sábado, 31 de julho de 2010

nome

à etimologia de deus, de theos, do grego, que significa ser supremo, prefiro a de god, que, lá das lonjuras ostrogodas, significa suco, daí: aquele que se derrama sobre nós. o deus suco se mistura conosco. gosto demais também de um dos nomes de deus em hebraico, que é mesmo "o nome". outra designação linda, também em hebraico é somente o artigo "o". deus como o nome de deus, ou como o artigo que precede seu nome, soam como magia, domínio de uma língua sagrada, que abriria portas, assim como abracadabra. agora não sei se prefiro o nome ou suco, mas ser supremo, definitivamente não.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

caras

um poema meu sobre o tempo dos olhos do cachorro saiu na revista caras. na capa, aparece a adriane galisteu grávida. acima do trecho do meu poema, dois cachorros bonitinhos se entreolham. de início, fiquei brava; depois, condescendente e agora, um pouco feliz. ingresse no mundo feio, meu poema, vá até a cerimônia do casamento de georgette mirna e ao batizado do filho do jogador do atlético mineiro. espie por baixo dos vestidos versace e conheça o castelo de caras em punta del este. siga o seu caminho, meu poema e me mostre de volta o que eu ainda não conheci.

terça-feira, 27 de julho de 2010

memória

a memória como os nós de uma árvore, como as divisões do corpo de uma cobra, como as camadas geológicas da terra. os acontecimentos se sedimentam, não superpostos, mas agregados. assim, minha avó que tinha vergonha de se sentar, porque saberiam que ela tinha nádegas, se mistura com a briga que tive com a professora de português no primário e, possivelmente, até com a comida de ontem, se, por um acaso, ela recendia a algum sabor da casa de minha avó. à noite, entregue à dissolução dos sedimentos, sonho que minha avó e minha professora entraram em minha cozinha e vieram jantar comigo. já acordada, naquele estado privilegiado que precede a vigília, sinto uma ligeira vergonha de existir.

domingo, 25 de julho de 2010

gagueira

na primeira parada do trem de naharya para tel aviv, entraram mais de vinte soldados. eles rapidamente se acomodaram e eu logo percebi que eles se dividiram entre os russos e os etíopes. sentaram três etíopes ao meu lado e, à minha frente, quatro russos. um dos soldados russos era gago. ele dizia: "s..s...s...s...slushai mi", que quer dizer "me escute". eu nunca soube que podiam existir soldados russos gagos num trem de naharya para tel aviv.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

acento

os acentos são rastros de um tempo em que ainda havia uma conexão próxima entre a língua falada e a música. indicam tonicidade, atonicidade, agudos e graves, portanto também volume, potência e arranque da dicção. se sumirem os acentos que ainda nos restam, as palavras vão ficar cada vez mais mudas, parecidas somente com seu significado, que talvez seja o que elas têm de pior. como é bom ouvir o som de ágora, de agora e de angorá; de vírgula e de mosquito. como me consola saber que todas as proparoxítonas são acentuadas e como é chato pensar que não se acentuam mais as paroxítonas terminadas em ditongo crescente.

terça-feira, 20 de julho de 2010

volta

voltar significa completar o giro. gira a terra em torno do sol, em torno de si mesma e giramos nos por sobre ela e a nossa propria volta. voltar nao quer dizer dar as costas para onde se esteve, mas somente olhar para ele de um ponto mais distante do circulo. como o sol vai brilhando sobre a terra em horarios diferentes, assim tambem a terra brilha sobre nos, que vamos andando por ela. amanha ela vai brilhar para mim de volta ao pais dos teclados com acentos. levo comigo a escrita da direita para a esquerda e as vogais marcadas por pontinhos sob as consoantes. ate ja, crase!

domingo, 18 de julho de 2010

xicara

abri a porta da pousada de quinta categoria onde dormi em safed, uma das cidades mais sagradas de israel, e o rabino dormia sentado na cadeira, com a xicara de cafe sobre a mesa. fui ao banheiro, escovei os dentes, me arrumei, voltei e ele ainda dormia. entrei no quarto, peguei dinheiro, fui ate a venda comprar frutas e pao, voltei e ele continuava dormindo. fiz algum barulho diferente e ele acordou. para nao parecer que dormia, pegou a xicara de cafe e comecou a beber como se nunca tivesse parado. no meio do processo de fingimento, adormeceu de novo, com a xicara na mao. fiquei olhando, devagar, ate que ele deixasse o cafe derramar inteiro sobre a perna. o cafe foi caindo, eu fiquei sorrindo em silencio e ele acordou outra vez. colocou a xicara sobre a mesa e continuou a dormir.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

ele

acho que descobri. nao escolhi gostar dele. gostar dele é que me escolheu. nao gosto dele nem por isso nem por aquilo. apenas pratico gostar.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

gobelinhos

de manhã bem cedo, os gobelinhos chegam à estação gobelins, em paris. alguns se atrasam, mas ninguém se importa. eles trabalham o dia inteiro embaixo dos trilhos do metrô e fazem paris funcionar. o chefe deles se comunica com eles a partir da ponta de um cadarço de tênis, e trabalha num bistrô chamado chez gladine, onde serve carnes deliciosas com batatas a preços acessíveis. na verdade, ele é um espião dos gobelinhos. quando chega a noite, todos eles voltam para casa, onde dormem aconchegados dentro de um tênis gigante, tamanho quarenta e oito. mesmo assim, por efeito de inércia, paris continua funcionando perfeitamente.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

paris

é como se paris fosse uma cidade encoberta por um véu. como se estivesse sempre distante. como se nao fosse possivel toca-la, porque ela se afasta. a luz que a contém é obliqua, nao como a do brasil e, por isso, ela se protege e impede movimentos agressivos. ela pede silencio. eu fico quieta e digo a ela: obrigada por ter inventado este azul.