quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

pessoas

há muito tempo

as pessoas, quando se encontravam

gritavam:

ah, oh, sim!

agora não.

as pessoas

têm falado muito baixo.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

véu

theodor adorno disse a conhecida frase: "escrever poesia depois de auschwitz é um ato bárbaro". embora esta frase estivesse dentro de um contexto maior e não seja tão restritiva quanto parece, ainda assim, e sem ter vivido nada sequer semelhante àquilo, ouso dizer que, depois de auschwitz, só é possível escrever poesia. como a língua ficou manca diante do uso que dela foi feito, como se tornou impossível falar sobre o indizível em língua de homens, a única língua possível é aquela do incomunicável, do incomunicante, do que não tem como objetivo a impossível comunicação. para falar das coisas como coisas só é possível dizer, como paul celan: "deixa-nos respirar o véu que nos esconde um do outro".

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

esquecimento

o saudável esquecimento da dor parece implicar também, e necessariamente, no esquecimento do prazer. isso faz surgirem algumas perguntas: será que o esquecimento da dor (de toda dor) é mesmo saudável? e será que o prazer também é esquecido porque sua lembrança provoca o medo de mais dores? será que quem consegue esquecer a dor teme também o prazer? uma espécie de termostato da memória parece ligar a dor e o prazer como sensações que guardam certas semelhanças, seja por efeitos físicos, psíquicos e até de origem supersticiosa ou cultural, não sei. sei que, por isso, temo esquecer a dor. temo que, com isso, minha economia mental me proíba de lembrar do prazer.

sábado, 25 de dezembro de 2010

roda

quando eu era pequena, antes de dormir eu imaginava uma roda gigante girando cada vez mais rápido para um mesmo lado, até que ela disparasse desenfreadamente. daí eu tentava parar aquele movimento e girá-la para o outro lado. às vezes eu conseguia, às vezes não. aos poucos fui desenvolvendo uma técnica de blefar a roda. quando ela menos percebesse, em seu giro louco, eu pegava e, num tranco, conseguia fazer ela mudar de direção. daí, dormia.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

sempre

mesmo que a física há muito tempo tenha descoberto que o tempo é irreversível e que caminhamos sem volta para um fim qualquer, todo fim de ano teima em negar essa lei e nos faz acreditar, como num poema, como nas colheitas, como nos nascimentos, que não é nada disso. tudo vai e vai se repetir para sempre e termos chegado a dezembro significa que felizmente recomeçará janeiro e celebraremos humanamente a repetição.





quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

teto

algumas coisas que, de tão especiais (ou banais, ou sagradas), deveriam ter um teto máximo de vezes por mês para serem pronunciadas pelas pessoas:
- verdade (três vezes por mês)
- verbos no pretérito mais que perfeito (uma vez por mês)
- sempre ou nunca (uma vez por mês)
- verbos no futuro simples (duas vezes por mês)
- eu te amo (uma vez por semestre).

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

iou

de acordo com giambatista vico, a primeira palavra pronunciada pelo homem teria sido "iou", de onde deriva "deus". esta palavra seria como um grito primal, resultado da visão que o homem teria tido do primeiro raio. segundo ele, no paraíso não chovia e foi somente depois da expulsão de adão de lá, e com a primeira chuva, que teria surgido a primeira palavra. a língua de adão com deus, para vico, era mental e muda, não pronunciada. o primeiro grito do homem, então, foi consequência do espanto, do medo. será que adão não sentia medo nem espanto? o que será que adão conversava com deus na língua mental? haveria comunicação ou somente uma continuidade integrada de ideias, ou, nem isso, de sensações? o que será que deus podia pensar? por que adão não disse "iou"?

sábado, 18 de dezembro de 2010

para todos os meus amigos que me fizeram tanto bem neste ano

um amigo fala pra o outro amigo: "ah, estou de saco cheio disso, disso e daquilo". o outro: "ah, você sempre está de saco cheio de alguma coisa. isso não é novidade." o um: "é mesmo. você já me conhece há tanto tempo. dessa coisa eu já fiquei de saco cheio no ano passado e dessa outra faz uns três anos." o outro: "então larga de besteira." o um: "larga você." ninguém gosta que eu faça comentários nos finais dos posts mas eu preciso dizer que acho que é por isso que eles são amigos.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

aplicação

toda noite, antes de dormir, ou então quando eu me despedia do meu pai por qualquer motivo, ele dizia: "aplica", que era para eu dar um beijo. aplico, pai; em você, que não está mais aqui e em todo mundo que quiser e aparecer. sou muito aplicada em aplicar, pai.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

trinta

não gosto de balanços de final de ano. para mim, soam como aquelas pessoas que, quando encontramos depois de trinta anos e perguntamos: "oi, tudo bem?", a pessoa responde, vertiginosamente: "tudo bem, há quanto tempo! sou veterinário, casei, tive dois filhos. um é engenheiro mecânico e o outro é budista. mora em valladolid. separei, estou com uma clínica na vila olímpia. está tudo ótimo. e você?"

