sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

dois mil e doze

aquele beija-flor que você acaba de ver, que já partiu, é todos os beija-flores. sabe aquele beija-flor que sobreviveu ao inverno e não voou junto com os outros e mesmo assim conseguiu resistir? então, esse que você vê agora é aquele. essa criatura rápida e magnífica é aquele mesmo, é aquele.
(baseado no conto o beija-flor que viveu durante o inverno, de william saroyan)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

vivian

existe alguma coisa no sentimento da amizade que é definitivamente melhor do que o amor. muitos já disseram isso. mas agora, neste momento em que sinto profundamente o amor fraterno por ela, que quero estar ao lado dela, abraçá-la e acolhê-la, me parece que só esse amor é que permite deixar. um amor que deixa, deixa tudo, em todos os sentidos - de permitir e de abandonar - só pode mesmo ser o melhor jeito de amar.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

rússia

por favor, leitores da rússia: me digam quem são vocês. digam harashó, ia znaiu, ia hatchu, otchen gariatchaia voda. me digam se aí em moscou chove ou faz frio, muito frio. se vocês gostam mesmo de borsht e se vocês querem vir aqui, para são paulo e experimentar a comida do mocotó ou aprender a falar estou com preguiça ou qualquer outra coisa que vocês queiram. me digam ia tibia liubliu e me expliquem por que maiakovski tinha visões tão absurdas do futuro que nós agora estamos vivendo. e também me digam se é mesmo verdade que os livros de poesia vendem quinhentos mil exemplares na rússia, porque, se for esse o caso, estamos eu e mais uma penca de amigos queridos, de mudança para aí. algum de vocês pode nos hospedar?

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

uva

queria porque queria levar a fanta uva, recém lançada, no pic nic da escola, que seria no jardim botânico. minha mãe disse que não dava. insisti, ela deixou e ainda abriu a garrafa, porque eu não teria abridor para isso. fiquei segurando a garrafa como se fosse uma estatueta durante todo o passeio. nem prestava atenção em nada-queria exibir a fanta uva. na hora do lanche, abri a lancheira e paf, derrubei a garrafa, que quebrou, deixando o líquido lilás escorrer pela grama.não chorei. tenho compaixão por aquela menina que era eu, mas também certo orgulho.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

mirra

melquior tinha setenta anos, cabelos e barbas brancas e vinha de ur, na caldeia. gaspar tinha vinte anos e vinha do mar cáspio. baltasar era mouro, barbudo e vinha do golfo pérsico. melquior carregava ouro, gaspar, incenso e baltasar, mirra. eles se encontraram às portas de jerusalem. todos eles eram astrônomos e seguiam o brilho de uma estrela nova. ao se avistarem, melquior perguntou a baltasar: o que você traz? baltasar respondeu que mirra. gaspar e melquior não sabiam o que era mirra. ao descobrirem que era uma árvore espinhosa, de folhas caducas, deram muita risada e acharam este presente melhor do que ouro e incenso. baltasar então disse: vocês querem trocar? não, eles disseram, não faz diferença!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

acaso

uma das maiores desvantagens da internet em relação aos meios físicos (livros, jornais), é a diminuição e possivelmente até a eliminação do acaso, essencial no trabalho de criação e de investigação. como a internet não é horizontal, exposta e como ela depende do usuário para que os resultados apareçam, dificilmente ela nos surpreende com algo inesperado, uma capa azul que lembra a parede da casa da avó ou uma lombada estranha manchada, que muda todo o rumo do que vínhamos fazendo. é preciso uma parcela de descontrole tanto no trabalho expressivo como no científico e para isso é preciso que algo caia na cabeça do criador: um volume, um documento, uma cópia de xerox mal encaixada.

sábado, 17 de dezembro de 2011

resistência

a resistência é o que define a matéria e o ser. o indivíduo que não resiste não se define, é amorfo, sem limites. mas às vezes,entregar-se como uma pena ao vento, para aqueles para quem a resistência se tornou um hábito e uma necessidade, pode ser a maneira mais radical de resistir.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

carochinha

o verbo "contar" se usa tanto para historias quanto para números e isso não só em português, como em hebraico, holandês, alemão e espanhol. a guematria é um ramo da cabala que atribui valor numérico às letras do alfabeto e assim calcula o montante de cada palavra da torá, a partir do qual interpreta seu significado oculto. no hebraico, portanto, fica mais ou menos esclarecida a relação entre números, letras e histórias. e mesmo que não se conheça por que o mesmo fenômeno ocorre em outras línguas, é bom imaginar que em cada número se encerra uma história; que contá-los é narrar o mundo e que a matemática é uma fábula em que acreditamos, sem pensar que é tudo uma grande mentira, como os contos de fada e as histórias da carochinha.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

postigo

quero um postigo para poder abrir a porta, mas só o necessário; quero ver sem ser vista, entrever as coisas, saber cada vez menos. quero cada vez mais postigos instalados nas portas. não por proteção, mas por delicadeza.

domingo, 11 de dezembro de 2011

vassoura

tanto estética quanto ideologicamente, não suporto generalizações. quanto à ideologia, acho temerárias palavras como povo, nunca e verdade. onde elas aparecem, costumam comparecer também o autoritarismo e o fanatismo. já em literatura, não posso ver palavras como amor, beleza e dor. prefiro de longe travesseiro, vassoura e alface.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

caetano

o gênio não é aquele que é mais ou melhor do que todos. todos temos um gênio, que é a vida que nos gera e que é gerada em nós. caetano veloso, em seu ultimo disco, recanto, cantado por gal costa, não é um gênio só porque tudo nesse disco é melhor, mas porque tudo nesse disco é a voz do acolhimento a essas pulsões geniais: a vida e a morte que nos habitam.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

tão

o que a testemunha não vê é tão horrível quanto o que ela vê. não ser testemunha é tão ou mais horrível do que sê-lo. não queremos sê-lo; precisamos sê-lo. precisamos querer.

domingo, 4 de dezembro de 2011

testemunha

o que a testemunha vê é tão horrível que ela não consegue contar; o que ela vê, quem ela vê, já não está mais aí para ajudá-la a contar e a lembrar. além do mais, ninguém vê nem viu o que viu a testemunha. ela está só. é daí que paul celan cria o verso: "ninguém/ dá testemunho/ sobre a testemunha".

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

mistério

em budapeste, eu entrava em todas as livrarias que via pela rua (e eram muitas) e perguntava: você tem algum livro sobre os mistérios da língua húngara? sempre achei que fosse senso comum que o húngaro é misterioso, já que ele praticamente não tem parentesco com nenhuma outra língua da europa, já que guimarães rosa dizia que quem fala húngaro tem pacto com o demônio e já que ela é praticamente toda proparoxítona. mas ninguém sabia nada de mistério nenhum e os mais enérgicos se ofendiam e diziam que não, que a língua húngara não tem nada de mistério e que é claro que ela tem parentesco muito próximos: com o finlandês e com o lapão.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

fanfarra

gustav mahler contou a sigmund freud que uma vez, na adolescência, ficou muito perturbado ao testemunhar uma briga violenta entre seus pais e saiu de casa chorando e batendo a porta dramaticamente. assim que pisou na rua, uma fanfarra passava tocando uma marcha militar. para ele, esse contraste entre a tragédia interna e a indiferença cotidiana foi fatal. não conseguia mais compor nada dramático sem que houvesse a interferência indesejada do popular, do baixo. a fanfarra seguia normalmente, ignorante dos problemas daquele eu em desasossego e foi isso, talvez, o que lhe permitiu criar o que agora os críticos consideram como uma mistura única do alto e do baixo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

natalie

na terceira volta que eu dava no parque, a natalie começou a me seguir. o pai a tinha desafiado a me acompanhar. ela tem onze anos, cabelo até a cintura, é a primeira aluna da escola e quer ser advogada. o pai é vigilante noturno e a mãe sumiu, porque bebe, fica violenta e desaparece. o pai chega em casa às oito da manhã, dorme até o meio dia e cozinha. ela arruma a casa e cuida dos cachorros. perguntei se ela queria ir comigo nos aparelhos de ginástica do parque. disse que não podia porque o pai sentia dor nas pernas e ela precisava fazer massagem. daqui a pouco ela aparece nos aparelhos; o pai deixou. conversamos sobre música, livros e família. ela faz penteados como os de uma noiva, ela disse. dentro em pouco subiu nos aparelhos também a natasha, sua prima. éramos natalie, noemi e natasha pedalando.

