segunda-feira, 29 de novembro de 2010

visão

meu aprendizado das coisas do mundo é tão absolutamente mediado por palavras, que creio ter desaprendido a praticar o sentido da visão sem esta mediação. para cada trabalho de arte que vejo, quando percebo já estou narrando, pontuando, acentuando, interpretando metáforas. se não consigo fazer isto, quando o apelo sensível é tão forte que me retira as palavras, sinto uma mistura de prazer e abandono. fico só diante de um barulho visual. então me entedio, fico emburrada ou, como no caso de alguém feito anish kapoor, consigo esquecer de mim. ver, para mim, é um esforço que precisa combater décadas de letras, palavras, línguas e histórias atabalhoadas, atropelando-se umas às outras, temerosas de cair por terra no momento em que eu conseguir olhar.

sábado, 27 de novembro de 2010

circunstância

um amor ainda não realizado produz uma sensação de flutuação, de embalo ligeiro, de nostalgia do que ainda está por vir. rapidamente porém, chega a circunstância, líder máxima das forças militares da realidade, e abate a tiros ou simplesmente com um puxãozinho, o voo bobo do apaixonado. o amor que iria acontecer nem foi e já passou. já passou.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

tia

ela me dizia, quando abria a porta: "ói ela, com as calças do pai dela!"; ela falava que eu me chamava noemi porque quando eu nasci, meu pai, que queria muito um menino, teria dito: "no é minha"; ela batia toddy quente no liquidificador, antes de nós irmos para a escola. punha num copo comprido, que ficava cheio de espuma na borda. do bife dela eu não gostava, porque ela batia muito e fritava com alho; ela era bem mais jovem e antenada que minha mãe; era brasileira, estudada, e não estrangeira, o que me dava uma ponta de inveja da minha prima; ela era brava e ao mesmo tempo engraçada; se pintava muito e a cara ficava cheia de pó de arroz; tinha uma casa chique, cheia de quadros e móveis diferentes, com degraus na sala e uma copa acarpetada, com as paredes forradas de madeira. hoje ela morreu e eu só guardo dela o passado. quem era ela, além de minhas memórias? não sei, nunca vou saber.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

degraus

oração bandeiriana para as pessoas um pouco doentes: peço, de coração, que diminuam os degraus das escadas; peço que na televisão só passem filmes bons; peço que a tva assine enfim o universal channel para que os doentes possam assistir house; peço que os hotéis não tenham carpete nos quartos; peço que os livros não deem sono; peço que os remédios para dor de garganta não deem dor de estômago, o que, por sua vez, exige outros remédios, que fazem mal para outras partes; peço que as canjas sejam bem temperadas e sem caldo de carne maggi; peço que a paciência, deusa dos que estão um pouco doentes, jogue sobre nós sua longa manta e não nos peça para descosturá-la durante as noites.

domingo, 21 de novembro de 2010

futuro

todo nosso escopo de memória só se refere ao passado, mas eu quero também uma memória do futuro. lembro do meu tataraneto brincando de serra, serra, serrador quando ele será bem pequenininho e depois, já adulto, lembrando-se disso. meu tataraneto terá o nome de pedro e nunca saberá da minha existência, mas eu sempre me lembrarei dele, sem mágoa alguma por isso.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

gramática

sou contra ensinar gramática. acho que é a mesma coisa que aprender como funcionam todas as partes de uma bicicleta para poder andar nela. a gramática se aprende, não se ensina. ou melhor, só se ensina para quem estiver muito interessado em aprender. agora, preciso falar: adoro a crase, os pronomes relativos e as orações subordinadas. adoro não só seu uso, elegante e diferencial, mas o próprio nome, que remonta ao latim, a um tempo em que gramática e filosofia eram fonte e fruto de um mesmo pensamento. mas desde que esse vínculo se perdeu, é absurdo ensinar gramática como se fossem as regras de falar bem. ela não é nada disso e falar bem em nada depende disso.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

canudinho

o canudinho de massa folhada recheado de creme de baunilha, que um velhinho vendia pelas ruas do bom retiro, numa banquinha que ele carregava no colo, chamava-se atirabaitina, atirabaititina ou batitina batitina?

