quarta-feira, 29 de setembro de 2010

tamanquinhos

o tio arthur me deu o grande livro de poesia para crianças, que eu lia todas as noites. hoje, por causa do barulho dos meus chinelos, lembrei da canção dos tamanquinhos. troc, troc, troc, troc, vão cantando os tamanquinhos, troc, troc, troc, troc, ligeirinhos, ligeirinhos, troc, troc, troc, troc, pelas portas dos vizinhos. tamanquinhos, vocês cantam o som que faço quando desço as escadas, quando vou para o trabalho, quando fico triste, quando converso com alguém. vocês reverberam ritmados no fundo da memória, enquanto a vida vai passando e, quando vocês decidem, como hoje, vêm à tona me lembrar que, para sempre, são vocês que coordenam meus passos e meus caminhos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

graciliano

severino, porteiro do tuca, que é de palmeira dos índios, cidade de graciliano ramos, me contou esta história: quando graciliano era prefeito de lá, uma mulher que vendia bananas teve toda sua mercadoria pisoteada por um cavaleiro arrogante. era domingo. ela se dirigiu imediatamente à casa do prefeito, que terminava o café da manhã, e lhe contou toda a história, reclamando do prejuízo. graciliano mandou chamar a polícia, que caçou o tal sujeito e o trouxe até sua casa. graciliano então exigiu o ressarcimento. o fulano tirou o dinheiro do bolso e disse: isso aqui que eu tô dando é uma esmolinha. graciliano disse: tudo bem, então. a esmola o senhor dá, agora o prejuízo o senhor paga. e fez o sujeito pagar duas vezes.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

bastante

desconfio que a palavra bastante, ao menos do modo como vem sendo usada, é mentirosa. ela diz exatamente o contrário daquilo que parece dizer. dizer que alguma coisa é "bastante boa" é um eufemismo para não dizer que ela é ruim. o mesmo com "bastante inteligente", "gostei bastante" e, principalmente, para a pior de todas as apreciações de alguma coisa: "bastante interessante". que a vida sempre me proteja de ser "bastante interessante". afinal, bastante é só o que basta e só o que basta não é bastante.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

fresta

quando a gente dorme, as palavras ficam também dormindo numa caixa amarela. no momento de despertar, a tampa da caixa se abre lentamente e, pelas frestas, algumas palavras vão saindo aleatoriamente. então sai assim: "a senhora já viu uma coisa dessas?"; "lambuzado"; "dá cá aquela palha"; "verde-musgo"; "atrás do trio elétrico". elas aparecem já na nossa boca e, quando vemos, estamos falando. daí elas saem para o ar, onde se misturam com o relógio, a luz do dia, os barulhos distantes. elas não gostam muito disso e voltam para perto de nós, já todas arrumadinhas. querem entrar. a gente pega as palavras, dá uma organizada e, também um pouco tristes, condescendemos e começamos a falar coisa com coisa.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

poder

cada vez parece mais que todos optam pelo silêncio. não o silêncio contemplativo, que escuta e demora. mas o silêncio de quem não quer se comprometer. vamos a lugares, encontramos pessoas e aprendemos a falar pouco, cada vez menos. este tipo de silêncio é linguagem de poder, porque ele encerra um conteúdo claro: "não preciso de você". tendo a pensar que este tipo de discurso enviesado, mas altamente funcional e eficiente, na verdade diz exatamente o contrário: "preciso tanto de você, que jamais vou deixar que você ou alguém perceba".

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

oi

adoro a palavra oi. mal parece expressão fática, de tão expressiva e comunicativa que é. como dizer melhor o reencontro, o prazer de avistar, a brevidade do cruzamento, a brasilidade do cumprimento? ela expressa alegria rápida, surpresa e, como som, ela é completa, redonda e, por ser um ditongo monossilábico decrescente, termina rapidamente e com conclusividade o que quer dizer. o oi é ótimo. mas o problema, o problema sério, com o qual não consigo me acostumar e que me atrapalha os encontros sociais, é o "tudo bem?".

sábado, 18 de setembro de 2010

dente

como é digno ter um recipiente no banheiro onde se guardam as escovas de dentes de cada pessoa da casa e reconhecer: essa é dele, essa é dela, essa é minha. prometo, por tudo o que me é sagrado, ter um potinho para as escovas de dentes, independentemente do que possa acontecer na minha vida.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

solidão

a solidão pode ser um presente. ela obriga ao silêncio, que é a melhor resposta para grande parte das perguntas. obriga ao espaço mais amplo e mais vazio, onde o corpo respira com mais extensão e mobilidade. ela nos faz ouvir a respiração, ver melhor a pupila azul da gata. ela dá mais peso e espessura ao tempo e quase é possível ouvi-lo passar. ela é cerimoniosa e não convencional como os encontros fortuitos. ela é uma companhia que vai se descobrindo aos poucos, sempre cheia de novidades e seus segredos só se revelam com muito cuidado e graça. ela habita a noite, mas vem me visitar também durante o dia, especialmente às tardes. senta embaixo do armário do corredor e quando eu a avisto, digo: olá, solidão, entre no meu quarto, você quer um café? ela nunca quer, não gosta de incomodar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

ditados

ditados de que eu não gosto: deus ajuda quem cedo madruga; de boas intenções o inferno está cheio; mais vale um pássaro na mão do que dois voando; amigos, amigos, negócios à parte; não existe almoço grátis; dize-me com quem andas e te direi quem és; se conselho fosse bom, era vendido, não dado; é de pequenino que se torce o pepino; o ócio é a mãe de todos os vícios; lavo as minhas mãos; cada macaco no seu galho; cada qual é para o que nasce; desculpa de aleijado é muleta; gosto não se discute; manda quem pode, obedece quem deve; não se deve dar pérolas aos porcos; o pão do pobre cai sempre com a manteiga virada para o lado de baixo; passarinho que anda com morcego, acaba dormindo de ponta-cabeça; quem pode manda e quem não pode, faz; quem empresta, adeus; quem sabe faz, quem não sabe ensina; todo homem tem o seu preço.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

