buracos. uma pessoa tem todas as chaves para abrir esta grande fechadura. mas ela não consegue enfiar todas as chaves nos buracos correspondentes de uma só vez. ela tenta então colocar uma de cada vez. mas quando ela acerta uma, a outra se trava, porque a fechadura só aceita que todas as chaves sejam colocadas simultaneamente. a pessoa estuda, durante muito tempo, as coincidências entre os dentes das chaves e os orifícios de cada entrada. mas não consegue segurar tantas chaves nas posições corretas de uma só vez. cria então um mecanismo de suspensão das chaves nas posições certas, insere-as e coloca-as todas em suas entradas correspondentes ao mesmo tempo. a porta se abre, mas já se passou muito tempo para que a função cabível fosse cumprida.






torre

não tive acesso à torre. os infinitos andares subterrâneos e circulares, por onde andavam gaiolas de aço gigantes, tinham catracas, controles automáticos, senhas e cartões que eu não possuía. precisava falar com auto-falantes, me identificar, me credenciar e a cada andar a espécie de visitante era diferente. pedestre? funcionário? carona amiga? idoso? cadeirante? visitante? trabalho temporário? os controladores diziam, através de suas caixas falantes, que eu era a mesma. a mesma se encontra no g2. a mesma está se encaminhando para o g3. a mesma não está credenciada. quando saí de minha pequena gaiola, decorei o número e a letra: c9. fui me dirigindo à torre que várias placas enormes anunciavam: acesso à torre, acesso à torre, acesso à torre. subi sete escadas rolantes, perguntei muitas vezes onde ficava o auditório, recebi um crachá e cheguei ao que imaginava ser a torre. lá, uma pobre mulher me esperava aos berros. eu estava muito atrasada e já haviam encontrado uma outra pessoa para me substituir. fiquei parada olhando os estudantes chineses sorridentes passando para entrar na torre. fui enviada de volta ao c9 no g3, que, na verdade, era b9 e eu estava bloqueando outra gaiola. seria satisfatório, o homem falou, que a mesma se retirasse. a mesma se retirou. a mesma não quer ter acesso à torre.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

vírgula

a palavra vírgula é feia, mas muito orgulhosa de si, o que a torna subitamente bonita. a proparoxítona, misturada ao r e ao g a tornam gorda, deslocada. mas é justamente esta combinação esdrúxula que a faz parecer assumida em seu som estranho e em sua função essencial na língua. como uma maçaneta ou uma dobradiça que sabem que não são porta nem janela, mas que, sem elas, portas e janelas não existiriam. a vírgula é um cotovelo da língua.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

contra

nunca, por mais que me expliquem minuciosamente, consigo entender a diferença aparentemente óbvia entre contra a luz e a favor da luz. um dia desses, de repente, me dei conta de uma possível explicação para esta teimosia em não aprender. uma vez, com cerca de uns oito anos, dormia num acampamento, num galpão onde havia centenas de beliches. acordei no meio da noite com vontade de fazer xixi. minha prima, que sempre era mais esperta do que eu, dormia na cama de cima. desesperada, eu a acordei e perguntei: suely, onde fica o banheiro? ela disse: conta sete janelas. eu ouvi: contra sete janelas. fiquei pensando, aflita, "contra sete janelas?" o que será isso? já tinha ouvido adultos usando esta palavra no sentido prepositivo, e achei que deveria saber, mas fiquei com vergonha de perguntar o que seria contra sete janelas. fiz xixi na calça e para sempre fiquei com medo da preposição contra.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

carlota

o seu madruga disse que meu carro está sem carlota. agora eu quero uma carlota para o meu carro, mas não o tempo inteiro. ela iria me contar as novidades sobre minhas primas, as notícias menos importantes do jornal e iria cantar músicas antigas, talvez até árias alemãs do século dezenove. mas quando ela começasse a falar demais, e eu quisesse ficar sozinha, daí botava ela calada de volta na roda.

sábado, 31 de julho de 2010

nome

à etimologia de deus, de theos, do grego, que significa ser supremo, prefiro a de god, que, lá das lonjuras ostrogodas, significa suco, daí: aquele que se derrama sobre nós. o deus suco se mistura conosco. gosto demais também de um dos nomes de deus em hebraico, que é mesmo "o nome". outra designação linda, também em hebraico é somente o artigo "o". deus como o nome de deus, ou como o artigo que precede seu nome, soam como magia, domínio de uma língua sagrada, que abriria portas, assim como abracadabra. agora não sei se prefiro o nome ou suco, mas ser supremo, definitivamente não.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

caras

um poema meu sobre o tempo dos olhos do cachorro saiu na revista caras. na capa, aparece a adriane galisteu grávida. acima do trecho do meu poema, dois cachorros bonitinhos se entreolham. de início, fiquei brava; depois, condescendente e agora, um pouco feliz. ingresse no mundo feio, meu poema, vá até a cerimônia do casamento de georgette mirna e ao batizado do filho do jogador do atlético mineiro. espie por baixo dos vestidos versace e conheça o castelo de caras em punta del este. siga o seu caminho, meu poema e me mostre de volta o que eu ainda não conheci.

terça-feira, 27 de julho de 2010

memória

a memória como os nós de uma árvore, como as divisões do corpo de uma cobra, como as camadas geológicas da terra. os acontecimentos se sedimentam, não superpostos, mas agregados. assim, minha avó que tinha vergonha de se sentar, porque saberiam que ela tinha nádegas, se mistura com a briga que tive com a professora de português no primário e, possivelmente, até com a comida de ontem, se, por um acaso, ela recendia a algum sabor da casa de minha avó. à noite, entregue à dissolução dos sedimentos, sonho que minha avó e minha professora entraram em minha cozinha e vieram jantar comigo. já acordada, naquele estado privilegiado que precede a vigília, sinto uma ligeira vergonha de existir.

domingo, 25 de julho de 2010

gagueira

na primeira parada do trem de naharya para tel aviv, entraram mais de vinte soldados. eles rapidamente se acomodaram e eu logo percebi que eles se dividiram entre os russos e os etíopes. sentaram três etíopes ao meu lado e, à minha frente, quatro russos. um dos soldados russos era gago. ele dizia: "s..s...s...s...slushai mi", que quer dizer "me escute". eu nunca soube que podiam existir soldados russos gagos num trem de naharya para tel aviv.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

acento

os acentos são rastros de um tempo em que ainda havia uma conexão próxima entre a língua falada e a música. indicam tonicidade, atonicidade, agudos e graves, portanto também volume, potência e arranque da dicção. se sumirem os acentos que ainda nos restam, as palavras vão ficar cada vez mais mudas, parecidas somente com seu significado, que talvez seja o que elas têm de pior. como é bom ouvir o som de ágora, de agora e de angorá; de vírgula e de mosquito. como me consola saber que todas as proparoxítonas são acentuadas e como é chato pensar que não se acentuam mais as paroxítonas terminadas em ditongo crescente.