sábado, 26 de novembro de 2011

urgência

instante vem de instar, de urgência, de algo que urge acontecer.é na urgência, na necessidade da ocorrência que se define essa extensão infinitamente breve do tempo: aquela que sempre passa e por isso sempre já passou, mas a única em que as coisas realmente ocorrem. o tempo urge, essa expressão aparentemente nefasta, na verdade pode ser muito mais bela. é, no fundo, o mesmo que carpe diem. agarre urgentemente o tempo e transforme-o finalmente no que ele é: um instante.

domingo, 20 de novembro de 2011

espiriteira

alguma coisa na distinção tão nítida entre a paixão e o amor não me convence. parece tão claro que a paixão é fogo, que ao consumir o objeto também se auto-consome e que o amor é ar, água ou terra, meios menos agressivos, mais duradouros, mas também por isso mais exigentes do seu objeto, já que ele é obrigado a interagir com eles, tornando-se assim também sujeito. a ideia grega da paixão como doença e passividade, que rouba a razão à criatura e o transforma em objeto dos sentidos já pode ser ultrapassada, assim como já foram várias outras. por que a paixão ainda precisa ser isso, se já não há mais o tabu da fidelidade eterna e da exclusividade? por que não começarmos a reeducar alguma coisa em nós para que a ideia de paixão possa se misturar com a ideia de amor (afinal, é tudo ideia) e para que os amantes possam seguir apaixonados e o fogo possa ser dosado, como numa espiriteira?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

coragem

ele segurou no meu braço, antes mesmo de dizer oi e disse: minha mãe morreu. todo o carinho que tenho por ele se fixou na minha pele pelo resto da noite. não conseguia mais olhá-lo, porque se olhasse o abraçaria e diria que nenhuma frase tinha sido mais importante do que esta. mas não tive coragem.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

beça

coisas que adoro falar: essa rua "cai" na marginal; deu no que deu; vai de "fasta"; virabrequim; é nós; ele "pegou" pesado; à beça; falou e disse; fala aí; tá pensando o quê?; sou mais eu; cê vai se ver; sei lá; lá vou eu; que quer dizer?; biruta; sim; que hora é essa?; agorinha mesmo; os cara é tudo mentiroso; vale nada não; faz isso não; tô de mal e tô de bem; faz de assim; tá tirando uma; ó; vai ter troco; tô te falando; é só um pulo; pau na máquina; que preguiça; vai se catar; tô louco pra saber; nossa!; ah, vai!; jura?; cê tá sonhando que eu vou fazer isso!

domingo, 13 de novembro de 2011

bárbaro

o romance "esperando os bárbaros", de coetzee, é como um romance de kafka menos concentrado, menos absurdo e, até por isso, ainda mais absurdo. nele, vai-se percebendo que os bárbaros, mais do que o outro, são o mesmo. o bárbaro é aquele que teme a quem nomeia bárbaro; é, mais do que tudo, o temeroso; aquele que em tudo enxerga o temerário. o maior outro de todos é a morte e é ela que se teme no outro. mas ela vem de qualquer forma e de onde menos se espera e temê-la no outro é antecipá-la, é viver a morte antes que ela venha. o temor do bárbaro mata e morre.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

fflch

eu adoro a fflch. e não é só porque adoro quem tem a braveza e a bravura de estudar letras, história, geografia, ciências sociais e filosofia. não só porque adoro pessoas menos adaptadas ao rebanho. não é porque adoro cabeludos, maluquinhos e melancólicos/engraçados em geral (já que na fflch há muito mais do que isso). não é também porque gosto de quem sonha acordado. é porque a fflch, com tudo e apesar de tudo, é boa. produziu e produz dentre os melhores pensadores e pensamentos do país. ajudou e ajuda a mudar muita coisa ruim que acontece no brasil, nas áreas da cultura, da educação, da arte e da política. porque seus estudiosos ajudaram a repensar o racismo e os preconceitos do país. porque seus professores de literatura estão entre os melhores que já tive e que minha filha poderá ter tido. porque lá se discute, se discorda e se vive. porque, se ela é decadente, como disse um apresentador conhecido da televisão, ela não é fedidíssima. e se ela é decadente, não é porque lá há maconheiros. mas porque os poderes ainda não perceberam que só a cultura e o pensamento é que podem mudar o brasil.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ato

esperar vem de olhar profundamente. quem espera olha tão fundo no futuro, que antecipa os acontecimentos. o esperador, na origem, é assim um visionário. que diferença do esperador atual, nas filas, nos e-mails, nos crediários, que espera, espera e nada antecipa. a condição da inação na atualidade é a espera. e pensar que ela já foi a propiciadora do ato.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

diferença

de como os sobrenomes estão entre as maiores diferenças entre a burocracia e a vida: aguiar é que habita as águas; barbosa é um lugar onde há muitas árvores com barba de bode; carvalho é uma árvore; castanheiro também, pereira e amoreira também; delfim é um peixe; eustáquio é carregado de espigas; fagundes é alegre; garcia é gracioso;haus é casa; inácio é ardente; jasper é tesouro; koch é cabeça; lima é uma fruta; macedo é importante; nunes é um peixe; oliveira é uma árvore; prestes é disponível;quintana é casa de campo; rodrigues é famoso pela glória; sauer é mulher paciente; teixeira é um fio de luz; uchoa é lobo; ventura é sorte; weiss é sabedoria; xavier é formosa; zuquim é abobrinha.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

nada

originalmente, pena é o mesmo que punição. quem merecesse pagava uma pena, ou um preço que corresponderia à punição pela falta cometida. as coisas que valem a pena, dessa forma, valem a punição que elas implicaram. se pensarmos bem, portanto, só vale a pena na vida o que não vale pena alguma, pois aquilo que implica em pena não vale nada.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

a

ele é a pessoa, porque ele não é "a" pessoa. ele não sabe tanto. ele fala a língua dele. ele está à minha frente. está atrás de mim. ele faz piadas bobas. ele pensa muito nos passarinhos.

sábado, 29 de outubro de 2011

girico

trata-se, todos vejam, de um problema científico. não sei exatamente como é que classifico. mas logo mais, sem delongas, pronto me justifico. aos curiosos, nervosos, brevemente eu me explico. se me ajudarem, de bom grado, a todos eu gratifico. assim que se apacientarem, eu rápido exemplifico. mas não suporto ignorar um problema ortográfico. peço a cegalla e bechara seu certo diagnóstico. e a eles, aos gramáticos, estas linhas eu dedico. e sempre, por toda a vida,a eles eu dignifico. mas alguém pode me dizer, por favor, eu amplifico. é com g ou é com j, a ideia de girico?