domingo, 14 de novembro de 2010

filhos

eles são a concentração de sal e sangue que assoma na fronteira entre os olhos e o nariz, quase provocando o choro, que é rapidamente contido para que a sensação se mantenha e não se dissolva em líquido.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

folga

chata é a melhor palavra que existe para as coisas e as pessoas chatas. a vogal "a" duplicada - a mais aberta e por isso mesmo a mais impertinente das vogais da língua - o dígrafo "ch" e a consoante "t", que arrastam a vogal para o chão e criam um misto de martelamento e chiado, expressam perfeitamente a planaridade, a insistência e a folga dos chatos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

everest

uma declaração de amor que eu queria ouvir agora: vamos juntos dar a volta no quarteirão, entrar naquela igreja onde o padre diz que joga bingo, olhar os móveis que estão à venda dentro da rotatória, roubar um rolo de fita adesiva da fábrica na outra esquina e depois almoçar no chinês chamado everest?

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

pau

tinha dificuldades em fazer amizades quando era pequena. na praia, então, minha mãe se aproximava de alguma criança e perguntava: "quer ser amiguinho da minha filha?", com isso quase me enterrando na areia de vergonha. a criança geralmente queria e ficava minha amiga. hoje, penso que aprendi, com ela, que ser cara de pau é uma subversão de conteúdo até político. trata-se de uma contorção na expectativa de decoro, que desarma o interlocutor e o obriga a atitudes mais sinceras, porque impensadas.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

que

a frase que deus dirige a moisés, quando se apresenta a ele sob a forma de sarça ardente, diz assim em hebraico: "ani ma she ani". como não há verbos no presente do indicativo em hebraico, a tradução literal desta frase, em português, ficaria assim: "eu o que o que eu". creio não existir tradução mais perfeita para a intenção de totalidade e eterna presença contida nesta frase. ao mesmo tempo, ela também soa como um absurdo eterno extraído de um livro de beckett. enfim, o nada de beckett está muito mais próximo da unidade divina do que nossa incapacidade linguística é capaz de alcançar.

sábado, 6 de novembro de 2010

mia

há dias venho tentando escrever um poema lindo, falando muito mal de um homem-ideia e não consigo. só saem coisas-ideias horríveis. e depois, quando eu olho para ela e a vejo brincando com um peixinho minúsculo de plástico, surfando num anúncio de jornal, se escondendo dos raios da chuva atrás da bicicleta e observando os acontecimentos do quintal a partir de um posto privilegiado no beiral da janela, daí as coisas-ideias já ficam inutilizadas como elas já eram antes de eu escrevê-las.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

sabedoria

sabedoria da aceitação e sabedoria da recusa. não sou sábia o bastante para escolher qual delas adotar. a aceitação é o recebimento gratuito (grato e desinteressado) dos eventos em sua imanência mesma. a recusa é uma briga subversiva contra a adaptação e o hábito que a passagem do tempo forçosamente deposita sobre os mesmos eventos. como saber optar?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

vão

clarice lispector, através de rodrigo s.m., o narrador de a hora da estrela, diz que "rezar é conseguir um oco de alma" e que não se pode querer mais do que isso. rezo, mesmo sem saber em que acredito ou mesmo se acredito, porque na reza abre-se um vão entre as palavras, um vão de palavras e por ela eu sei que posso sim, e me alegra, dizer o nome de deus em vão.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

passamanaria

ia passear com a minha mãe na ladeira porto geral e na vinte e cinco de março. ficava olhando aqueles rolos de fita, de cetim e, principalmente, os de passamanaria. tinha os de florzinha, de borboleta, de bolinha, xadrez, listrados. eu queria. eram iguais aos que tinha no bazar da rua três rios, com a mãe velha, brava e os filhos abobados que serviam a gente. mas na ladeira porto geral tudo parecia mais inacessível, profissional. um dia, sem que eu pedisse, minha mãe me comprou um pequeno rolo de passamanaria estampada. hoje descubro que passamanes são galões estampados entretecidos a fios de ouro, dentro da tradição francesa. mas, para mim, sempre foi uma corruptela de passa na maria.