terça-feira, 20 de julho de 2010

volta

voltar significa completar o giro. gira a terra em torno do sol, em torno de si mesma e giramos nos por sobre ela e a nossa propria volta. voltar nao quer dizer dar as costas para onde se esteve, mas somente olhar para ele de um ponto mais distante do circulo. como o sol vai brilhando sobre a terra em horarios diferentes, assim tambem a terra brilha sobre nos, que vamos andando por ela. amanha ela vai brilhar para mim de volta ao pais dos teclados com acentos. levo comigo a escrita da direita para a esquerda e as vogais marcadas por pontinhos sob as consoantes. ate ja, crase!

domingo, 18 de julho de 2010

xicara

abri a porta da pousada de quinta categoria onde dormi em safed, uma das cidades mais sagradas de israel, e o rabino dormia sentado na cadeira, com a xicara de cafe sobre a mesa. fui ao banheiro, escovei os dentes, me arrumei, voltei e ele ainda dormia. entrei no quarto, peguei dinheiro, fui ate a venda comprar frutas e pao, voltei e ele continuava dormindo. fiz algum barulho diferente e ele acordou. para nao parecer que dormia, pegou a xicara de cafe e comecou a beber como se nunca tivesse parado. no meio do processo de fingimento, adormeceu de novo, com a xicara na mao. fiquei olhando, devagar, ate que ele deixasse o cafe derramar inteiro sobre a perna. o cafe foi caindo, eu fiquei sorrindo em silencio e ele acordou outra vez. colocou a xicara sobre a mesa e continuou a dormir.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

ele

acho que descobri. nao escolhi gostar dele. gostar dele é que me escolheu. nao gosto dele nem por isso nem por aquilo. apenas pratico gostar.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

gobelinhos

de manhã bem cedo, os gobelinhos chegam à estação gobelins, em paris. alguns se atrasam, mas ninguém se importa. eles trabalham o dia inteiro embaixo dos trilhos do metrô e fazem paris funcionar. o chefe deles se comunica com eles a partir da ponta de um cadarço de tênis, e trabalha num bistrô chamado chez gladine, onde serve carnes deliciosas com batatas a preços acessíveis. na verdade, ele é um espião dos gobelinhos. quando chega a noite, todos eles voltam para casa, onde dormem aconchegados dentro de um tênis gigante, tamanho quarenta e oito. mesmo assim, por efeito de inércia, paris continua funcionando perfeitamente.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

paris

é como se paris fosse uma cidade encoberta por um véu. como se estivesse sempre distante. como se nao fosse possivel toca-la, porque ela se afasta. a luz que a contém é obliqua, nao como a do brasil e, por isso, ela se protege e impede movimentos agressivos. ela pede silencio. eu fico quieta e digo a ela: obrigada por ter inventado este azul.

terça-feira, 29 de junho de 2010

viagem

viagem. quando a margem vira rio. quando os nomes soam vazios e viram somente palavras que não querem dizer nada. só o que dizem. quando "bom dia" é "bom dia" e as cenas que eu já vi, eu nunca antes tinha visto. estar onde só se está. não precisar nem saber. estar só, interminavelmente só, somente por um intervalo. não ter o que dizer e não querer dizer nada. fartar-se de outras latitudes e ver a água girar ao contrário. daí saber que se está no meio de outro lugar do mundo e que o mundo é só mundo e que todos somos só uma margem. é bom ser margem e ninguém. por uma vez, agradecer que ninguém me entende e nem quer entender.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

céu

acho lindo: gente do céu; será o benedito; minha santa periquita do bigode loiro; dá mais que chuchu na serra; tá mais por fora que cotovelo de motorista de caminhão; pede pra são longuinho; puta que o pariu; na conchinchina; foi pra portugal, perdeu o lugar; amarrar o burro; sô; trem; coisar e a minha gatinha mia.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

soldadinho

minha mãe cortava o pão de centeio em bolinhas, as salsichas também, espetava com um palito de dentes e chamava de soldadinhos. fazia carne de sopa e colocava no centro do prato, envolto por um molho de tomate, que era o mar, e purê de batatas, que era a praia. esse prato se chamava "a ilha". fazia espinafre cozido com ovo pochê em cima, numa taça vermelha de vidro, todas as sextas-feiras, quando tínhamos visitas. sopa de pêssego e claras de ovos, como entrada para o jantar. de sobremesa, uma taça longa com café quente e sorvete gelado, que tomávamos com canudinho. em iom kipur, rocambole de chocolate, de onde escorria um fio úmido de chocolate toda vez que eu dava uma mordida. em pessach, ela mexia ovos com matzá quebrada. no inverno, cholnt, que ficava cozendo no fogo durante doze horas e ela acordava durante a noite para mexer. goulash com nhoque e sem creme de leite, com páprica húngara picante. bife de contra-filé que ela salgava na hora, frito com manteiga direto na chapa. como ela conseguia fazer o contra-filé ficar macio? meu pai só sabia assar castanhas, mas assava com tanto orgulho que era como se soubesse cozinhar muito bem. eu só sei fazer mussaka, torta de ameixas e damascos, brownies e macarrão com ossobuco desfiado. a comida não é uma parte da minha vida, uma parte do meu tempo. é o pão que eu como com o mundo.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

saudade

o dicionário diz que saudade é um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude. como assim, mais ou menos? como saber se um sentimento está mais ou menos melancólico de incompletude? e por que às vezes é saudade e outras vezes saudades? será que quando é menos é saudade e quando é mais é saudades? penso que saudade é mais geral e saudades, mais específico. e que saudade é mais melancólico e saudades é menos melancólico. mas, de incompletude, os dois sentimentos são. e eu, agora, estou com muito sentimento melancólico de incompletude específico.

sábado, 19 de junho de 2010

david

eu falo muito, pergunto muito. ele responde monossilabicamente. eu faço quinhentas coisas legais por dia. ele diz que não se lembra de nenhuma. eu fico preocupada. ele pede para eu deixar quieto. eu busco as coisas. ele não. ele, acho, já encontrou. ele é como o sol, a tarde, o futebol. ele acontece. o nome dele é david e, embora eu ache que é um nome cerimonioso demais para ele, tenho também a certeza de que esses dois ds, inicial e final, envolvendo um v central, que é ladeado por um a e um i, compõem com perfeição a segurança das margens encerrando a velocidade e a voracidade no meio, ancoradas pelos sons que se abrem para o mundo. então ele é o nome dele. e eu agradeço a tudo por isso.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

avó

minha avó nasceu na polônia e era feia. como ninguém queria se casar com ela, o pai dela fez um arranjo com o próprio irmão, para que ele a aceitasse como esposa. ela foi até a antiga iugoslávia, onde ele morava, e se apresentou como futura esposa. ele a achou muito feia. mas daí não havia mais o que fazer e eles se casaram. ela sobreviveu à guerra e ele não. o nome dele era benjamin jaffe. durante muito tempo, minhas irmãs e eu achávamos que ele, na verdade, tinha sobrevivido, sim, e tinha ido para hollywood trabalhar como ator. provavelmente para fugir da guerra e da feiúra. nos créditos dos filmes havia mesmo um ben jaffe, narigudo como ele devia ser. na verdade, ele também não devia ser lá essas coisas.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

erro

não valorizar o erro tão excessivamente a ponto de isso se tornar uma tirania, um outro tipo de acerto. valorizá-lo só até onde ele ainda é apenas um erro, sem a mesquinhez de tornar-se uma teoria do errado. errar pelas bordas, errar um pouco no meio, errar para não saber nunca o final.