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

mundo

é ridículo dizer que ulisses é melhor do que a divina comédia, do que shakespeare, do que homero, porque ulisses é tão bom, que seria um insulto, a ele e às outras obras, lê-lo com vistas a comparações ou competições. mas acontece que é difícil, para poder descrever a sensação, não recorrer a este expediente bobo. ulisses é a melhor coisa do mundo e pronto.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

domingo, 23 de outubro de 2011

iugoslávia

meus pais nasceram na antiga iugoslávia. como eu gostava de ser descendente de iugoslavos e como dói não poder mais dizer isso e, a cada vez que digo este nome, precisar ouvir a pergunta inevitável: mas de qual região? como se, para o ouvinte, isso fizesse alguma diferença. iugoslávia, iugoslávia, onde você está? nem na sérvia, nem na croácia, nem na eslovênia, nem na macedônia. iugoslávia da dalmácia, de dubrovnik, de herzegovina, voivodina e do mar adriático. iugoslávia onde meu pai viu uma mulher fatiar um pão e um frango com a mão, dentro de um trem. não briguem mais, iugoslavos, me deixem dizer que sou iugoslava.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

celta

em junho de mil novecentos e noventa e oito, estava em londres e queria ver alguma apresentação de música celta. era o dia do jogo entre o brasil e a frança. descobrimos um pub num bairro operário afastado, no subúrbio, e fomos ver os mac namara brothers, num fim de tarde chuvoso e ermo. chegando lá, num bar decadente e meio mal assombrado, havia umas oito pessoas e ninguém conseguia acreditar que dois brasileiros tinham ido até lá para ouvir música celta, no dia do jogo do brasil. sentimos muito, disseram, mas não vamos tocar hoje. não podemos perder esse jogo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

mendiga

na porta da estacionamento do supermercado, uma mendiga toda enrolada em cobertores velhos, deitada sobre metade de um colchão rasgado e cercada de caixotes e sacolas por todos os lados, fazia avidamente um caça-palavras.

domingo, 16 de outubro de 2011

sábado, 15 de outubro de 2011

querer

comecei a dar aulas sem querer, há trinta e dois anos, porque falava inglês razoavelmente e tinha um bom sotaque. hoje não dou mais aulas sem querer, faço porque quero. mas aprendi que alguma coisa neste ofício absurdo - teatral, gratificante, errático, mal remunerado e utópico - precisa ser sem querer. assim, quando você vê, nem sabe como, está lá, ensinando.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

mexerica

descobri que a maior demonstração de integração entre o homem e a natureza é a mexerica. coberta por uma pele que a protege perfeitamente, mas que é facilmente removível por dedos humanos, provocando o prazer do descasque; acondicionada em gomos simétricos e de dimensões nem muito grandes nem muito pequenas e de muito fácil separação; fundindo o sabor refrescante do amargo ao sabor infantil do doce e apresentando-se em diversas variações de cor, formato, textura e paladar, a mexerica evoluiu, ao longo de milhares de anos, exclusivamente para servir ao gozo e à inteligência humanas. além de ter esse nome, mexerica, que é quase tão lindo e bom como ela.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

tão

quando não for mais tão tarde, tão rápido, tão tanto, então haverá uma curva no ar e a respiração demorará mais tempo para perfazer seu ciclo.

sábado, 8 de outubro de 2011

biblioteca

sugestão para uma organização de biblioteca: livros que começam com o artigo definido, "o" e "a" e que, por isso, são difíceis de classificar em ordem alfabética; livros cujos personagens parecem inteligentes e auto-irônicos, mas que no fundo são só chatos; livros que seria melhor nunca ter lido; livros que você sabe que são muito interessantes mas que nem por isso vai dispender o tempo necessário para lê-los (como a ascensão e a queda de algum império antigo); livros de nacionalidades malucas, como gana e uzbequistão, países cuja única oportunidade de figurarem juntos é nesta biblioteca; livros que se sentem sozinhos e que por isso é melhor colocá-los juntos para eles ficarem mais felizes.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

aquilo

para acontecer algo que a gente quer muito que aconteça, o ideal é não querer que aquilo aconteça. daí acontece. mas como fazer para não querer? é preciso querer muito não querer e daí também não funciona. e também não funciona se você só não quer para que aquilo aconteça. é preciso deixar de querer. só. sem motivo. aliás, não é preciso. só é.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

documentos

pouca gente sabe, mas os documentos, na verdade, são diabos. toda as noites eles se reúnem e elegem quem serão os incautos à custa dos quais eles irão se divertir no dia seguinte. mal amanhece e um desses desafortunados recebe: três multas, sendo uma de quinhentos e cinquenta reais; uma intimação da receita federal para comparecer no centro da cidade onde mora, no dia seguinte, para recuperar um problema que o idiota tenta resolver há quatro anos, sem sucesso e uma notícia de que a entrevista finalmente conseguida para o visto de entrada nos estados unidos da américa foi mal agendada e a foto não foi aceita por problemas de iluminação. daí os diabos-documentos riem muito, mas muito mesmo e o incauto baixa a cabeça e chora.

sábado, 1 de outubro de 2011

certeza

quanto mais amadureço, mais percebo que um dos maiores problemas da juventude (e ela tem tão poucos) são as certezas. como é bom perdê-las e ver que tão poucas coisas são tão sérias, tão verdadeiras ou tão certas quanto pensávamos. uma grande certeza nunca vale tanto quanto uma dúvida, mesmo que pequena.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

ator

ontem, em algum episódio perdido do seriado law and order svu, que eu gosto de assistir, tinha um advogado, que defendia o réu, acusado de estupro. ele era gordo, com cara de idiota e meio sujo, o paletó velho e a cara abatida. fiquei pensando nesse ator. deve ser um nova iorquino frustrado que, ao ser chamado para atuar no seriado, viu sua chance de voltar à cena teatral, de onde ele foi subtraído há muito tempo. vive num apartamento caindo aos pedaços que herdou da avó, no brooklin. é judeu e as únicas pessoas que o convidam para fazer algum trabalho no teatro são os membros de um clube judaico de velhinhos,sobreviventes de guerra. ele vai, de má vontade, mas resignado. quando acaba sua participação no episódio de law and order, depois de vários afagos dos colegas e até dos atores principais, ele volta ao seu apartamento do brooklin e percebe que nada mudou.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

si

escrever não é dar de si. é agarrar o fora. escrever é de fora, para fora,e por isso pode ser tão bom. de mim já basta eu.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

garimpo

hoje, enquanto esperava o sinal abrir, vi dois pedreiros fabricando aquele tipo de cimento pipocado que se vê em alguns muros da cidade. um deles segurava uma grande peneira na vertical, enquanto o outro catava o cimento de um carrinho e aplicava numa pá, para então salpicá-lo através da peneira, por onde ele passava para se alojar pipocado na parede do muro. e assim eles iam, um segurando a peneira e o outro salpicando, até completar o muro inteiro, que era enorme. um dos pedreiros olhou para mim. ele tinha um brinquinho em cada orelha. eles continuaram trabalhando e fizeram alguma piada, porque ambos riram. era um tipo de garimpagem vertical, em que o ouro não era colhido, mas produzido no momento em que atravessava a peneira. eu quis, um pouco, naquela hora, estar lá.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

