terça-feira, 29 de junho de 2010

viagem

viagem. quando a margem vira rio. quando os nomes soam vazios e viram somente palavras que não querem dizer nada. só o que dizem. quando "bom dia" é "bom dia" e as cenas que eu já vi, eu nunca antes tinha visto. estar onde só se está. não precisar nem saber. estar só, interminavelmente só, somente por um intervalo. não ter o que dizer e não querer dizer nada. fartar-se de outras latitudes e ver a água girar ao contrário. daí saber que se está no meio de outro lugar do mundo e que o mundo é só mundo e que todos somos só uma margem. é bom ser margem e ninguém. por uma vez, agradecer que ninguém me entende e nem quer entender.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

céu

acho lindo: gente do céu; será o benedito; minha santa periquita do bigode loiro; dá mais que chuchu na serra; tá mais por fora que cotovelo de motorista de caminhão; pede pra são longuinho; puta que o pariu; na conchinchina; foi pra portugal, perdeu o lugar; amarrar o burro; sô; trem; coisar e a minha gatinha mia.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

soldadinho

minha mãe cortava o pão de centeio em bolinhas, as salsichas também, espetava com um palito de dentes e chamava de soldadinhos. fazia carne de sopa e colocava no centro do prato, envolto por um molho de tomate, que era o mar, e purê de batatas, que era a praia. esse prato se chamava "a ilha". fazia espinafre cozido com ovo pochê em cima, numa taça vermelha de vidro, todas as sextas-feiras, quando tínhamos visitas. sopa de pêssego e claras de ovos, como entrada para o jantar. de sobremesa, uma taça longa com café quente e sorvete gelado, que tomávamos com canudinho. em iom kipur, rocambole de chocolate, de onde escorria um fio úmido de chocolate toda vez que eu dava uma mordida. em pessach, ela mexia ovos com matzá quebrada. no inverno, cholnt, que ficava cozendo no fogo durante doze horas e ela acordava durante a noite para mexer. goulash com nhoque e sem creme de leite, com páprica húngara picante. bife de contra-filé que ela salgava na hora, frito com manteiga direto na chapa. como ela conseguia fazer o contra-filé ficar macio? meu pai só sabia assar castanhas, mas assava com tanto orgulho que era como se soubesse cozinhar muito bem. eu só sei fazer mussaka, torta de ameixas e damascos, brownies e macarrão com ossobuco desfiado. a comida não é uma parte da minha vida, uma parte do meu tempo. é o pão que eu como com o mundo.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

saudade

o dicionário diz que saudade é um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude. como assim, mais ou menos? como saber se um sentimento está mais ou menos melancólico de incompletude? e por que às vezes é saudade e outras vezes saudades? será que quando é menos é saudade e quando é mais é saudades? penso que saudade é mais geral e saudades, mais específico. e que saudade é mais melancólico e saudades é menos melancólico. mas, de incompletude, os dois sentimentos são. e eu, agora, estou com muito sentimento melancólico de incompletude específico.

sábado, 19 de junho de 2010

david

eu falo muito, pergunto muito. ele responde monossilabicamente. eu faço quinhentas coisas legais por dia. ele diz que não se lembra de nenhuma. eu fico preocupada. ele pede para eu deixar quieto. eu busco as coisas. ele não. ele, acho, já encontrou. ele é como o sol, a tarde, o futebol. ele acontece. o nome dele é david e, embora eu ache que é um nome cerimonioso demais para ele, tenho também a certeza de que esses dois ds, inicial e final, envolvendo um v central, que é ladeado por um a e um i, compõem com perfeição a segurança das margens encerrando a velocidade e a voracidade no meio, ancoradas pelos sons que se abrem para o mundo. então ele é o nome dele. e eu agradeço a tudo por isso.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

avó

minha avó nasceu na polônia e era feia. como ninguém queria se casar com ela, o pai dela fez um arranjo com o próprio irmão, para que ele a aceitasse como esposa. ela foi até a antiga iugoslávia, onde ele morava, e se apresentou como futura esposa. ele a achou muito feia. mas daí não havia mais o que fazer e eles se casaram. ela sobreviveu à guerra e ele não. o nome dele era benjamin jaffe. durante muito tempo, minhas irmãs e eu achávamos que ele, na verdade, tinha sobrevivido, sim, e tinha ido para hollywood trabalhar como ator. provavelmente para fugir da guerra e da feiúra. nos créditos dos filmes havia mesmo um ben jaffe, narigudo como ele devia ser. na verdade, ele também não devia ser lá essas coisas.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

erro

não valorizar o erro tão excessivamente a ponto de isso se tornar uma tirania, um outro tipo de acerto. valorizá-lo só até onde ele ainda é apenas um erro, sem a mesquinhez de tornar-se uma teoria do errado. errar pelas bordas, errar um pouco no meio, errar para não saber nunca o final.

