quarta-feira, 31 de março de 2010

língua

"é nóis" é uma das expressões mais perfeitas da língua brasileira. o verbo ser no singular transforma o pronome "nós" em um substantivo, que encerra as ideias de pertencimento, força e permanência de uma só vez. "nóis" é um grupo, um tempo e uma potência. a antecipação do verbo ao substantivo, "é nóis", ao invés de "nóis é", dá a noção perfeita de suficiência. não é preciso ser alguma coisa, porque "é nóis" já é tudo. basta ser "nóis".

segunda-feira, 29 de março de 2010

raiva

gary hill batendo seu corpo contra a parede, enquanto diz que não se reconhece mais , que seus membros não lhe parecem seus, faz reconhecer o tempo e a velhice de maneira tão táctil e agressiva, que eu saí da exposição nervosa e trêmula, pensando em que lugar da memória vou guardar ou desguardar essa sensação e o meu medo. olhar de maneira tão próxima essa separação entre o corpo e os pensamentos, de que forma as mãos, os pés, a barriga vão lenta, e às vezes rapidamente se afastando da mente, causa um efeito como de frankenstein. como se não fôssemos nós mesmos a olhar a obra. acho que a violência do gesto de gary hill é uma tentativa de reunificar tudo. talvez a violência, a raiva, sejam mesmo um bom caminho para a sensação, às vezes doce, às vezes terrível, da passagem do tempo.

sábado, 27 de março de 2010

interfone

o interfone e o telefone quebraram. vieram hoje aqui em casa o reis e o josiel. ficaram amigos imediatamente, mal o josiel passou pelo portão. já compartilhavam o mesmo léxico de fases, fios, cabos de pontas azuis e vermelhas. o problema do josiel era mais simples. veio, arrumou, tentou me explicar o problema e eu não entendi nada. foi embora e nem queria cobrar. saiu e o reis chegou para mim e disse: legal ele, né? o reis ainda ficou três horas e fuxicou tudo até encontrar a origem da má ligação do interfone. disse: podia ficar aqui dez dias, mas não ia desistir. comigo é assim. vou até o fim. ficamos eu e ele muito contentes porque o interfone finalmente funcionava depois de dois meses. antes de ir embora, ele ainda falou: legal aqui, né? legais esses tijolinhos. legal também o moço da banca que me explicou como chegava aqui. ele foi descendo pela rua e eu fiquei parada, pensando: bom dia, reis!

sexta-feira, 26 de março de 2010

quarta-feira

anteontem fui até quarta-feira. não é longe. fica aqui mesmo. começa na minha rua e se estende por todos os bairros. lá é muito tranquilo. tem cinemas vazios, a preços baixos, as ruas são todas silenciosas e, nos restaurantes, não há espera. o trânsito flui. é uma cidade calma e agradável, quase idêntica a são paulo, mas sem os seus problemas. decidi que agora quero ir todas as semanas a quarta-feira.

terça-feira, 23 de março de 2010

habilidade

nhinhinha, de "a menina de lá", de guimarães rosa, era "inábil como uma flor". por que a flor é inábil? porque a flor, cuja maior habilidade é ser bela, cumpre sua finalidade com tanta gratuidade e excesso, que acaba redundando na própria morte. a flor, de tão bela, é breve. se fosse hábil, distribuiria a beleza com economia e duraria mais. mas é só por sua inabilidade que ela é tão assustadoramente bela.

domingo, 21 de março de 2010

safári

eu tinha doze anos e ele quatorze. estávamos apaixonados, mas ele era muito sério. era o líder intelectual da turma, já conhecia o pensamento de esquerda e, por isso, apaixonar-se era um pouco burguês. não demonstrava muito afeto e carinho em público, nem pensar. eu me ressentia disso. um dia ele apareceu de conjuntinho safári. não dava, eu não conseguia nem dar a mão. ele não entendeu nada; se sentiu rejeitado. foi minha vingança burguesa. safári não dá.

quinta-feira, 18 de março de 2010

bobeira

estamos sozinhos em casa e precisamos decidir se vamos viver como dois velhinhos aposentados avacalhados ou chiques. na primeira opção, assistir bbb. na segunda, escutar ópera. na nenhuma das anteriores, falar bobeira horas e horas seguidas.

terça-feira, 16 de março de 2010

fundo

mia, se o fundo azul dos teus olhos não fosse rajado, eu não veria as ondas do mar, as nuvens no céu e não haveria a tristeza que faz com que a tua alegria seja ainda mais linda.

sexta-feira, 12 de março de 2010

caderno

encontrado em um caderno antigo, mas totalmente endossado até hoje: "não quero: nortear, implantar, expandir, agilizar, otimizar, flexibilizar, elaborar, explicitar, encaminhar, sinalizar, inserir, documentar, resgatar, socializar, formular, problematizar, articular, despertar, contemplar, capacitar, multiplicar, habilitar, planejar, intervir, gerir, formalizar, efetivar, promover, reavaliar, segmentar, funcionalizar, objetivar, efetuar, institucionalizar, setorizar, vincular, equacionar, favorecer, apreender, potencializar, conceitualizar, requerer, solicitar, enfatizar, destacar, realçar, finalizar, inicializar, complementar, mapear, tematizar."