poema

ninguém, mas ninguém mesmo, conta sonhos como o paulo neves, do blog nolimiar. mas como ele tem contado alguns, me inspirei a contar o que tive esta noite. no sonho, eu lia um poema, mais ou menos assim: oito/ oito/ .../.../.../rua, casa, poste, capim. eu lia e dizia que era um poema sonoro e que era muito difícil lê-lo. alguém se sentou na cadeira em que eu antes estava sentada e disse: esse poema é ridículo e não é sonoro, é mental. retruquei, sentei naquela mesma cadeira e comecei a argumentar, com demonstrações, como o poema era sim sonoro e visual. que as reticências imitavam a palavra oito, que era impossível oralizar as reticências e que o último verso era todo feito de justaposições, sem a presença de um verbo e que isso o tornava muito visual, praticamente cubista. todos riram de mim, eu escorreguei da cadeira e fui deslizando pelo chão, até bater contra a parede. ainda esmagada contra a parede, eu gritava: o poema é sonoro, sim. não é racional! ninguém me entendia, mas não cedi e, mesmo envergonhada e humilhada, mantive minha opinião.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

inverno

toda vez que acontecia alguma coisa ruim, meu pai suspirava e cochichava: "shnatse ha winter", que, segundo ele, era um verso de algum poema e queria dizer: está começando o inverno. mas melhor era o jeito como ele entoava as palavras, como se estivesse cantando ou até vendendo uma mercadoria na feira: "shnaaatse ha wííínter" e tudo bem baixinho. eu olhava assustada. o inverno ia mesmo começar.

sábado, 17 de setembro de 2011

paz

não fui pianista. não fui bailarina. não sei desenhar nem costurar. não falo húngaro. não vou ter uma passagem livre para todos os países a qualquer hora. não contribuí para a paz mundial.não não sou nada. não nunca serei nada. não tive nem tenho todos os sonhos do mundo. agora, agorinha mesmo, o que eu tenho é um pouco de dor de dente e a barra da calça desfiada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

urso


de acordo com o dicionário etimológico, teóricos eram os espectadores dos torneios de esportes gregos. em perspectiva sincrônica da etimologia,acabo de criar o urso teórico,numa flagrante observação de seus colegas de raça em contenda singular.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

fato

às vezes acontecem coisas muito ruins e não há nada a aprender com elas e nem forma de vê-las por seu lado bom. às vezes não há lado bom. paciência, então, que é um tipo de resistência muda e que se estende no tempo. no tempo, essa extensão inexistente cuja presença desafia e cura nosso desejo de mudar os fatos.

sábado, 10 de setembro de 2011

sábado

hoje é sábado. e nas tardes de todos os sábados de todas as semanas de todos os meses dormem um curió e um hipopótamo, acocorando-se sonolentos no mesmo espaço vespertino. de vez em quando, o curió, se espreguiçando, raspa o bico na pele grossa do ventre do hipopótamo. o hipopótamo não percebe. sua pele é muito grossa e para que a bicada o atingisse seriam necessários muitos minutos.outras vezes, o próprio hipopótamo solta um bafo horrendo no meio de um bocejo e o curió acorda, assustado. dá uma espiada na bocarra do companheiro, solta um suspiro e adormece outra vez. hoje é sábado, ele pensa, e não estamos para confusão.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

nariz

o david e eu descobrimos que minha mãe poderia ser uma analista de bagé ao contrário, cujos pacientes rapidamente se sentiriam curados por excesso de delicadeza. ontem ela me ligou para contar que estava muito gripada. perguntei: mãe, você está bem? ela respondeu: estou sim. pelo menos não tenho dois narizes.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

cinismo

ultimamente, tenho ficado extremamente irritada com um cinismo cada vez mais assumido e popular de uma nova direita. é um discurso que se orgulha de desprezar todos os relativismos como levianos,passíveis de manipulações totalitárias e distantes de qualquer noção inegociável como a dignidade, a civilidade e valores éticos estabelecidos. na verdade, ocorre justamente o contrário. só se pode mesmo relativizar as coisas, quando se tem certeza da irredutibilidade de algumas delas. só assim é possível duvidar.

domingo, 4 de setembro de 2011

auspícios

pense bem: existe palavra mais esquisita do que dirimir? por exemplo: você dirimiu a dúvida? e dirimir serve para mais alguma coisa além de dúvida? por exemplo: você dirimiu a equação, dirimiu a conta, dirimiu a dívida? e dirimir dá para ser conjugado de alguma outra forma que não no pretérito perfeito? dá para dizer, por exemplo, eu dirimo dúvidas todos os dias? tchau, estou indo dirimir uma dúvida? e sob os auspícios? será que sob os auspícios é mais ou menos esquisito do que dirimir?

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

mistério

quase sempre penso que o maior mistério que há é o fato de não haver mistério algum e as coisas serem somente o que são, sem nada além disso, o que já é bastante para nós, que não conseguimos sabê-las nem muito menos dizê-las. mas outras vezes, como agora, uma aba sobressalente de algum mistério outro parece sobrar para fora das coisas e eu espio e penso: tem alguém, alguma coisa aí?

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

escrita

às vezes acho que sócrates tinha razão, ao condenar a escrita. guardar ideias é bom, porque a memória não é capaz de lembrar de tudo o que nos vai pela cabeça e porque podemos utilizá-las em ocasiões e experiências inesperadas. mas, também, como é bom esquecê-las. permitir que elas se transformem sozinhas em outras coisas sobre as quais não temos nenhum controle, não deixá-las ali paradas em cadernos ou folhas de papel ou então simplesmente nunca mais lembrar delas, ignorá-las, até que um dia, desavisadamente, elas reapareçam e nós então digamos: puxa, já tive essa ideia antes. por onde será que ela andou? por que reapareceu agora?

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

infinito

qual é a diferença entre infinitude e infinidade? a infinitude se refere à extensão e a infinidade, à quantidade. pode-se querer viver a infinitude do momento por uma infinidade de anos. como o infinito, que é inconcebível, se deixou flexionar tão categoricamente pela gramática, a ponto de se dividir em extensão e quantidade? a gramática é mesmo isso: uma ordenadora do infinito.

sábado, 27 de agosto de 2011

taxa

as operadoras de telefone móvel inventaram o termo portabilidade. eu inventei a insuportabilidade, que é a taxa variável que algumas pessoas têm de tornar todos os encontros insuportáveis.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

monge


maurice blanchot diz que há momentos em que não enxergamos porque podemos ver, mas porque não podemos não ver. nesses casos, a imagem tem uma presença tão forte que é como se ela criasse nosso sentido de visão, que, mais do que vê-la mecanicamente, a enxerga como um chamado, uma necessidade. ver, nestes casos, vem mais da coisa do que dos olhos. com o monge, de kaspar david friedrich, é assim.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

motivo

estou lendo um ensaio em que david grossman procura explicar por que escreve. dentre muitos outros motivos, diz que um o convence mais do que todos: o desejo de ser gisella, uma de suas personagens. argumenta que o que mais o seduz é o desejo de ser o outro. fiquei pensando nisso e acho que o que mais me importa, ao escrever, é saber coisas que eu mesma sei e que não sabia que sabia. quando escrevo, sou muito melhor do que sou. descubro e digo coisas que jamais seria capaz de dizer falando. quase nunca sei o que vou escrever quando sento para fazê-lo. na verdade, escrevo para saber o que vou escrever.