domingo, 13 de junho de 2010

repetição

não sei se o fato de ter repetido um post é bom ou ruim. acho que é mais bom do que ruim. acaba sendo como se esse lugar aqui fosse uma espécie de amigo, para quem eu conto a mesma coisa várias vezes, sem me dar conta disso e o amigo responde (quando é amigo mesmo): você já contou isso antes. mas pode ser ruim também. pode querer dizer que até a virtualidade envelhece. mas isso seria muito mais um bom jogo de palavras do que a verdade. repetir-se, dentro de limites, é uma forma de esquecimento ao contrário. esqueci que me lembrei demais.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

demora

algumas coisas demoram. moram mais tempo, saem do tempo. nos observam, incuriosas e um pouco displicentes. poderiam perguntar-se: "será que ele(ela) vai aguentar esperar?" mas nem isso se perguntam. aguardam aconchegadas na morada dos dias, dos meses, dos anos, até chegar sua vez de acontecer. não têm pressa. deixam-nos aflitos e talvez até se divirtam com nossa ansiedade. é preciso olhar para elas, lá no alto da montanha, na rachadura de uma rocha, no fundo da terra onde elas costumam ficar até chegarem aqui, e fitá-las calmamente. no máximo, murmurar: "está bem, coisa. eu espero por você."

quarta-feira, 9 de junho de 2010

filosofia

estava em éfeso, na turquia, onde conheci dois professores de filosofia de uma universidade americana. ficamos todos hospedados num hotel de quinta categoria, a dois dólares por noite. a cidade antiga, onde estão as ruínas romanas mais bem conservadas do mundo, fica fechada à noite. eu tinha visto alguns instrumentistas se dirigindo à entrada da cidade e resolvi segui-los. na entrada, ninguém nos bloqueou, provavelmente porque concluíram que éramos acompanhantes dos músicos. eles rumaram para as ruínas totalmente intactas de um anfiteatro romano. havia centenas de pessoas sentadas lá e o resto da cidade estava todo iluminado e completamente vazio. era possível ver as ruas, as casas, a escola, a biblioteca, tudo como se fosse em roma antiga. o público do teatro eram os passageiros de um cruzeiro chique americano e os músicos iriam tocar um concerto para eles. sentamos e fingimos também ser passageiros chiques. os músicos eram meio mambembes, mas isso só fez aumentar a beleza do lugar e da atmosfera. no intervalo do concerto, a hostess se aproximou de nós três e perguntou: "desculpem, vocês pertencem ao navio?" nós dissemos que não. ela se desculpou e disse que, nesse caso, precisaríamos nos retirar. o concerto era exclusivo. um dos filósofos, de inteligência rápida e tipicamente americana, soltou imediatamente: "tudo bem. já fui expulso de lugares bem melhores." duvido.

terça-feira, 8 de junho de 2010

ego

como cresci ouvindo falar de ego, id e superego, acabei assimilando a ideia, como acredito que tenha acontecido com muita gente, de que eles são instituições, coisas fixadas em nossa mente, como objetos móveis. por causa dessa compreensão obtusa, quando tenho pesadelos horríveis, como o que tive essa noite, fico com raiva do inconsciente. penso: "puxa, faço tanto esforço para amadurecer, para equilibrar as pulsões violentas e passionais do id à força policial do superego, tenho um ego tão esforçado e o inconsciente fica lá, parado, burro, com as mesmas fantasias de quando eu era pequena."

sábado, 5 de junho de 2010

angústia

o som "g", na palavra angústia, é o que dá a ela a sensação exata de seu significado. como passar pelo corredor estreito desse som, que não vem do pulmão, mas diretamente da garganta, paralisando-a e paralisando-se nela? e, para piorar a situação, antes dele vem o "an", um som contínuo e meio burro, carente e imediatamente frustrado pelo "g", que o bloqueia. em seguida, tornando tudo mais terrível, vem o "u", com acento agudo. o "u" preenche a potência paralisante do "g" com ainda maior medo e horror. mas, felizmente, logo em seguida, vêm o "s" sibilante e consolador e o ditongo crescente "tia", prenunciando que logo a trava do "g" vai se desfazer e sempre virá um "a", aberto como o vento, para soltar-se boca afora e dissolver-se no ar.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

ausônia

anteontem a ausônia me ligou. eu estava no meio de uma reunião. atendi baixinho, como procede a alguém nessa situação e ela imediatamente desarticulou todos meus bons procedimentos. gritou: "nonozinha! sabe por que eu liguei? porque eu estou com saudades, nonozinha. porque eu te amo!" "não tem motivo nenhum, e eu não quero te falar nada. vai trabalhar, vai, porque você deve estar numa reunião, né?" eu só disse bem baixinho: "eu também te amo, ausônia".

quarta-feira, 2 de junho de 2010

simplicidade

queria saber escrever um conto que dissesse: "ontem eu encontrei um homem baixo, que me contou aquela piada sobre alguém que perguntou para um português se ele sabia que horas eram, e ele respondeu que sabia. mas não falou as horas". mas eu não consigo escrever isso. fico perguntando: "mas e o homem baixo? por que ele era baixo?" e penso também: "essa simplicidade na narração da piada é, na verdade, estilizada demais. finge ser simples mas é pura linguagem." eu queria saber escrever de um jeito simples, que não fosse querer ser simples e de um jeito bem burro, mas que fosse muito inteligente.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

lagarta

acho que estou chegando à conclusão de que, no amor, se a namorada, a parceira, a mulher, enfim, não for, como no poema do manuel bandeira, uma "lagarta listrada", dificilmente o namoro, o casamento vai dar certo. da mesma forma, mas sempre com a precedência feminina, é preciso que o namorado, o parceiro, o homem enfim, fique constantemente dizendo a ela que "ela parece uma lagarta listrada". o homem, para que o namoro dê certo (não gosto da palavra relação e nem de relacionamento) deve ser um apreciador de lagartas listradas.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

ipiranga

minha irmã tinha me explicado que quando os dois ponteiros do relógio coincidem, já eram quinze para as nove. acordei às seis e meia da manhã e, como os dois ponteiros estavam no mesmo lugar, achei que eram quinze para as nove. era um domingo. levantei, peguei um chapéu que eu tinha feito com jornal, fui para a sala, comecei a marchar e a cantar bem alto, para todos se levantarem e aplaudirem: "ouviram do ipiranga as margens plácidas"...minha irmã acordou e brigou comigo, mas dessa parte eu nem lembro direito.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

tartaruga

homeopatia é "mesmo pathos", ou "mesma paixão", ou "mesma patologia". seres de aparências diferentes compartilham, segundo essa ideia, semelhanças substanciais, às vezes invisíveis ao olho nu. então alguém me diga: por que se parecem tanto uma tartaruga e uma flor?

