sábado, 30 de janeiro de 2010

selo

a leda foi embora e ficou, logo no primeiro dia, a presença física da ausência dela. dá para sentir melhor o tamanho pequeno, a ocupação no espaço, os barulhinhos dos passos na escada, a chegada dela na cama para se aninhar ao meu lado. ouço todo o silêncio dela e ele ocupa alguns lugares marcados. um dia é como um selo estampado de uma nostalgia que ainda virá. a experiência prévia de uma saudade que ainda não deu tempo de chegar, mas que eu vejo caminhando lá longe, no horizonte, em minha direção.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

pavilhão

o pavilhão dourado, de yukio mishima, é um livro que não quero, não quero, não quero nunca esquecer. preciso lembrar de cada frase, reler os diálogos e ansiar sempre pela sua compreensão - que é ao mesmo tempo uma incompreensão - da Beleza. eu, que vivo para tentar compreender a beleza minúscula e acreditar que não há uma, mas infinitas belezas, me espantei com o poder e a integridade da Beleza que tortura e sequestra a personagem do livro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

baleia

li uma vez que uma baleia foi encontrada morta numa praia, na austrália. depois de muitos esforços, conseguiram erguê-la e colocá-la sobre um caminhão para transportá-la para alguma fábrica de óleo. no meio do caminho, bem no centro de uma cidade de tamanho razoável, ouviu-se um estrondo descomunal. a baleia estava cheia de gases e, com o chacoalhar do caminhão, acabou explodindo. o cheiro resultante da explosão da baleia empesteou a cidade e as redondezas por vários dias, fazendo com que todos precisassem andar mascarados e protegidos. como gosto desta história que parece uma mistura de moby dick com esopo, uma fábula moral e uma mentira absurda. a vingança olfativa do belo e do inútil contra a utilidade.

domingo, 24 de janeiro de 2010

orelha

era dia trinta e um de dezembro, quinze para a meia noite e nos aproximávamos de puerto madero, onde iríamos ver os fogos em buenos aires. não sabíamos exatamente onde era, embora já estivéssemos muito próximos. ele se aproximou de um guarda e perguntou: "onde queda la orilla del río?" achei tão bonita a orilla del río e já fiquei imaginando o borges nos esperando na orilla para celebrarmos juntos o ano novo e ele diria: "acá, en esta orilla del plata, estuvieron los ancestrales de los espejos, de las pirámides y de los laberintos alquimicos. en este año que empieza ahora, la certidumbre del tiempo es como las olas del mar". mas borges não estava lá. só havia um bando de turistas brasileiros chatos gritando besteiras insuportáveis nas nossas orillas.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

perda

achei que tinha perdido as chaves de casa, mas não perdi. achei que tinha perdido os óculos, mas estão comigo. mas perdi um livro, um caderno, um colar, uma canga, uma ideia, uma parte da memória e, ontem, uma vontade que anteontem eu sentia de abraçar o mundo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

série

da série aqui começada e provavelmente aqui terminada - artigo número um - dois ditados que eu detesto apaixonadamente : "o inferno está cheio de boas intenções" e "não existe almoço de graça".

domingo, 17 de janeiro de 2010

dignidade

no lugar da decência, ou da respeitabilidade, prefiro a dignidade. a dignidade não impede que a pessoa seja também selvagem. ao contrário, é possível conciliar muito bem as duas coisas, ao passo que decência implica domesticação. decência tem a ver com cabimento; é uma adaptação certa do comportamento. já a dignidade pode ser fruto de atitudes totalmente descabidas e equivocadas, inclusive desobedientes.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

paisagem

tenho muita vergonha de confessar, mas não sei apreciar paisagens: não consigo ficar horas olhando as montanhas, o mar, uma pedra. sinto que tenho uma dívida para com meu sentido visual e também para com a natureza. deveria saber olhar, extrair ideias ou então simplesmente nada. me deixar estar junto às coisas que são só as coisas. mas daí começo a pensar que elas são só as coisas e como é bonito ser só isso e daí já fui embora. estou sempre indo embora para as palavras. elas é que são minha paisagem, minha natureza e adoro ficar olhando para a palavra mar, a palavra montanha, a palavra pedra.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

elevador

dentro da própria cidade, esquecemos de nossa desimportância. tudo é tão sincronizado, funcional e articulado, que parece ter sido feito precisamente para nós. a cidade é uma grande máquina que existe para nos servir. quando saímos um pouco, percebemos enfim toda a armação narcísica: tudo falta ou sobra, a cidade é totalmente autônoma e ninguém nos olha nem entende; nem o cobrador de ônibus, nem o garçom, nem o vizinho. daí então vem uma pequena compreensão de como ser um ascensorista de um velho elevador na plaza de mayo é a mesmíssima coisa que ser um escritor reconhecido em seu país; tanto na sua grandeza como na sua pequenez.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

azul

não acredito em anjos, em alma, em espírito. mas apareceu uma gata na rua. branquinha e marrom, olhos azul celeste e uma pinta no nariz. está aqui comigo e resolvi que foi a nina que quis assim. eu só acredito que se acredita no que se quer; acredito na vontade e na fabulação. e fabulei assim.

sábado, 9 de janeiro de 2010

espanto

ontem vi dois hipopótamos dormindo um ao lado do outro; vi bem de perto os olhos de uma lhama; vi a grossura interminável do diâmetro de uma jibóia. depois vi muitos quadros do pintor argentino xul solar. e fiquei sem saber, agradecida, se o espanto é maior diante dos hipopótamos ou do porto azul e dos homens-avião de xul solar. que bom.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

cruzamento

enquanto eu procurava no mapa a localização da calle florida, uma das mais movimentadas e certamente horríveis ruas de buenos aires, um homem com aparência de índio sulamericano dormia profundamente, encostado numa porta de garagem. era cerca de meio-dia. sua cabeça pendia de um lado para o outro e ele não acordava, mesmo com toda a movimentação em sua volta. cruzamos milhares de pessoas todos os dias, observamos algumas delas e nem olhamos para a maioria. mas esse homem ficou marcado em mim. seu semblante, mesmo dormindo, indicava que ele tinha sofrido muito durante a manhã, provavelmente procurado vários empregos. consegui ver isso e acho que não estou glamourizando sua pobreza, simplesmente porque ele era um índio dormindo na calçada. o que me surpreendeu foi que estávamos no mesmo tempo, no mesmo espaço, em mundos totalmente diferentes. eu nunca mais vou vê-lo nem ele a mim. fui à florida, detestei, veio a noite, jantei, dormi e é ele que não me sai da cabeça. não quero nem vou fazer nada por ele e não é isso o que ficou fixado. é o cruzamento inadvertido de histórias se raspando impossivelmente. sei lá de que montanhas peruanas seus ascendentes vieram; sei que os meus vieram de absurdos urais. e naquele momento, os andes e os urais se encontraram por uma fração. não houve terremoto, o tempo não parou. tudo seguiu. como? por quê? onde está você, que dormia na praça general san martín? onde está aquela que procurava a localização no mapa?

domingo, 3 de janeiro de 2010

velhice

do misterioso e genial bruno schulz, um kafka ainda desconhecido e por isso mesmo ainda mais kafka: amadurecer até a infância. tenho certeza de que essa é a maior sabedoria da velhice. não ser uma criança, mas uma criança que passou pela maturidade, pela possibilidade grande de não ser criança e escolheu ser.