domingo, 21 de agosto de 2011

alegria

na adolescência, fazia parte de um grupo chamado "cinquenta cáries numa boca só". no colegial, criei uma revista chamada "bom apetite", cujo símbolo era uma grande boca aberta, pronta para devorar. o fundo de tela do computador do david é uma boca enorme, do escher. estou agora lendo textos teóricos sobre antropofagia oswaldiana e vou concluindo que, em sua utopia anti-messiânica, sem redenção final,a devoração seria a entrega de cada um ao outro e o desejo de consumir-se consumindo. um egoísmo generoso, uma generosidade egoísta. os nove afinal provados pela alegria.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

melancolia

não reconheço, na atitude final de justine, no filme melancolia, uma atitude melancólica. o melancólico não acha que sabe as coisas, que conhece antecipadamente o que vai acontecer, não se satisfaz nem se alivia com o que pensa que sabe. sua cumplicidade com o final do planeta, a pacificação de sua dor pela certeza da fatalidade do acaso são muito mais maníacas do que depressivas ou propriamente melancólicas. não gosto da forma como ela trata a irmã com superioridade e desdém.o melancólico carrega saturno dentro de si e essa objetivação do planeta melancolia, esse planeta tão externo que aparece no filme tem um lado alegórico que não me convence.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

amiga

olho nos olhos de uma amiga e vejo que, para ela, o tempo passou e passa com serenidade, apesar das turbulências. sei que essa serenidade vem também do fato de ela estar olhando e vendo, nos meus olhos, a mesma coisa. nesse encontro em que me vejo dentro da película transparente dos seus olhos e ela dentro da minha, fica uma das melhores experiências da idade mais do que adulta: uma amiga.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

parênteses

quem foi que disse?
leitura de textos meus e de joão bandeira, na casa do saber. quarta, dia vinte e quatro de agosto, às vinte horas, seguida de conversa. rua mário ferraz, quatrocentos e quatorze.telefone: três sete zero sete, oito nove zero zero. espero vocês.

domingo, 14 de agosto de 2011

oitocentos

um prato de nhoque recheado com ossobuco custa, no fasano, cento e dois reais, ou algo próximo disso; e vem só com dez nhoques. hoje fiz o mesmo prato. descontando minha inépcia - apesar de ter ficado bem gostoso - o serviço, os talheres, o ambiente e mais algumas coisas, fiz cerca de oitocentos reais de nhoque.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

vez

a melhor forma de saber mais é sabendo menos e, para saber menos, é preciso saber cada vez mais.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

alma

eu: o pronome pessoal do caso reto; a integralidade do emissor que percebe o mundo, expressando-se diretivamente, sem mediações. te: o pronome oblíquo na segunda pessoa; a relatividade do outro, o outro visto transitivamente como receptor do eu inteiro; a entrega. amo: a pessoalidade primeira e a temporalidade presente de uma ação que é mais que ação; é ação em forma de estado e reação; é a imersão da alma no corpo. como dizer isso impunemente?

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

orgulho

na origem, a palavra orgulho significa excelência. atualmente, associam-se a este conceito as noções de honra e valor. o motivo para que excelência derivasse para honra só pode estar no fato de que o praticante da excelência se sente honrado pelo resultado de sua ação. trocou-se, assim, o procedimento e a potência pelo resultado. o dia do orgulho heterossexual seria, desta forma, o dia em que os indivíduos se sentem honrados por terem, supostamente, feito de forma excelente uma escolha sexual. se eles são excelentes heterrosexuais, por que precisam orgulhar-se disso? por que sentirem a honra de serem o que, segundo dizem, já são? isto deve querer dizer que precisam de reconhecimento, pois têm temor de falhar, ou ainda, por terem superado alguma outra dificuldade. todo aquele que se orgulha de um resultado, sabe que poderia ter fracassado e por isso se orgulha. ou seja, todo heterossexual orgulhoso de seu feito, teme não ser heterrosexual e, por isso, precisa orgulhar-se.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

fator

a moça do rádio disse que um ministro falou: "isto se deve ao aumento dos impostos e diversos outros fatores". sempre fico pensando no significado de "diversos outros fatores", "etc. e tal", "muitas outras variáveis", especialmente em discursos oficiais, científicos e políticos. é a capa retórica para dizer: "não sei qual, mas deve haver mais algum motivo".

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

presença

por algum tempo (pouco que seja) estar longe de si, ausente de si, sem saber qual é o sentido de se ter o nome que se tem, o tamanho, o peso, o volume. ser uma presença sem ideias e passar.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

irmã

moishe schick, iugoslavo, imigrou para israel em mil novecentos e quarenta e nove. foi morar em um kibutz, onde trabalhava como eletricista. lá, ele teve cinco filhos, com uma mulher tcheca que conheceu num campo de refugiados. em mil novecentos e oitenta e três, morreu de câncer no pulmão. hoje, depois de uma busca entre obsessiva e mágica, falei com sua filha mais nova, shlomit, que ainda mora no kibutz e é psicóloga. contei a ela que seu pai foi namorado de minha mãe, antes da captura pelos alemães, em mil novecentos e quarenta e quatro. ela disse que poderia ter sido filha da minha mãe e eu, que poderia ter sido filha do seu pai.de certa forma, nós somos.

sábado, 30 de julho de 2011

maysa

nós duas nos reencontramos, depois de algum tempo sem nos vermos, e ficamos a conversa inteira a ponto de chorar. não que houvesse motivo. era porque o tempo se arredondava de tal forma, que o passado mergulhava no círculo e quando ele saía de lá, já era o presente, que então mergulhava de novo e voltava a ser passado. o que dizíamos era compreendido antes de terminarmos a fala; o que não dissemos também se ouviu e se aceitou. os livros que lemos em comum e também os que não lemos ficaram nos esperando para entrarem na conversa. esperem, nós dissemos, a vez de vocês virá. ela é minha amiga e eu sou amiga dela.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

carro

o joão e eu temos carros iguais. ele disse que pegaria o meu carro para sair, mas não pegou. quando fui sair, entrei no meu próprio carro, achando que era o dele. fiquei dirigindo e pensando: o carro dele é realmente mais macio do que o meu; e está bem mais limpo também; pena que não tem som (o meu tem e o som estava lá); as marchas deslizam com muito mais facilidade e o motor não faz barulho.

terça-feira, 26 de julho de 2011

sujeito

até o século treze, sujeito queria dizer súdito, subordinado, aquele que se submete. dali em diante, passou a significar pessoa indeterminada. é certamente daí que deriva o nosso sujeito, agora não mais como súdito, mas justamente o oposto, como aquele que é dono de si mesmo. mas não espanta e, ao contrário, me agrada, que, na ideia original de autonomia do sujeito, haja também a ideia de submissão.para ser autônomo é preciso saber servir, ou melhor, a autonomia não tem graça quando ela exclui servir. como é bom colocar-se à disposição, fazer para alguém e, de vez em quando, até desaparecer para que o outro apareça.

sábado, 23 de julho de 2011

exceção

não suporto o argumento, tão comum e aparentemente convincente, de que se uma exceção for aberta a uma situação, então ela terá que ser aberta a todos. não é absolutamente assim. exceção é exceção. quando ela se abre a alguém, ela é particular. um precedente não autoriza a universalização da exceção. o legal de estar com as pessoas é tratá-las individualmente e considerar cada circunstância como única e não como uma possibilidade de que outros também tentem aproveitar.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

turismo

um roteiro de são paulo para turistas tortos: rua três rios, no bom retiro, onde tem uma doceira sérvia com strudel de papoula e de nozes; rua correia de melo, no bom retiro, onde tem o restaurante shoshana e se come shivapsheshe, com carne moída bovina e suína misturada;rua afonso pena, no bom retiro, onde tinha um prédio com mural do aldemir martins, que por isso era considerado o prédio mais chique do bairro; rua guarani, no bom retiro, onde tem a mercearia menorá, que tem pão preto como fazia o seu jaime; o largo do arouche, porque é bonito e o parque da previdência, porque é pequeno, lindo, silencioso e fica perto da minha casa.