domingo, 23 de maio de 2010

silêncio

acho que uma das maiores e mais brutais formas de exercer o sadismo, na profissão, é travesti-lo de neutralidade, de ciência ou de serviço informativo. esses escudos servem para proteger uma alma "sacana" de quaisquer perversões. o silêncio, para mim, também é uma das piores formas de exercer o poder. contra ele, não há rebeldia. o silencioso profissional é uma espécie de covarde. como prefiro a possível covardia da condescendência, bem mais exposta e explícita, permitindo brechas e réplicas. mas, acima de tudo, o que prezo, no trato profissional, é a não neutralidade. dizer elegantemente o que se pensa e não se escorar em críticas vicárias. saber estar ao lado de quem se gosta, sem protecionismo. saber estar ao lado de quem não se gosta, sem armadilhas.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

dança

na dança, é como se os corpos prescindissem das pessoas que os movimentam. como se fossem corpos sozinhos, cujo movimento é igual ao de uma abelha, um jaguar, um beija-flor. nada sabemos sobre ele. só ficamos olhando atônitos, tentando acompanhar um ritmo que fica entre a natureza e o artifício, em que o mais artificial, construído, planejado, parece ter brotado ali, do nada. os dançarinos são bichos com cara de gente e, a mim, isso é o que mais estranha e fascina.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

mar

estive no rio e vi o mar. vi que ele não tem portas, janelas, ombros ou cotovelos. nele, nada se articula. tentei contar uma história para ele. ele não me ouviu, mas disse: por que você precisa de verbos para falar?

segunda-feira, 17 de maio de 2010

calcanhar

vi que meu calcanhar estava rachado e antes de ir para o banheiro raspar, lavar e hidratar, fiquei olhando atentamente as rachaduras sob uma luz forte. deveria eliminar alguma linha que esteve lá, embaixo de uma trave de futebol, no papel de goleira, aos oito anos de idade, onde me senti talvez no lugar mais deslocado e errado onde já estive? e será que ainda estava lá inscrita a marca do hotel quitandinha, em petrópolis, onde engoli um pedaço do vidro da garrafa de água tônica, que não entendia como minha mãe podia gostar? achei que não. o pé não deve guardar impressões tão fundas. mas elas formavam contornos em espiral, como as linhas digitais; é capaz que ainda guardassem as cambalhotas da praia de itanhaém. lavei, no fim. mas não com muita força.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

lembrança

lembrar-se é buscar uma lembrança no passado, de forma localizada e é também o momento em que uma lembrança súbita retorna à superfície da memória. se quero me lembrar de alguma coisa, como um nome ou um lugar, aciono uma cadeia de associações. por exemplo, para lembrar o nome da scarlet johansson, lembro de scarlet o'hara e do músico kevin johanssen. esse processo, inevitavelmente, causa encadeamentos esdrúxulos, às vezes inexplicavelmente com a mesma pessoa ou rua, como o hábito que tenho de chamar a kathleen turner de catherine o'connoly. já com relação às lembranças súbitas, que assomam sozinhas à memória, sem necessidade de serem evocadas, não sei por que, mas toda hora me lembro de mim mesma pequena, dentro de um elevador, com um primo muito alto de minha mãe, que vinha dos estados unidos, trabalhava na nasa, e que, por essa razão, eu achava que era um astronauta. minha emoção e curiosidade foram tamanhas que, agora, quarenta anos depois, lembro pelo menos uma vez por semana, sem querer, de que andei de elevador com um astronauta. sem falar de que também lembro do gosto da esfiha com zahtar do farabud e do david pequeno colocando sozinho a chupeta na boca, para ver se parava de chorar.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

quinta-feira, 6 de maio de 2010

salsicha

meu pai já estava muito doente. era dia dos pais. comprei flores e salsichas. cheguei até ele, que já quase não falava, e entreguei as flores. ele disse o que eu já sabia: prefiro salsichas. eu já tinha as salsichas. dei um monte para ele. ele sorriu.

terça-feira, 4 de maio de 2010

terra

hoje, durante uma aula, pela primeira vez, me dei conta de que a terra do pai é a pátria e de que a língua nativa é materna. é verdade. nada mais maternal do que a língua, esse colo continente e conteúdo, com uma prontidão entre sufocante e libertadora. e nada mais paternal do que o lugar. mudo e certo, ele nos pede para ficar. muitas vezes, é por isso que queremos sair. já a mãe, nossa língua, falante e insegura, está sempre a nos acompanhar.

sábado, 1 de maio de 2010

coisa

uma coisa linda é qualquer suíte para violoncelo do bach; uma coisa boa é a abobrinha recheada com carne moída da benedito calixto; uma coisa feia é laquê; uma coisa ridícula é escrever melhor do que o livro sobre o qual se escreve e uma coisa engraçada é a minha gata pensando que o próprio rabo é uma bolinha.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

sonho

sonhei que lia um livro que tinha dois textos simultâneos. um, linear, cujo significado era dado pela sequência normal das palavras. outro, paralelo, cuja sucessão era dada pelas palavras alternadas. as palavras um, três, cinco, sete, nove e assim por diante. acho que o sonho é mesmo isso. a sequência alternada da sensação de linearidade da vigília. todas as noites lemos o texto paralelo que mal montamos durante os dias.

terça-feira, 27 de abril de 2010

guarda-chuva

hoje, o poeta eucanaã ferraz contou que manuel bandeira tinha um guarda-chuva, que carregava para todos os lados, que tinha sido de seu pai, e cujo nome era "irônico". lembrei imediatamente da piada contada por guimarães rosa: ao ser perguntado por que razão levava para toda parte um guarda-chuva todo furado, um homem respondeu: "é para o caso de não chover".

sábado, 24 de abril de 2010

vela

deus, que está no ar, que compõe o sopro, que sai da boca para apagar a vela, aumentar a chama, aliviar a dor: não faça nada, não te peço. seja isso e não apareça, nâo redima, não conceda. seja somente o ar que sai de mim, que infla o sopro e que apaga a vela.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

turíbulo

ontem me contaram esta história: nos anos oitenta, um grupo de teatro foi apresentar uma peça numa cidade do interior de são paulo. um assistente do grupo foi visitar, respeitosamente, dom braulino, o pároco da cidade, para lhe pedir emprestados seus turíbulos, que deveriam ser utilizados na apresentação. dom braulino, orgulhoso, emprestou os turíbulos, os incensórios e todos os paramentos. no dia da inauguração, estavam na plateia o pároco, o prefeito, o chefe da polícia e o público mais respeitável da cidade. abriram-se as cortinas e surgiu um pênis gigante, cercado dos turíbulos de dom braulino. mandaram imediatamente baixar as cortinas, levaram toda a trupe de teatro para a delegacia e dom braulino foi transferido de paróquia, para onde levou seus turíbulos, que não empresta nunca mais, para mais ninguém.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

pés

uma bola se formou, feita de pó, algumas meias usadas, ramos quebrados, fios carcomidos e paina. ela rolou pelo chão, até um menino vê-la, pegá-la e brincar com ela. daí em diante, as bolas cresceram, ganharam novos formatos, cores e tamanhos, texturas e funções e passaram a ocupar os pés e mãos de muitos e muitos meninos e meninas, que tratam delas muito bem e pensam que elas são como uma verdade metafísica. o que, na verdade, elas são.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

sinfonia

dizem que beethoven compôs a quinta ou a nona sinfonia, em função da tristeza de ter perdido um encontro com a mulher que amava (prometida ao seu irmão), por causa de uma carruagem capotada em seu caminho. atrasou-se ao encontro, ela pensou que ele não viria mais e partiu. fico pensando qual tristeza, quando há os celulares, seria capaz de, hoje, produzir uma nona sinfonia.

