sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

integridade

um índice seguro de que se chegou à decadência completa de qualquer integridade mental, é se flagrar cantando distraidamente a musiquinha da seguradora.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

sonho

se existe algo como o inconsciente mesmo e se ele realmente produz nossos sonhos, então o meu tem um potencial criativo bem maior do que a minha suposta consciência ou vigília. sonhei que um grupo de pessoas que eu não conheço estava sentado conversando. de repente, eles pararam de falar. nisso, um dos participantes do grupo olhou para cima, apontou e disse: ei, você, que está nos sonhando, pode continuar a sonhar?

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

envelope

recebi um envelope contendo um contrato de cessão de direitos autorais. um papel colado sobre o envelope diz: "três vias do contrato para assinatura do cedente e do interveniente anuente". no caso, eu sou a interveniente anuente. fico me imaginando assim: intervenho, incomodo, mas, no fim, aceito. é isso mesmo. é só a isso que se resume a burocracia. mesmo quando somos intervenientes, ao fim a ao cabo, acabamos sendo anuentes.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

flor

depois de sessenta anos, minha mãe voltou para budapeste com as três filhas. estávamos passeando por uma avenida importante, quando ela parou, arrancou uma flor de um canteiro, tirou a haste da flor e soprou: a flor fez um barulhinho, como o de um apito. era uma brincadeira que ela fazia quando pequena. e ficamos nós três, arregaladas, olhando minha mãe ser pequena outra vez.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

conselho

acho que alguma maturidade me permite dar um conselho: nunca namorem alguém que diga: "ó, vamos fazer silêncio agora. escuta só o baixo."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

amor

a tradução impossível do poema do rené char, "l'amour/ l'être/ le premier venu" pode ser: "o amor/ser/a primeira chegada". não importa a impossibilidade da tradução, porque ela o torna ainda mais intocável na sua precisão. mas não importa de verdade porque, independentemente da tradução, o amor é mesmo, em sua condição infinitiva, a primeira chegada, ou mais, a primeira vinda. se amamos, quando amamos, o objeto de nosso amor acabou de chegar e nós o olhamos, surpresos: de onde você surgiu? (agradeço à leda pela menção ao poema).

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

queijo

preciso comer pão de centeio com queijo minas e um café, no café da manhã, senão não acordo, não trabalho, não vivo. agora, na barraca do samuel, achei um queijo minas sensacional, diferente daquele que vinha comendo, que era seco e salgado e me deixava de mau-humor. este não. é grande, confiável, úmido, na medida exata de sal e o fato de ele estar na geladeira, guardado em seu pote enorme, me faz dormir mais sossegada. sei que amanhã, quando acordar, ele estará lá, silencioso e calmo, pronto para que eu o coma.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

asas

emily dickinson não era a melhor de todas. é muito pouco falar assim dela. ela não se presta a julgamentos e comparações. cada poema está acima do que nosso juízo pobre é capaz de parcamente conhecer. e quando ela diz: "uma vaga capacidade para asas degrada o vestido que uso", eu agradeço a ela e às palavras por me dizerem isso e me contarem o que sou.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

falta

somos aqui em casa três gatos e três cachorros. o pingo, o david e eu atacamos o outro de estabanação, afeto e burrice. sobramos. a mia, a leda e o joão ficam num lugar aquém do ataque. escondem-se discretos, para um bote inofensivo, mas bote. não sobram, faltam. agora minha outra sobra também viajou e então sinto falta da sobra e da falta. fico aqui de cachorro bobo, sem ter a quem derrubar com meu estabano. só o açucareiro, o jornal e a panela. puxa vida.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

complicação

eu costumava ser bem mais complicada do que sou agora. mas, estranhamente, muitas vezes sinto falta dessa complicação. quero pensamentos intrincados, achar tudo mais difícil e não consigo. a realidade resiste e só quer me parecer simples. não que não haja dificuldades, ao contrário, elas existem e são grandes. mas pouca coisa me soa inexpugnável ou tão embaraçada a ponto de eu não conseguir nem compreender. não sei se isso é um mal ou um bem da aproximação da velhice. sei que agora, agora mesmo, queria pensar alguma coisa bem difícil, que nem eu mesma conseguisse entender, alguma coisa emaranhada, cheia de palavras confusas, mas só me vêm ideias simples à cabeça. deveria achar isso uma bênção, mas, nesse momento, me entristece compreender as coisas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

sonho

sonhei que vi uma letra j jogada na rua e que escrevi um post, em meu blog, sobre ela. eu desenhei todo o alfabeto com letras grossas, preenchi as letras com muitos desenhos bonitos e ressaltei aquela letra j , que tinha encontrado na rua. o desenho ficou meio infantil, meio gráfico. nos comentários, as pessoas começaram a se esgoelar para comprar aquela letra, como se fosse um leilão, um rabiscava o comentário do outro, até que ganhou um lance de trezentos mil dólares. não fiz os desenhos fora do sonho, nem saberia fazê-los, mas se quiserem comprar, até por outro valor, posso vender um pedaço de sonho.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

gênio

ontem, cantarolando a canção "qualquer coisa", me dei conta de que nela, rimam as palavras "apanhe" e "mamãe". "quero que você ganhe, que você me apanhe, sou o seu bezerro gritando mamãe." logo depois, numa conversa, fiquei sabendo dos manifestos jóia e qualquer coisa, em que caetano veloso defende com a mesma contundência a precisão do ourives e o relaxamento expansivo. e mais uma vez, então, me senti mais livre por reconhecer a genialidade de caetano e por saber que ele está muito vivo e entre nós. não é um reconhecimento reverencial, ou é também; mas é algo mais. o gênio é aquele que reúne potencialidades esparsas; junta paradigma e sintagma, a latência e potência, numa mesma liga forte e duradoura. caetano, quer namorar comigo?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

avó

na polônia, minha avó se considerava uma intelectual, por ser muito estudiosa, embora fosse de origem bem humilde. achava que o ídish era uma língua vulgar e, desde muito nova se dedicou como auto-didata ao estudo do hebraico, língua erudita e sagrada. aqui no brasil ela continuou os estudos, até dominar toda a gramática, a nomenclatura, as citações bíblicas. nós conversávamos, porque eu estudava hebraico na escola e ela se sentia envaidecida por perceber que falava até melhor do que eu. na primeira vez que ela foi para israel, carregada de expectativas, frustrou-se terrivelmente. ela falava tão bem, que ninguém se surpreendeu com isso. ao contrário, tratavam-na normalmente, como uma israelense. e o que é pior, todo mundo falava hebraico: os motoristas de ônibus, os encanadores, os eletricistas. que língua chucra é essa em que se pode falar "a válvula quebrou", de modo tão natural?