terça-feira, 19 de julho de 2011

ideograma

a escrita fonográfica franqueia a compreensão a todos, de forma fácil e razoavelmente intacta, em todas as épocas e gerações. tudo bem. a escrita ideogramática é mesmo mais elitista e complicada. mas como não invejar um alfabeto em que a palavra "não" é um ideograma de uma planta cortada na base e a palavra "sim" é o ideograma de ser?



domingo, 17 de julho de 2011

frustração

um dos índices mais significativos de como cada um é inapelavelmente solitário é a tentativa sempre frustrante de contar um sonho - bom ou ruim - a alguém, mesmo que seja alguém bem próximo. durante o sonho, vive-se com máxima intensidade e frescor cada cena, cada sensação, especialmente quando se trata de um pesadelo, quando o horror parece interminável, completo. acorda-se e agarra-se a tentativa de contar. nesse instante, parece que contar será tão certo e poderoso quanto o sonho. e aí, a revelação: as palavras não alcançam nem uma fração do que se viveu e o outro diz, no máximo: nossa, que coisa!

quinta-feira, 14 de julho de 2011

babel

não entender o que se fala pelas ruas, não ser conhecido por ninguém, não saber onde ficam os lugares, não conhecer os costumes locais e comportar-se de forma desajeitada: essa é a bênção de babel e abençoada seja a ambição humana por essa punição libertadora.

terça-feira, 12 de julho de 2011

londres

londres: a cada seis minutos passa um ônibus para trafalgar square, mas só às terças, entre as doze e as doze e quarenta e quatro. depois desse horário, até às dezesseis e treze, passa um a cada quatro minutos. para se sentir nervoso, só aos sábados, entre as quinze e as quinze e dezessete, e só por nove minutos. a cada três minutos passa alguém chateado, entre as ruas brick e st. george. se quiser dar um grito, pode; mas só em altura moderada, em leicester square, no primeiro domingo de um setembro nublado e só às sete e doze. para outras informações, ligue para o serviço de atendimento, que só funciona hoje, entre agora e daqui a dois minutos, mas só às segundas no primeiro horário da manhã, se houver mais de sete nuvens no céu.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

consumo

consumir: mercadorias, lugares, obras de arte, é manter-se como centro da circulação das coisas e do tempo no mundo. a cada sensação de consumo realizado, é como se as coisas, o objeto consumido, mesmo que seja uma paisagem, tivesse sido feito exclusivamente para o eu. o tempo passou e tudo aconteceu para redundar no corolário final: o eu. depois que o eu consome aquilo, tudo bem, aquilo já pode deixar de existir. pode desaparecer, se quiser.

terça-feira, 5 de julho de 2011

ferida

numa entrevista, anish kapoor diz que existem basicamente dois tipos de artistas: os que mostram a ferida e os que buscam curá-la de alguma forma. de qualquer maneira, os dois concordam que a ferida existe.nada melhor do que isso para responder aos críticos de uma arte que, para muitos, é ingenuamente otimista. não é otimismo. é só uma constatação. está doendo; se soprar, alivia um pouco.

sábado, 2 de julho de 2011

ideia

ideia meia boca de nome para uma exposição sobre tudo o que aconteceu desde o final do século dezenove até hoje: de gogol a google.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

televisão

quando eu era pequena, montei uma televisão de papelão no meu quarto, pintei, decorei, fiz um buraco no lugar da tela e ficava do lado de trás, porque eu era a âncora de uma programação em tudo idêntica à da tv globo, só que um segundo depois. punha a televisão de verdade na minha frente e ficava horas repetindo tudinho o que eles falavam. notícias, novelas, propagandas, tudo. claro que o preço das cotas de publicidade na minha tv eram mais baratos.

sábado, 25 de junho de 2011

felicidade

ser ou não ser um gato? o gato é feliz mas não sabe que é feliz, o que, em minha opinião, é a condição para ser feliz. por outro lado, quem sabe que é feliz, não pode ser feliz, porque saber-se feliz é a primeira condição para ser infeliz. além disso, a experiência mostra que a ignorância de si é o melhor caminho para a felicidade, mas, por outro lado, o auto-conhecimento leva, segundo sócrates (mesmo que seja ao preço de saber que nada se sabe) a uma felicidade mais profunda e complexa. ou ainda, os gatos são felizes porque não sabem que o são ou são felizes porque nem são felizes, já que nem esse desejo existe nos gatos e não querer ser feliz é a única forma de ser feliz?

quarta-feira, 22 de junho de 2011

espelho

freud, sem querer, viu seu reflexo no espelho de um trem. como não esperava por aquilo, assustou-se pensando que via um velho feio e mau-humorado e mais ainda ao reconhecer que aquela imagem era a sua. a explosão de espelhos no dia a dia nos faz perder esse susto e nos habitua a uma imagem conhecida de nós mesmos. mas, de vez em quando, ainda olho espantada para dentro de um elevador e pergunto: quem é essa pessoa tão enrugada e meio esquisita? odeio os espelhos dos elevadores. por que espelhos no elevador? por que tanta luz, meu deus?

domingo, 19 de junho de 2011

coincidência

sempre me perguntam como é possível saber quando um livro é bom. respondo que boa é a literatura que consegue criar uma coincidência única entre o que se diz e a forma como se diz o que está sendo dito. mas também, acho que boa é a literatura que contém algum tipo de risco. algo está sendo posto em cheque: a linguagem, o leitor, a existência, o que já se conhece. alguma coisa vai se perder - iminência de vazio ou de morte - e/ou alguma coisa vai se criar - iminência de nascimento. a literatura que não mora na iminência não tem me interessado muito mais.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

esquecimento

tenho pensado que aquilo que se esquece é mais verdadeiro do que o que se lembra. o que se lembra é carregado de versões, conveniências, fantasia, necessidade, deslocamento e montagem. não que por isso seja menos legítimo; mas é o que a memória pode e, ao mesmo tempo, precisa. já o esquecido, não. não há como acrescentar nada ao que se esquece. o esquecido é tão verdadeiro, que precisa ser riscado a corte seco e rente. a verdade parece estar mais no vazio, num oco que eventualmente pode ser preenchido. mas a lembrança que possivelmente o preencherá já será uma verdade na justa medida do que a memória pode e quer. a verdade e a mentira são cabimentos do belo e da dor.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

imanência

mesmo conhecendo-a desde que nasci, mesmo sabendo que ela é a pessoa no mundo que mais me conhece, sempre sinto que não a conheço o bastante e que nunca vou chegar a conhecê-la. seja porque ela esconde o que pensa, porque pensa muito diferente de mim, ou mesmo, o que é o mais provável, porque quase não pensa. ela não pensa em ser ou em fazer. ela é e faz. seu mistério está em ela ser e nada é mais misterioso do que uma pessoa que é como uma coisa; imanência sem metáfora, sem mentira, estratégia ou palavras. para mim, estar com ela não é completamente fácil justamente porque é fácil demais. sou tão complicada e ela simples; simples na integridade e justeza da simplicidade. nasci de dentro dela, mas com ela algo em mim está sempre nascendo.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

sobre

sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar, disse wittgenstein. pode-se falar sobre as coisas, mas não se pode falar as coisas. e como não se pode falar as coisas, é melhor calar-se as coisas, porque quando elas falam mais é em silêncio e quando melhor as falamos é não dizendo-as.