sábado, 17 de abril de 2010

banheiro

entrei no banheiro do avião tcheco. na hora de sair, a porta travou. fiquei tentando e não adiantava. minha irmã ficou preocupada com meu sumiço e foi falar com a aeromoça. ela veio, eu disse que não conseguia abrir e ela ficou tentando me ajudar. era impossível. veio toda a tripulação, tentaram tudo, e nada. o voo já se preparava para o pouso e é proibido pousar com alguém no banheiro. a aeromoça perguntava: "mas a senhora está bem?" eu estava ótima, até cantei. fiquei tranquilizando a aeromoça. era preciso pousar de qualquer jeito. o avião pousou, e eu lá dentro. chamaram o pessoal de terra, veio o mecânico e arrombou a porta do banheiro. talvez tenha sido burra. devia ter fingido um infarto para depois pedir indenização. eu só cantei e fiquei quieta. adorei ficar presa no banheiro do avião tcheco.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

fechadura

cheguei em nova iorque às onze e meia da noite, num inverno de rachar, e, no táxi, percebi que só tinha o nome da rua onde iria me hospedar, não o número do prédio. tinha também a chave da porta. o motorista não quis nem saber de me aguardar, nem de me levar até um telefone público, onde eu pudesse ligar para uma amiga que saberia me dizer o número. fui arrastando minha mala na neve até um telefone, liguei e ela não atendia. fui voltando para a rua e ainda parei alguém para pedir ajuda, mas a pessoa respondeu que não tinha trocado para me dar. voltei até a rua, deserta àquela hora da noite e comecei, arrastando a mala, a testar todas as portas de todos os prédios, dos dois lados da rua. depois de não mais do que vinte tentativas, uma porta abriu. era aquela. cinco anos mais tarde, eu defenderia meu mestrado com o título: "trouxeste a chave?". sim, esta eu sempre costumo levar. o problema é a fechadura.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

harpa

o paulo miranda e o omar khoury são duas pessoas que encaminham minha alma direto para a sua morada. fico com eles algumas horas, vejo que eles são como os anjos gabriel e azrael brigando, tirando um a harpa do outro, ocupando o melhor espaço na nuvem e falando:"foi pra portugal, perdeu o lugar!", e sei que estou com o melhor que alguém pode querer ser. daí minha alma fica restaurada e agradecida.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

dúvida

quando eu era pequena, tinha uma dúvida grave: se alguém me perguntasse "você não acha?" e eu respondesse "sim", então queria dizer que eu acho ou que eu não acho?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

trânsito

no trânsito das oito e meia da manhã, abriu uma clareira. nenhum carro à frente, atrás, nada. chovia uma chuva fina, boa. tocava uma canção de voz e violão simples no rádio. a menina passou com meia calça roxa, guarda-chuva meio estropiado, cabelos ruivos, saia de flores. de dentro do tempo, uma seta, um respingo do instantâneo saltou para fora. foi mesmo só um instante, mas que ele saltou, saltou.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

foto

como são lindas estas fotos do passado, em que olhamos nossos próprios olhos de antes com os de agora. ouvimos aqueles olhos dizendo que o futuro pouco importava, olhando para o presente com expressão de harmonia, ao mesmo tempo em que os olhos de agora sorriem com respeito, saudades e como que dizendo: "eu estou agora, aqui onde você não pensava que estaria. e posso vê-lo, a você (ou a mim mesmo), enquanto você não podia."

sábado, 3 de abril de 2010

fiscal

meu pai chegou ao brasil em mil novecentos e quarenta e nove sem falar uma só palavra de português, só com o curso primário e sem profissão. resolveu vender roupas de porta em porta. levava uma maleta e caminhava por bairros como o brás, a móoca, batia palmas e mostrava as mercadorias. depois do almoço, dormia embaixo de uma árvore. uma vez um fiscal o acordou e levou sua mala. juro que até hoje eu tenho vontade de pegar esse fiscal e dizer uma boas verdades para ele.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

gilberto

meu vizinho pipoqueiro era o melhor, e talvez o único amigo do gilberto, o guardador da casa da frente. o gilberto praticamente não dormia e mal comia. ficava andando pela rua o dia inteiro e, à noite, saía para beber. voltava descendo a rua, gritando, batendo palmas, brincando com seu adálio, fazendo locuções de jogos de futebol imaginários e berrando sem parar: "é nóis!". ontem ele foi encontrado morto na casa de uma sobrinha. tinha trinta e seis anos, quatro filhos e uma ex-mulher. o pipoqueiro foi ao enterro e contou que lá, o pai-de-santo que o gilberto frequentava, levou uma garrafa de pinga e colocou dentro do túmulo. o pipoqueiro disse: "se fosse com minha família, eu dava com a garrafa na fuça dele!". eu não. aprovei o pai-de-santo. o gilberto morreu acompanhado.

quarta-feira, 31 de março de 2010

língua

"é nóis" é uma das expressões mais perfeitas da língua brasileira. o verbo ser no singular transforma o pronome "nós" em um substantivo, que encerra as ideias de pertencimento, força e permanência de uma só vez. "nóis" é um grupo, um tempo e uma potência. a antecipação do verbo ao substantivo, "é nóis", ao invés de "nóis é", dá a noção perfeita de suficiência. não é preciso ser alguma coisa, porque "é nóis" já é tudo. basta ser "nóis".

segunda-feira, 29 de março de 2010

raiva

gary hill batendo seu corpo contra a parede, enquanto diz que não se reconhece mais , que seus membros não lhe parecem seus, faz reconhecer o tempo e a velhice de maneira tão táctil e agressiva, que eu saí da exposição nervosa e trêmula, pensando em que lugar da memória vou guardar ou desguardar essa sensação e o meu medo. olhar de maneira tão próxima essa separação entre o corpo e os pensamentos, de que forma as mãos, os pés, a barriga vão lenta, e às vezes rapidamente se afastando da mente, causa um efeito como de frankenstein. como se não fôssemos nós mesmos a olhar a obra. acho que a violência do gesto de gary hill é uma tentativa de reunificar tudo. talvez a violência, a raiva, sejam mesmo um bom caminho para a sensação, às vezes doce, às vezes terrível, da passagem do tempo.

sábado, 27 de março de 2010

interfone

o interfone e o telefone quebraram. vieram hoje aqui em casa o reis e o josiel. ficaram amigos imediatamente, mal o josiel passou pelo portão. já compartilhavam o mesmo léxico de fases, fios, cabos de pontas azuis e vermelhas. o problema do josiel era mais simples. veio, arrumou, tentou me explicar o problema e eu não entendi nada. foi embora e nem queria cobrar. saiu e o reis chegou para mim e disse: legal ele, né? o reis ainda ficou três horas e fuxicou tudo até encontrar a origem da má ligação do interfone. disse: podia ficar aqui dez dias, mas não ia desistir. comigo é assim. vou até o fim. ficamos eu e ele muito contentes porque o interfone finalmente funcionava depois de dois meses. antes de ir embora, ele ainda falou: legal aqui, né? legais esses tijolinhos. legal também o moço da banca que me explicou como chegava aqui. ele foi descendo pela rua e eu fiquei parada, pensando: bom dia, reis!