ovos

ele foi visitar o campo de concentração onde esteve sua avó e encontrou ali, no chão, uma nota de cem zlotys. como estava junto com um grupo de mais vinte pessoas, todas jovens como ele, resolveu que aquela nota poderia transformar aquela viagem numa lembrança única, como era única sua passagem por lá, onde sua avó, cuja história, embora em tudo se assemelhe a de tantos outros prisioneiros, também viveu uma história única. passou por uma loja de lembranças e comprou vinte ovos de cerâmica decorados, típicos dessa região da europa. no final da viagem, ofereceu um ovo a cada membro do grupo. o dinheiro no chão do campo de concentração, que lambia a face da morte, se transformou, pelas mãos de um menino, em ovos de páscoa para vinte jovens brasileiros e a vida então cresceu, se multiplicou e da memória nasceram ovos únicos e bonitos.

sábado, 11 de setembro de 2010

camundongo

em mais um livro inacreditável de philip roth, o teatro de sabbath, ele fala dos três camundongos cegos: iria, deveria e poderia. sim, são mesmo três camundongos cegos essas criaturas tirânicas conjugadas no futuro do pretérito. pequenos, horríveis, temerários e nunca conseguimos matá-los, mesmo que sejam cegos. sua cegueira os fortalece, os torna companheiros no infortúnio, que é o pior tipo de parceria que pode haver. juntos, eles decidiram rir da nossa cara; nós, criaturas totalmente submetidas ao seu poder. é preciso fundar a revolução do presente do indicativo, feita de gatinhos, cachorros e elefantes que enxergam, fazem barulho, não precisam ser exterminados e gritam pela cidade, em altos brados: devo, posso e vou.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

skype

a moça do ibge veio aqui. perguntou: tem filhos? disse que tenho e que os dois estão fora do país. daí falei: graças a deus que tem o skype. sem ele não sei o que seria de mim. ela perguntou: é seu marido?

terça-feira, 7 de setembro de 2010

doce

doce de papoula; sundae de chocolate com cobertura e fundinho de chocolate; torta de ameixas e damascos; rocambole de nozes; bolo de mel; tiramisu; brigadeiro; bolo bem molhado de coco; bolo bem molhado com abacaxi em calda virado de cabeça pra baixo; doce de semolina com amêndoas; doce de pistache; doce de leite; doce de abóbora sem coco e com coco; doce de mamão em pedaços grandes; torta de ricota doce; doce de casamento com aquela noz bem grande no meio; bolo de casamento molhado com gosto de nada; bolo com recheio de doce de leite; suspiro; só a raspinha de chocolate dos bolos de aniversário; bolo de fubá; pamonha; sorvete de pistache queimado; picolé de coco queimado da praia do gonzaga; compota de pêssegos da minha mãe; pão doce com creme escorrendo para fora; sonho de padaria; biju; bis bem geladinho; chocolícia; crepe de banana; qualquer coisa com banana doce; farofinha doce; bolinho com geléia de goiaba da minha mãe e todos os doces gostosos nesse ano de cinco mil setecentos e cinquenta e um novo e doce que vai começar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

dança

fui ver o ensaio dos dançarinos da são paulo companhia de dança. não consigo nem imaginar que o espetáculo seja mais bonito do que o ensaio. ensaiando, eles se olham no espelho, testam todos os movimentos diversas vezes, sorriem e fazem caretas e eu, a espectadora, posso ver os seus corpos bem próximos de mim. não são corpos. são verdades moventes, extensões do espaço, a própria verticalidade e horizontalidade caminhando puras em minha direção. a linda menina que faz o fauno de debussy, depois do ensaio, vem conversar comigo: "como a vida é sem graça quando não sou um fauno." menina, você é a graça que, por sorte, também solta palavras que consigo entender. as outras, as línguas que esses dançarinos falam, estão em dicionários secretos e é preciso conhecer códigos ocultos para abri-los. por enquanto, só me resta olhar, por uma fresta do muro do mundo, essa totalidade que fala uma língua adâmica.

sábado, 4 de setembro de 2010

paixão

pelo que uma pessoa se apaixona? nada de substantivos abstratos, ideias, comportamentos. ninguém se apaixona pela inteligência, a generosidade, o caráter. o que move o pathos, essa febre que junta o corpo e a alma mais do que muitas religiões, é a pálpebra caída, o paletó amassado, dois canudos no lugar de um e o jeito mais aberto de pronunciar uma letra.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

sapatos

ali, deitada na cama dela, fiquei olhando os sapatos ao pé do armário e o cabide pendurado na maçaneta da porta. no cabide, a roupa que ela vestiu ontem. a camisa lisa de manga estampada, com as mangas ainda arregaçadas, tão a cara dela, tão bem penduradinha. a bolsa imitando couro de crocodilo, compacta, com um fecho dourado, em outra maçaneta. outra bolsa mais para um canto mostrava que ela tinha ficado na dúvida, na noite anterior, sobre qual combinava melhor com a roupa. mas os sapatos, especialmente eles. pequenos, com um salto baixo, também bege, ali, um ao lado do outro, me fizeram pensar como aquilo que eu via era ela viva, como a sinto viva e próxima naqueles sapatos dispostos daquela forma e como não quero nunca vê-los guardados não ali, mas dentro de algum armário.