domingo, 5 de junho de 2011

o joão disse que hoje, na feira, viu a pessoa com a orelha mais feia que existe. que o lóbulo dessa orelha tinha o tamanho de um nariz e que tinha até rugas. uma vez, no metrô de nova york, vi o pé mais feio do mundo. tinha os dedos em forma de gancho, as unhas como garras e pintadas de vermelho reluzente.aposto que a dona desse pé era, na verdade, uma extreterrestre burra, que não soube se disfarçar direito.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

arte

a arte é uma reserva técnica de inadaptação. quando o mundo, como agora, sofre de excesso de adaptabilidade, doença que vem acometendo indiscriminadamente milhões de pessoas, sem muita perspectiva de cura, alguns médicos mais sabidos recorrem à arte. algumas vezes eles ainda conseguem curar doentes, se estes não estiverem em estado terminal da doença. já se soube de casos em que até doentes considerados desenganados foram salvos nos últimos estertores. a arte não é ainda considerada um remédio infalível e há vários casos de reincidências. ainda não foram feitos testes bastante confiáveis em laboratório. dizem que quando estes testes forem finalmente realizados, infelizmente, a aplicação da arte para a cura da doença da adaptabilidade deixará de funcionar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

balada

a bia bracher, amiga querida, me deu de presente o livro balada, do nuno ramos. fiquei algumas horas dividida entre a alegria de ter o livro e a alegria de tê-lo ganhado. o tiro foi dado à queima-roupa e pode-se ver o efeito da explosão da pólvora sobre o papel. depois, a cada página (numerada), acompanha-se o efeito da penetração da bala, um buraco que vai se abrindo bem lentamente, até ir se esgarçando mais e mais para, finalmente, na página quatrocentos e setenta, encontrar-se a bala alojada. restos de pólvora vão se soltando nas páginas imediatamente anteriores e posteriores. da página quinhentos até a página mil, quando o livro termina, vão aparecendo marcas cada vez menores, como cicatrizes, até que, no final, não haja nem sombra de que houve um tiro. o livro como um corpo, as páginas como órgãos, virar as páginas como o ar que sai dos pulmões, a página atingida como a ferida aberta, as páginas seguintes como a cura, o esquecimento, a morte ou a continuação da vida. a bala alojada como uma coisa que fica guardada e que marca o local atingido definitivamente, mesmo depois de retirada.como a balada de robin hood na idade média, esta é a balada que podemos, ou merecemos ter.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

cena

um filme sobre o esquecimento: em vez de as coisas irem sumindo lentamente, a cena vai se carregando de objetos, até saturar totalmente o espaço. não cabe mais nada, nada. nem um grão de areia. no meio disso tudo há uma pessoa. quando não sobra mais espaço nenhum, ele não consegue mais se lembrar de nada, nem do que está exatamente a sua frente.

sábado, 28 de maio de 2011

escuta

não aguento pessoas que não escutam. escutar é muito mais importante do que falar. a fala proveniente da pessoa que sabe escutar é mais próxima de algum sentido da verdade, se é que existe algo parecido. os que não escutam fazem assim: perguntam: você prefere escrever em que momento do dia? ao que se responde: ah, normalmente pela manhã. e o não escutador diz: ah, eu não funciono de manhã. minhas filhas reclamam disso, mas de manhã eu só sei mesmo é dormir. você não adora a noite? eu adoro! bom, na próxima pergunta, você então só responde: é, não sei, tá.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

fotografia

a suely, minha prima querida, me mandou uma foto de um jantar na casa dos meus pais, quando eu tinha, provavelmente, cerca de doze anos. todos na foto olham para o fotógrafo, menos eu. não me nego a olhar para a câmera; meu olhar não é de raiva. é de distração. para onde olhava, aos doze anos? com o que me distraía? vejo nesse olhar a mesma curiosidade e divagação de que sou vítima e sujeito ainda agora. mas, certamente, naquele tempo, elas divisavam coisas que já não espero mais. quatro das pessoas da fotografia já não estão mais por aqui. a criança deve ser um senhor de meia idade. a casa já não é mais da família. o quadro da briga de galos desapareceu em algum lugar. a foto mesma foi parar na casa da minha prima, que, infelizmente, vejo tão pouco. distraio-me e divago hoje justamente com um passado que, ali, estava perdido no futuro. a fotografia do passado distante não só me faz ver quem eu era, mas também quem sou. não é só o passado que é uma sombra do que sou, mas também eu, no presente, sou uma sombra do que era.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

mais

no sábado conheci uma pessoa que é mais que o johnny depp, mais que o philip roth, mais que o neymar e todo mundo junto: a filha do dono do carrinho de bate-bate do parque de diversões de coney island, em cuja placa de entrada está escrito: bump your asses off. e, ainda por cima, ela me convidou para ir lá.

sábado, 21 de maio de 2011

pena

pena vem de punição, penitência. sentir pena é sentir o sofrimento que se deve ter ao sofrer uma punição. mas como é possível sentir a pena de outro? a pena do outro, na verdade, se parece mais com a satisfação por ser ele a estar recebendo a punição e não nós. por isso a pena é o pior sentimento a se ter ou a se receber.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

faróis

coisas de que me lembro do futuro: os picolés terão cinco faces - limão, coco, chocolate, maracujá, pera - e descerão gelados dos tetos, nos dias de calor; sempre haverá sopas quentes - de ervilha, lentilhas e legumes - nos dias de inverno;os picolés e sopas serão fartamente distribuídos para todas as pessoas, indiscriminadamente, e todos terão as faces rosadas de saciedade. por isso, pelos picolés e sopas, ninguém mais se preocupará com irrelevâncias, como a guerra, as commodities e os faróis xenon.

terça-feira, 17 de maio de 2011

uso

coisas de que não gosto no uso da língua:o uso do presente em exposições teóricas sobre o passado, como em "nesse momento, descartes decide viajar"; o uso do futuro para desculpar-se, como em, "olha, agora eu não vou ter espaguete"; o uso do condicional intransitivo ao telefone, como em: "quem gostaria?"; o uso do pronome interrogativo intransitivo, também ao telefone, como em: "de onde?"; o uso da pergunta dirigida por clientes a funcionários, para saber se eles trabalham em algum lugar: "você é daqui?"e o uso da interjeição "hã?".

domingo, 15 de maio de 2011

papoula

achei um único lugar de são paulo que ainda vende rocambole de papoula. a importação da papoula é tão dificultada pelo brasil, que a maioria dos compradores desistiu de comprá-la e, por isso, os doces famosos do bom retiro não existem mais. a papoula como recheio, misturada com açúcar e manteiga, consegue superar até o chocolate. é como um chocolate com pedrinhas que se desfazem, com um gosto que não é exatamente doce. a papoula está entre o fácil do doce e o estranho do amargo. preenche todos os espaços do interior da boca, ocupa a gengiva sem incomodá-la, espalha-se na língua e, quando chega à garganta, provoca um misto de calor e maciez robusta. a papoula restaura e sacia, além da imensa vantagem de ser proveniente da hungria. a papoula é a hungria das comidas.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

pedido

katherine mansfield, pouco antes da morte, disse: "se eu pudesse fazer um único pedido a deus, ele seria: eu quero ser real". o que é ser real? não é ser verdadeiro, porque a verdade está relacionada à moral ou à filosofia. o oposto de verdadeiro é falso e não irreal. o real está ligado à própria existência física. talvez o fato mesmo de querer ser real, ou seja, não ser ficcional, é que impeça alguém de sê-lo. querer ser real já é, em si mesmo, uma elaboração ficcional, de alguém que fabula a própria vida. será que a única maneira de ser real é não querer sê-lo?