domingo, 12 de dezembro de 2010

tornado

na bienal há um vídeo de um homem que caminha peremptoriamente na direção de um tornado, e não contra ele, como todos. ele vai em sua direção até entrar dentro dele, com a câmera na mão. lá dentro, ele conta ter sentido paz e silêncio. o tornado é um bloco, uma coisa de ar maciça, um tigre de ar. que lindo ir na direção do monstro, morar dentro dele e sentir-se em paz. sei que a arte é sempre morrer de alguma forma e que sem essa morte não há vida possível.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

verdade

o empreiteiro que está conduzindo a reforma da minha casa chama ede varol. não tive coragem de perguntar para ele a origem do nome, mas, para mim, ele é superior àquele que supostamente o emprestou a ele ou, no caso, o andy warhol. a maior parte do tempo ele fica em silêncio. às vezes ele canta. hoje, ele e o pedreiro ficaram conversando: "a vida é dura mas é boa". "é, é dura mas é boa, é verdade".

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

ivana arruda

ela elogia muito, mas nunca à toa. se não gosta, fala. ela fala de si, mas não é vaidosa nem presunçosa. ela fala de coisas simples da vida dela, mas de um jeito tal que as deixa interessante para todo mundo. ela consegue fazer uma crítica literária com sabor, precisão e que deixa com muita vontade de ler o livro. se ela dá um conselho culinário, eu sigo. ela é corajosa, valente e sua alegria é conquistada, não fácil. a gente pode às vezes discordar dela, mas é uma pessoa de quem é bom discordar, porque nela é tudo tão verdadeiro, que discordar fica bom. eu não a vejo muito, mas eu a sinto como amiga. amiga fraterna.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

isso

uma coisa menos sábia do que o silêncio, menos plena do que uma sensação, menos verdadeira do que a própria coisa. era só isso o que eu queria. será que você poderia me dizer isso?

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

ritmo

a quantidade de coisas viola os ritmos, estabelecendo, em seu lugar, compensações, arranjos, consertos, arrumações, substituições, emendas, improvisos. a respiração também acompanha este rompimento e os ombros sobem, a garganta prende, os dentes atritam, as costas vergam. no final do ano, os dias não passam, mas empurram-se e o natal e o ano novo são dias que ficam lá desmaiados embaixo dos outros dias, só com um dedo para fora, que fica gritando esgoelado: preciso passar, preciso falar uma coisa! de repente, no meio de uma hora atropelada da tarde, um daqueles bichinhos de luz nos lembra que há ritmo ainda, e uma respiração funda e lenta me faz acompanhar uma coisa, por um minuto que seja, em seu tempo propício.

domingo, 5 de dezembro de 2010

receita

receita prática para ser eu: olhar o vidro de geleia para ver se sobrou alguma lá no fundo, mas fazê-lo apontando o vidro para baixo, exatamente sobre a calça do pijama recém-lavado, de forma tal que o único resto de geleia restante, que já está líquido por ser pouco, respingue matematicamente sobre a calça, sendo que a geleia deve naturalmente ser de framboesa, para que a mancha não saia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

leite

amor não é abstrato nem grande. é prático e pequeno. amor é quer um leite?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

dobras

rugas são dobras e dobrar não é reduzir algo a sua metade, como tendemos a pensar, mas duplicá-lo, com o mesmo sentido de duplo ou dobro. assim, venho descobrindo que minhas rugas são duplos de mim, são minha pele agregada de mais tempo e sabedoria. não vou perdendo anos à medida que envelheço, vou ganhando-os. quando tiver oitenta anos, portanto, estarei perto de uns cento e sessenta, dependendo da quantidade de dobras. como faço tudo para evitá-las, mas mesmo assim elas teimam e vêm, talvez com oitenta já tenha uns cento e quarenta e morrerei velhíssima e dobrada.