sexta-feira, 26 de março de 2010

quarta-feira

anteontem fui até quarta-feira. não é longe. fica aqui mesmo. começa na minha rua e se estende por todos os bairros. lá é muito tranquilo. tem cinemas vazios, a preços baixos, as ruas são todas silenciosas e, nos restaurantes, não há espera. o trânsito flui. é uma cidade calma e agradável, quase idêntica a são paulo, mas sem os seus problemas. decidi que agora quero ir todas as semanas a quarta-feira.

terça-feira, 23 de março de 2010

habilidade

nhinhinha, de "a menina de lá", de guimarães rosa, era "inábil como uma flor". por que a flor é inábil? porque a flor, cuja maior habilidade é ser bela, cumpre sua finalidade com tanta gratuidade e excesso, que acaba redundando na própria morte. a flor, de tão bela, é breve. se fosse hábil, distribuiria a beleza com economia e duraria mais. mas é só por sua inabilidade que ela é tão assustadoramente bela.

domingo, 21 de março de 2010

safári

eu tinha doze anos e ele quatorze. estávamos apaixonados, mas ele era muito sério. era o líder intelectual da turma, já conhecia o pensamento de esquerda e, por isso, apaixonar-se era um pouco burguês. não demonstrava muito afeto e carinho em público, nem pensar. eu me ressentia disso. um dia ele apareceu de conjuntinho safári. não dava, eu não conseguia nem dar a mão. ele não entendeu nada; se sentiu rejeitado. foi minha vingança burguesa. safári não dá.

quinta-feira, 18 de março de 2010

bobeira

estamos sozinhos em casa e precisamos decidir se vamos viver como dois velhinhos aposentados avacalhados ou chiques. na primeira opção, assistir bbb. na segunda, escutar ópera. na nenhuma das anteriores, falar bobeira horas e horas seguidas.

terça-feira, 16 de março de 2010

fundo

mia, se o fundo azul dos teus olhos não fosse rajado, eu não veria as ondas do mar, as nuvens no céu e não haveria a tristeza que faz com que a tua alegria seja ainda mais linda.

sexta-feira, 12 de março de 2010

caderno

encontrado em um caderno antigo, mas totalmente endossado até hoje: "não quero: nortear, implantar, expandir, agilizar, otimizar, flexibilizar, elaborar, explicitar, encaminhar, sinalizar, inserir, documentar, resgatar, socializar, formular, problematizar, articular, despertar, contemplar, capacitar, multiplicar, habilitar, planejar, intervir, gerir, formalizar, efetivar, promover, reavaliar, segmentar, funcionalizar, objetivar, efetuar, institucionalizar, setorizar, vincular, equacionar, favorecer, apreender, potencializar, conceitualizar, requerer, solicitar, enfatizar, destacar, realçar, finalizar, inicializar, complementar, mapear, tematizar."

quinta-feira, 11 de março de 2010

oração

na letra c do fabuloso alfabeto de paul valéry, ele diz: "é por isso que não se deve orar senão com palavras desconhecidas. devolvei o enigma ao enigma, enigma por enigma. elevai o que é mistério em vós ao que é mistério em si. há em vós algo que é igual ao que vos ultrapassa". na oração, não se sabe o que se ora, nem por que, nem para quem, sob pena de que, com alguma finalidade, a oração se torne também ela um meio. a oração é puramente a permissão de que algum enigma saia e penetre no corpo, pela voz. é a pausa ou o silêncio feito com palavras. não é preciso compreendê-las, como elias canetti em marrakech, que se comprazia em não compreender o que diziam os marroquinos. há oração como essas vozes?

quarta-feira, 10 de março de 2010

endereço

vou criar a categoria do metapost. metapost: quando um post comenta um comentário de outro post. escrevi sobre a aventura com a semolina e o restaurante arábia comentou, me mandando exatamente a receita do doce que eu queria fazer. imagino o post girando em circunvoluções pelas entranhas da internet, a semolina se pulverizando pelas fibras invisíveis, até chegar num endereço que era o que eu queria, mas que sequer tinha imaginado.

segunda-feira, 8 de março de 2010

semolina

quis fazer doce de semolina igual ao do restaurante árabe. fui até o pão de açúcar aqui perto. não tinha semolina e ninguém sabia o que era. descobri que em um pão de açúcar não tão perto, eles tinham oito unidades. decidi ir até lá. demorei uma hora e meia porque era horário de rush, tinha muito trânsito e eu me perdi toda num dos bairros que eu mais detesto em são paulo. mesmo assim, sentia que atingir aquela farinha era como uma caçada inútil e necessária no meio de tantos carros e obrigações. cheguei lá e a semolina já estava me esperando na frente dos caixas. o pacote estava furado e a farinha vazou por toda aquela área do supermercado. peguei outro. demorei mais quarenta minutos para voltar, cheguei em casa e logo percebi que a receita era ruim. além disso, eu não tinha fermento para o doce nem limão para a calda. fiz o doce, que ficou horrível e a calda, que queimou. mais uma vez me senti idiota, como se o gozo da caçada inútil fosse um luxo para caprichosos ou ociosos bobos. mesmo assim, no dia seguinte, tentei de novo, com outra receita. deu certo e já me sinto disposta a muitas procuras inúteis novamente.

sábado, 6 de março de 2010

jeito

para dizer de jeito nenhum, dizia "de deto dedum". para dizer música, dizia "múcuna". para dizer mickey mouse, dizia "mickey nonatch". para dizer copo, dizia "póco". agora diz tudo certo, mas sempre de um jeito que só ela sabe dizer.

quinta-feira, 4 de março de 2010

lembrança

hoje me lembrei que, em vez de dizer "quer queira quer não", meu pai dizia "quer quer quer não". achei muito mais bonito e me deu muita saudade.

quarta-feira, 3 de março de 2010

noruega

estava escrevendo um conto sobre a palavra uivo e usei como personagem a protagonista de um conto de borges, ulrica. num determinado momento do conto (de borges), ela diz: "apressa-te. é o último chamado do lobo", ou algo assim. desenvolvi o conto colocando um poema na voz de ulrica, que falava de lobos e de morte, tudo em norueguês. quase chegando ao final, fui olhar o significado de ulrica nessa língua que, para nós, é como um misto de bruma, falésias e vikings, e vi que é "o poder do lobo". senti-me subitamente apoiada sobre os ombros de borges, galgando por planícies de oslo cheias de dicionários multilíngues espalhados pelo caminho. borges ficava costurando segredos nas palavras e não contava para ninguém. cabe a nós, leitores desfazedores de nós, eventualmente descobrirmos onde eles estão.

segunda-feira, 1 de março de 2010

alma

roland barthes conta que, ainda no século XIX, michelet foi despedido de seu cargo como professor do collége de france, onde o próprio barthes lecionou. na sua despedida, os alunos, para tentar consolá-lo, lhe disseram: "professor, o senhor não nos ensinou nada. somente nossa alma é que voltou para o seu lugar". barthes usa isso como um exemplo do que ele chama de "desaprender". era essa a educação que ele praticava. não ensinar, mas aprender a desver as coisas do mesmo jeito (e não aprender a ver as coisas de outro jeito). ensinar não tem mesmo a ver com o quê, mas com o como. o "quê" do ensino, quando é inteiro, é também um "como". quando se está junto de um professor como barthes, uma professora como eu fico pequena, embora tudo na sua prática seja contra essa comparação. é um professor que ama o tempo todo. ama o erro, ama a fala, ama a falta. minha alma, ao lê-lo, sempre caminha para mais perto de seu lugar.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

integridade

um índice seguro de que se chegou à decadência completa de qualquer integridade mental, é se flagrar cantando distraidamente a musiquinha da seguradora.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

sonho

se existe algo como o inconsciente mesmo e se ele realmente produz nossos sonhos, então o meu tem um potencial criativo bem maior do que a minha suposta consciência ou vigília. sonhei que um grupo de pessoas que eu não conheço estava sentado conversando. de repente, eles pararam de falar. nisso, um dos participantes do grupo olhou para cima, apontou e disse: ei, você, que está nos sonhando, pode continuar a sonhar?