quinta-feira, 11 de março de 2010

oração

na letra c do fabuloso alfabeto de paul valéry, ele diz: "é por isso que não se deve orar senão com palavras desconhecidas. devolvei o enigma ao enigma, enigma por enigma. elevai o que é mistério em vós ao que é mistério em si. há em vós algo que é igual ao que vos ultrapassa". na oração, não se sabe o que se ora, nem por que, nem para quem, sob pena de que, com alguma finalidade, a oração se torne também ela um meio. a oração é puramente a permissão de que algum enigma saia e penetre no corpo, pela voz. é a pausa ou o silêncio feito com palavras. não é preciso compreendê-las, como elias canetti em marrakech, que se comprazia em não compreender o que diziam os marroquinos. há oração como essas vozes?

quarta-feira, 10 de março de 2010

endereço

vou criar a categoria do metapost. metapost: quando um post comenta um comentário de outro post. escrevi sobre a aventura com a semolina e o restaurante arábia comentou, me mandando exatamente a receita do doce que eu queria fazer. imagino o post girando em circunvoluções pelas entranhas da internet, a semolina se pulverizando pelas fibras invisíveis, até chegar num endereço que era o que eu queria, mas que sequer tinha imaginado.

segunda-feira, 8 de março de 2010

semolina

quis fazer doce de semolina igual ao do restaurante árabe. fui até o pão de açúcar aqui perto. não tinha semolina e ninguém sabia o que era. descobri que em um pão de açúcar não tão perto, eles tinham oito unidades. decidi ir até lá. demorei uma hora e meia porque era horário de rush, tinha muito trânsito e eu me perdi toda num dos bairros que eu mais detesto em são paulo. mesmo assim, sentia que atingir aquela farinha era como uma caçada inútil e necessária no meio de tantos carros e obrigações. cheguei lá e a semolina já estava me esperando na frente dos caixas. o pacote estava furado e a farinha vazou por toda aquela área do supermercado. peguei outro. demorei mais quarenta minutos para voltar, cheguei em casa e logo percebi que a receita era ruim. além disso, eu não tinha fermento para o doce nem limão para a calda. fiz o doce, que ficou horrível e a calda, que queimou. mais uma vez me senti idiota, como se o gozo da caçada inútil fosse um luxo para caprichosos ou ociosos bobos. mesmo assim, no dia seguinte, tentei de novo, com outra receita. deu certo e já me sinto disposta a muitas procuras inúteis novamente.

sábado, 6 de março de 2010

jeito

para dizer de jeito nenhum, dizia "de deto dedum". para dizer música, dizia "múcuna". para dizer mickey mouse, dizia "mickey nonatch". para dizer copo, dizia "póco". agora diz tudo certo, mas sempre de um jeito que só ela sabe dizer.

quinta-feira, 4 de março de 2010

lembrança

hoje me lembrei que, em vez de dizer "quer queira quer não", meu pai dizia "quer quer quer não". achei muito mais bonito e me deu muita saudade.

quarta-feira, 3 de março de 2010

noruega

estava escrevendo um conto sobre a palavra uivo e usei como personagem a protagonista de um conto de borges, ulrica. num determinado momento do conto (de borges), ela diz: "apressa-te. é o último chamado do lobo", ou algo assim. desenvolvi o conto colocando um poema na voz de ulrica, que falava de lobos e de morte, tudo em norueguês. quase chegando ao final, fui olhar o significado de ulrica nessa língua que, para nós, é como um misto de bruma, falésias e vikings, e vi que é "o poder do lobo". senti-me subitamente apoiada sobre os ombros de borges, galgando por planícies de oslo cheias de dicionários multilíngues espalhados pelo caminho. borges ficava costurando segredos nas palavras e não contava para ninguém. cabe a nós, leitores desfazedores de nós, eventualmente descobrirmos onde eles estão.

segunda-feira, 1 de março de 2010

alma

roland barthes conta que, ainda no século XIX, michelet foi despedido de seu cargo como professor do collége de france, onde o próprio barthes lecionou. na sua despedida, os alunos, para tentar consolá-lo, lhe disseram: "professor, o senhor não nos ensinou nada. somente nossa alma é que voltou para o seu lugar". barthes usa isso como um exemplo do que ele chama de "desaprender". era essa a educação que ele praticava. não ensinar, mas aprender a desver as coisas do mesmo jeito (e não aprender a ver as coisas de outro jeito). ensinar não tem mesmo a ver com o quê, mas com o como. o "quê" do ensino, quando é inteiro, é também um "como". quando se está junto de um professor como barthes, uma professora como eu fico pequena, embora tudo na sua prática seja contra essa comparação. é um professor que ama o tempo todo. ama o erro, ama a fala, ama a falta. minha alma, ao lê-lo, sempre caminha para mais perto de seu lugar.