domingo, 13 de junho de 2010

repetição

não sei se o fato de ter repetido um post é bom ou ruim. acho que é mais bom do que ruim. acaba sendo como se esse lugar aqui fosse uma espécie de amigo, para quem eu conto a mesma coisa várias vezes, sem me dar conta disso e o amigo responde (quando é amigo mesmo): você já contou isso antes. mas pode ser ruim também. pode querer dizer que até a virtualidade envelhece. mas isso seria muito mais um bom jogo de palavras do que a verdade. repetir-se, dentro de limites, é uma forma de esquecimento ao contrário. esqueci que me lembrei demais.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

demora

algumas coisas demoram. moram mais tempo, saem do tempo. nos observam, incuriosas e um pouco displicentes. poderiam perguntar-se: "será que ele(ela) vai aguentar esperar?" mas nem isso se perguntam. aguardam aconchegadas na morada dos dias, dos meses, dos anos, até chegar sua vez de acontecer. não têm pressa. deixam-nos aflitos e talvez até se divirtam com nossa ansiedade. é preciso olhar para elas, lá no alto da montanha, na rachadura de uma rocha, no fundo da terra onde elas costumam ficar até chegarem aqui, e fitá-las calmamente. no máximo, murmurar: "está bem, coisa. eu espero por você."

quarta-feira, 9 de junho de 2010

filosofia

estava em éfeso, na turquia, onde conheci dois professores de filosofia de uma universidade americana. ficamos todos hospedados num hotel de quinta categoria, a dois dólares por noite. a cidade antiga, onde estão as ruínas romanas mais bem conservadas do mundo, fica fechada à noite. eu tinha visto alguns instrumentistas se dirigindo à entrada da cidade e resolvi segui-los. na entrada, ninguém nos bloqueou, provavelmente porque concluíram que éramos acompanhantes dos músicos. eles rumaram para as ruínas totalmente intactas de um anfiteatro romano. havia centenas de pessoas sentadas lá e o resto da cidade estava todo iluminado e completamente vazio. era possível ver as ruas, as casas, a escola, a biblioteca, tudo como se fosse em roma antiga. o público do teatro eram os passageiros de um cruzeiro chique americano e os músicos iriam tocar um concerto para eles. sentamos e fingimos também ser passageiros chiques. os músicos eram meio mambembes, mas isso só fez aumentar a beleza do lugar e da atmosfera. no intervalo do concerto, a hostess se aproximou de nós três e perguntou: "desculpem, vocês pertencem ao navio?" nós dissemos que não. ela se desculpou e disse que, nesse caso, precisaríamos nos retirar. o concerto era exclusivo. um dos filósofos, de inteligência rápida e tipicamente americana, soltou imediatamente: "tudo bem. já fui expulso de lugares bem melhores." duvido.

terça-feira, 8 de junho de 2010

ego

como cresci ouvindo falar de ego, id e superego, acabei assimilando a ideia, como acredito que tenha acontecido com muita gente, de que eles são instituições, coisas fixadas em nossa mente, como objetos móveis. por causa dessa compreensão obtusa, quando tenho pesadelos horríveis, como o que tive essa noite, fico com raiva do inconsciente. penso: "puxa, faço tanto esforço para amadurecer, para equilibrar as pulsões violentas e passionais do id à força policial do superego, tenho um ego tão esforçado e o inconsciente fica lá, parado, burro, com as mesmas fantasias de quando eu era pequena."

sábado, 5 de junho de 2010

angústia

o som "g", na palavra angústia, é o que dá a ela a sensação exata de seu significado. como passar pelo corredor estreito desse som, que não vem do pulmão, mas diretamente da garganta, paralisando-a e paralisando-se nela? e, para piorar a situação, antes dele vem o "an", um som contínuo e meio burro, carente e imediatamente frustrado pelo "g", que o bloqueia. em seguida, tornando tudo mais terrível, vem o "u", com acento agudo. o "u" preenche a potência paralisante do "g" com ainda maior medo e horror. mas, felizmente, logo em seguida, vêm o "s" sibilante e consolador e o ditongo crescente "tia", prenunciando que logo a trava do "g" vai se desfazer e sempre virá um "a", aberto como o vento, para soltar-se boca afora e dissolver-se no ar.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

ausônia

anteontem a ausônia me ligou. eu estava no meio de uma reunião. atendi baixinho, como procede a alguém nessa situação e ela imediatamente desarticulou todos meus bons procedimentos. gritou: "nonozinha! sabe por que eu liguei? porque eu estou com saudades, nonozinha. porque eu te amo!" "não tem motivo nenhum, e eu não quero te falar nada. vai trabalhar, vai, porque você deve estar numa reunião, né?" eu só disse bem baixinho: "eu também te amo, ausônia".

quarta-feira, 2 de junho de 2010

simplicidade

queria saber escrever um conto que dissesse: "ontem eu encontrei um homem baixo, que me contou aquela piada sobre alguém que perguntou para um português se ele sabia que horas eram, e ele respondeu que sabia. mas não falou as horas". mas eu não consigo escrever isso. fico perguntando: "mas e o homem baixo? por que ele era baixo?" e penso também: "essa simplicidade na narração da piada é, na verdade, estilizada demais. finge ser simples mas é pura linguagem." eu queria saber escrever de um jeito simples, que não fosse querer ser simples e de um jeito bem burro, mas que fosse muito inteligente.