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

envelope

recebi um envelope contendo um contrato de cessão de direitos autorais. um papel colado sobre o envelope diz: "três vias do contrato para assinatura do cedente e do interveniente anuente". no caso, eu sou a interveniente anuente. fico me imaginando assim: intervenho, incomodo, mas, no fim, aceito. é isso mesmo. é só a isso que se resume a burocracia. mesmo quando somos intervenientes, ao fim a ao cabo, acabamos sendo anuentes.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

flor

depois de sessenta anos, minha mãe voltou para budapeste com as três filhas. estávamos passeando por uma avenida importante, quando ela parou, arrancou uma flor de um canteiro, tirou a haste da flor e soprou: a flor fez um barulhinho, como o de um apito. era uma brincadeira que ela fazia quando pequena. e ficamos nós três, arregaladas, olhando minha mãe ser pequena outra vez.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

conselho

acho que alguma maturidade me permite dar um conselho: nunca namorem alguém que diga: "ó, vamos fazer silêncio agora. escuta só o baixo."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

amor

a tradução impossível do poema do rené char, "l'amour/ l'être/ le premier venu" pode ser: "o amor/ser/a primeira chegada". não importa a impossibilidade da tradução, porque ela o torna ainda mais intocável na sua precisão. mas não importa de verdade porque, independentemente da tradução, o amor é mesmo, em sua condição infinitiva, a primeira chegada, ou mais, a primeira vinda. se amamos, quando amamos, o objeto de nosso amor acabou de chegar e nós o olhamos, surpresos: de onde você surgiu? (agradeço à leda pela menção ao poema).

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

queijo

preciso comer pão de centeio com queijo minas e um café, no café da manhã, senão não acordo, não trabalho, não vivo. agora, na barraca do samuel, achei um queijo minas sensacional, diferente daquele que vinha comendo, que era seco e salgado e me deixava de mau-humor. este não. é grande, confiável, úmido, na medida exata de sal e o fato de ele estar na geladeira, guardado em seu pote enorme, me faz dormir mais sossegada. sei que amanhã, quando acordar, ele estará lá, silencioso e calmo, pronto para que eu o coma.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

asas

emily dickinson não era a melhor de todas. é muito pouco falar assim dela. ela não se presta a julgamentos e comparações. cada poema está acima do que nosso juízo pobre é capaz de parcamente conhecer. e quando ela diz: "uma vaga capacidade para asas degrada o vestido que uso", eu agradeço a ela e às palavras por me dizerem isso e me contarem o que sou.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

falta

somos aqui em casa três gatos e três cachorros. o pingo, o david e eu atacamos o outro de estabanação, afeto e burrice. sobramos. a mia, a leda e o joão ficam num lugar aquém do ataque. escondem-se discretos, para um bote inofensivo, mas bote. não sobram, faltam. agora minha outra sobra também viajou e então sinto falta da sobra e da falta. fico aqui de cachorro bobo, sem ter a quem derrubar com meu estabano. só o açucareiro, o jornal e a panela. puxa vida.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

complicação

eu costumava ser bem mais complicada do que sou agora. mas, estranhamente, muitas vezes sinto falta dessa complicação. quero pensamentos intrincados, achar tudo mais difícil e não consigo. a realidade resiste e só quer me parecer simples. não que não haja dificuldades, ao contrário, elas existem e são grandes. mas pouca coisa me soa inexpugnável ou tão embaraçada a ponto de eu não conseguir nem compreender. não sei se isso é um mal ou um bem da aproximação da velhice. sei que agora, agora mesmo, queria pensar alguma coisa bem difícil, que nem eu mesma conseguisse entender, alguma coisa emaranhada, cheia de palavras confusas, mas só me vêm ideias simples à cabeça. deveria achar isso uma bênção, mas, nesse momento, me entristece compreender as coisas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

sonho

sonhei que vi uma letra j jogada na rua e que escrevi um post, em meu blog, sobre ela. eu desenhei todo o alfabeto com letras grossas, preenchi as letras com muitos desenhos bonitos e ressaltei aquela letra j , que tinha encontrado na rua. o desenho ficou meio infantil, meio gráfico. nos comentários, as pessoas começaram a se esgoelar para comprar aquela letra, como se fosse um leilão, um rabiscava o comentário do outro, até que ganhou um lance de trezentos mil dólares. não fiz os desenhos fora do sonho, nem saberia fazê-los, mas se quiserem comprar, até por outro valor, posso vender um pedaço de sonho.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

gênio

ontem, cantarolando a canção "qualquer coisa", me dei conta de que nela, rimam as palavras "apanhe" e "mamãe". "quero que você ganhe, que você me apanhe, sou o seu bezerro gritando mamãe." logo depois, numa conversa, fiquei sabendo dos manifestos jóia e qualquer coisa, em que caetano veloso defende com a mesma contundência a precisão do ourives e o relaxamento expansivo. e mais uma vez, então, me senti mais livre por reconhecer a genialidade de caetano e por saber que ele está muito vivo e entre nós. não é um reconhecimento reverencial, ou é também; mas é algo mais. o gênio é aquele que reúne potencialidades esparsas; junta paradigma e sintagma, a latência e potência, numa mesma liga forte e duradoura. caetano, quer namorar comigo?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

avó

na polônia, minha avó se considerava uma intelectual, por ser muito estudiosa, embora fosse de origem bem humilde. achava que o ídish era uma língua vulgar e, desde muito nova se dedicou como auto-didata ao estudo do hebraico, língua erudita e sagrada. aqui no brasil ela continuou os estudos, até dominar toda a gramática, a nomenclatura, as citações bíblicas. nós conversávamos, porque eu estudava hebraico na escola e ela se sentia envaidecida por perceber que falava até melhor do que eu. na primeira vez que ela foi para israel, carregada de expectativas, frustrou-se terrivelmente. ela falava tão bem, que ninguém se surpreendeu com isso. ao contrário, tratavam-na normalmente, como uma israelense. e o que é pior, todo mundo falava hebraico: os motoristas de ônibus, os encanadores, os eletricistas. que língua chucra é essa em que se pode falar "a válvula quebrou", de modo tão natural?

sábado, 30 de janeiro de 2010

selo

a leda foi embora e ficou, logo no primeiro dia, a presença física da ausência dela. dá para sentir melhor o tamanho pequeno, a ocupação no espaço, os barulhinhos dos passos na escada, a chegada dela na cama para se aninhar ao meu lado. ouço todo o silêncio dela e ele ocupa alguns lugares marcados. um dia é como um selo estampado de uma nostalgia que ainda virá. a experiência prévia de uma saudade que ainda não deu tempo de chegar, mas que eu vejo caminhando lá longe, no horizonte, em minha direção.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

pavilhão

o pavilhão dourado, de yukio mishima, é um livro que não quero, não quero, não quero nunca esquecer. preciso lembrar de cada frase, reler os diálogos e ansiar sempre pela sua compreensão - que é ao mesmo tempo uma incompreensão - da Beleza. eu, que vivo para tentar compreender a beleza minúscula e acreditar que não há uma, mas infinitas belezas, me espantei com o poder e a integridade da Beleza que tortura e sequestra a personagem do livro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

baleia

li uma vez que uma baleia foi encontrada morta numa praia, na austrália. depois de muitos esforços, conseguiram erguê-la e colocá-la sobre um caminhão para transportá-la para alguma fábrica de óleo. no meio do caminho, bem no centro de uma cidade de tamanho razoável, ouviu-se um estrondo descomunal. a baleia estava cheia de gases e, com o chacoalhar do caminhão, acabou explodindo. o cheiro resultante da explosão da baleia empesteou a cidade e as redondezas por vários dias, fazendo com que todos precisassem andar mascarados e protegidos. como gosto desta história que parece uma mistura de moby dick com esopo, uma fábula moral e uma mentira absurda. a vingança olfativa do belo e do inútil contra a utilidade.

domingo, 24 de janeiro de 2010

orelha

era dia trinta e um de dezembro, quinze para a meia noite e nos aproximávamos de puerto madero, onde iríamos ver os fogos em buenos aires. não sabíamos exatamente onde era, embora já estivéssemos muito próximos. ele se aproximou de um guarda e perguntou: "onde queda la orilla del río?" achei tão bonita a orilla del río e já fiquei imaginando o borges nos esperando na orilla para celebrarmos juntos o ano novo e ele diria: "acá, en esta orilla del plata, estuvieron los ancestrales de los espejos, de las pirámides y de los laberintos alquimicos. en este año que empieza ahora, la certidumbre del tiempo es como las olas del mar". mas borges não estava lá. só havia um bando de turistas brasileiros chatos gritando besteiras insuportáveis nas nossas orillas.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

perda

achei que tinha perdido as chaves de casa, mas não perdi. achei que tinha perdido os óculos, mas estão comigo. mas perdi um livro, um caderno, um colar, uma canga, uma ideia, uma parte da memória e, ontem, uma vontade que anteontem eu sentia de abraçar o mundo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

série

da série aqui começada e provavelmente aqui terminada - artigo número um - dois ditados que eu detesto apaixonadamente : "o inferno está cheio de boas intenções" e "não existe almoço de graça".

domingo, 17 de janeiro de 2010

dignidade

no lugar da decência, ou da respeitabilidade, prefiro a dignidade. a dignidade não impede que a pessoa seja também selvagem. ao contrário, é possível conciliar muito bem as duas coisas, ao passo que decência implica domesticação. decência tem a ver com cabimento; é uma adaptação certa do comportamento. já a dignidade pode ser fruto de atitudes totalmente descabidas e equivocadas, inclusive desobedientes.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

paisagem

tenho muita vergonha de confessar, mas não sei apreciar paisagens: não consigo ficar horas olhando as montanhas, o mar, uma pedra. sinto que tenho uma dívida para com meu sentido visual e também para com a natureza. deveria saber olhar, extrair ideias ou então simplesmente nada. me deixar estar junto às coisas que são só as coisas. mas daí começo a pensar que elas são só as coisas e como é bonito ser só isso e daí já fui embora. estou sempre indo embora para as palavras. elas é que são minha paisagem, minha natureza e adoro ficar olhando para a palavra mar, a palavra montanha, a palavra pedra.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

elevador

dentro da própria cidade, esquecemos de nossa desimportância. tudo é tão sincronizado, funcional e articulado, que parece ter sido feito precisamente para nós. a cidade é uma grande máquina que existe para nos servir. quando saímos um pouco, percebemos enfim toda a armação narcísica: tudo falta ou sobra, a cidade é totalmente autônoma e ninguém nos olha nem entende; nem o cobrador de ônibus, nem o garçom, nem o vizinho. daí então vem uma pequena compreensão de como ser um ascensorista de um velho elevador na plaza de mayo é a mesmíssima coisa que ser um escritor reconhecido em seu país; tanto na sua grandeza como na sua pequenez.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

azul

não acredito em anjos, em alma, em espírito. mas apareceu uma gata na rua. branquinha e marrom, olhos azul celeste e uma pinta no nariz. está aqui comigo e resolvi que foi a nina que quis assim. eu só acredito que se acredita no que se quer; acredito na vontade e na fabulação. e fabulei assim.

sábado, 9 de janeiro de 2010

espanto

ontem vi dois hipopótamos dormindo um ao lado do outro; vi bem de perto os olhos de uma lhama; vi a grossura interminável do diâmetro de uma jibóia. depois vi muitos quadros do pintor argentino xul solar. e fiquei sem saber, agradecida, se o espanto é maior diante dos hipopótamos ou do porto azul e dos homens-avião de xul solar. que bom.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

cruzamento

enquanto eu procurava no mapa a localização da calle florida, uma das mais movimentadas e certamente horríveis ruas de buenos aires, um homem com aparência de índio sulamericano dormia profundamente, encostado numa porta de garagem. era cerca de meio-dia. sua cabeça pendia de um lado para o outro e ele não acordava, mesmo com toda a movimentação em sua volta. cruzamos milhares de pessoas todos os dias, observamos algumas delas e nem olhamos para a maioria. mas esse homem ficou marcado em mim. seu semblante, mesmo dormindo, indicava que ele tinha sofrido muito durante a manhã, provavelmente procurado vários empregos. consegui ver isso e acho que não estou glamourizando sua pobreza, simplesmente porque ele era um índio dormindo na calçada. o que me surpreendeu foi que estávamos no mesmo tempo, no mesmo espaço, em mundos totalmente diferentes. eu nunca mais vou vê-lo nem ele a mim. fui à florida, detestei, veio a noite, jantei, dormi e é ele que não me sai da cabeça. não quero nem vou fazer nada por ele e não é isso o que ficou fixado. é o cruzamento inadvertido de histórias se raspando impossivelmente. sei lá de que montanhas peruanas seus ascendentes vieram; sei que os meus vieram de absurdos urais. e naquele momento, os andes e os urais se encontraram por uma fração. não houve terremoto, o tempo não parou. tudo seguiu. como? por quê? onde está você, que dormia na praça general san martín? onde está aquela que procurava a localização no mapa?

domingo, 3 de janeiro de 2010

velhice

do misterioso e genial bruno schulz, um kafka ainda desconhecido e por isso mesmo ainda mais kafka: amadurecer até a infância. tenho certeza de que essa é a maior sabedoria da velhice. não ser uma criança, mas uma criança que passou pela maturidade, pela possibilidade grande de não ser criança e escolheu ser.