quarta-feira, 11 de maio de 2011

metrô

a cidade da higiene, higienópolis, não quer o metrô. o metrô é subterrâneo e sabe-se lá o que pode surgir das entranhas da terra: ratos, sujeira, lama, estranhos. o estranho é o outro e os princípios de limpeza e asseio não toleram esse corpo diferente. para manter a higiene é preciso bastar-se com o mesmo.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

conselho

não saiba, não decida, não pense. seja, por um pouco, a água que se transforma em água: no rio, na chuva e no copo.

sábado, 7 de maio de 2011

azeite

como é possível que a água do banho e o gosto do azeite tenham vencido e tenham até mudado a direção da raiva que eu vinha sentindo? a sensação tem, sobre o sentimento, a força que o silêncio tem sobre a palavra. dilui e desarma.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

girafa

o elefante é o tempo. a girafa é o espaço. ele fica, ela passa. ele é, ela está. ele cresce para baixo e para os lados; ela cresce para cima e para a frente. ele pensa, ela age. ele lembra, ela esquece. ele é zeloso, ela é descuidada. o elefante diz para a girafa: girafa-espaço, pare um pouco. não fique tão agitada. a girafa não escuta direito, porque viu uma coisa interessante lá adiante e já ia naquela direção, mas responde: tempo-elefante, você pode repetir?

terça-feira, 3 de maio de 2011

anágua

minha avó tinha vergonha de se sentar porque saberiam que ela tinha bunda; nunca se viu nua, porque tomava banho de anágua; comprava um frango na segunda-feira e ele tinha que durar a semana inteira; comprava três pacotinhos de chocolate, escrevia os nomes das netas no diminutivo e nos entregava na sexta-feira à noite: stelinhu, janynhu, noeminhu; não comia nada na casa dos outros, só na própria casa; fazia doce de casca de melancia; usava corante nos bolos e eles ficavam verdes, azuis, vermelhos; só andou de ônibus até morrer, porque se recusava a pegar um táxi; guardava o dinheiro que tinha em caixas de sapatos; ria muito e gostava de rir conosco. quando a leda era bebê e ria, ela gargalhava e dizia em alemão: sie lach!

domingo, 1 de maio de 2011

música

a música é um quimono que, primeiro, vem descendo como uma pena pelo ar, envolvendo o corpo lentamente até ajustar-se em todas as dobras, reentrâncias e saliências. depois, ela mesma começa o trabalho de ajustamento e amarrações, enfeixando-se em laços, cordões e pequenos nós, até atar-se ao corpo como um paramento que já tivesse nascido conosco ou nos preparando tanto para uma festividade como para ir à padaria. vestidos de música, a certa, podemos ir a qualquer parte.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

mosca

em a partida do audaz navegante, zito pergunta a brejeirinha: como você sabe que há um jacaré no lago, se você nunca viu ele estar lá? e ela responde: como você sabe que não há, se você nunca viu ele não estar lá? como o pragmatismo se autoriza afirmar a não existência das coisas que nunca viu não estarem lá? não falo de deuses, anjos, ou transcendências, mas só de possibilidades, imaginações, absurdos. como saber que não há, agora, uma mosca flertando com um grilo, se não os vemos não flertarem?

terça-feira, 26 de abril de 2011

parte

a raiva é roxa, tem nove pontas que apontam aleatoriamente para lados diferentes, é feita de cristal, não tem olhos, seu miolo tem infinitos pés que se mexem rápidos mas miúdos e, por incrível que pareça, uma de suas partes é esponjosa e macia. quando apertamos essa parte da raiva, ela inteira se contrai e cessa o movimento contínuo. é preciso muita atenção para encontrar exatamente este ponto, caso contrário ela se lança sozinha no ar e vai parar não sei onde.

sábado, 23 de abril de 2011

torção

sugestões de jogos para torcer ou deslocar um pouco a vida: passar um dia inteiro sem falar a palavra eu (não valem substitutos ou correlatos); traçar um plano de viagem de ônibus e segui-lo à risca (exemplo: pegar um ônibus para santana; descer no trigésimo quarto ponto, virar à direita, andar seis quadras, virar à esquerda etc.); abolir alguma função fática por um tempo determinado (oi, tudo bem, alô, beijão); cumprimentar pessoas aleatoriamente na rua; enxertar algumas sutis frases absurdas em algumas conversas; ficar mais tempo calado do que de hábito.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

liquidificador/ ricardo

tenho a impressão de que a formação da assim chamada "nova classe média", ao invés de diminuir, só tem feito aumentar o abismo social. ela tem chamado tanto a atenção sobre si, que é como se as classes baixas tivessem subitamente cessado de existir. mas elas subsistem atrozes. por outro lado, o que ocorreu com a nova classe média não foi um maior acesso aos direitos e à cultura, mas ao consumo de bens do capital. não é exatamente uma democratização dos direitos, mas um aprofundamento do capitalismo. maior democracia é comprar mais liquidificadores? tenho andado bem confusa. ricardo, explique!

terça-feira, 19 de abril de 2011

exemplo

por exemplo: se você não tivesse me oferecido aquela cadeira para eu me sentar ao seu lado, num dia em que só havia conhecidos seus e eu não tinha com quem conversar, acho que eu não teria me apaixonado por você. outros exemplos: eu disse que seu colchão era duro e você o trocou de lado; você anda do lado de fora de rua, para me proteger; você me comprou um presente para cada sentido: um para o tato, outro para a visão, o paladar, o olfato e a audição. posso concluir: o amor está nos exemplos e não na explicação.

domingo, 17 de abril de 2011

letônia

precisei falar com o consulado da letônia. consegui o número e telefonei: alô, consultório odontológico. mas não é o consulado da letônia? ah! é aqui também.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

intuição

pode ser impossível narrar alguma coisa ou porque ela está muito além ou muito aquém da linguagem. aquém da linguagem estão as percepções súbitas, as intuições, as sensações. além da linguagem estão as coisas que passaram pela linguagem, foram expressas mas a superaram, no sentido de que voltaram para o nível das intuições, já tendo passado pelo canal expressivo. são intuições e sensações tão fortes, tão carregadas de significado, tão plenas, que a linguagem não dá mais conta delas, embora ela tenha sido necessária para dar forma àquilo. nesses casos, a linguagem serve de ponte para um caminho circular que vai da intuição como palpite para a intuição como certeza, reconhecimento, força mobilizadora. foi esse, ontem, o caso com pina bausch.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

teatro

no colegial, eu gostava de um menino, mas tinha certeza de que não era correspondida. era um dos garotos mais populares da escola. um dia, no intervalo do ensaio de teatro, ficamos só nós dois. ele me perguntou: você gosta de alguém? disse que sim. ele perguntou: de quem? disse que não responderia. perguntei: e você? ele disse que também gostava de alguém e que também não diria de quem. sei que nós dois soubemos, naquele momento, que um gostava do outro, mas nos calamos. será que ele sabe disso hoje? será que se lembra?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

bife

três comidas acima do bem e do mal: batata frita, pipoca e bife à milanesa; três músicos acima do bem e do mal: jorge benjor, rita lee e stevie wonder; um pintor acima do bem e do mal: paul klee; um escritor acima do bem e do mal: anton tchekhov; uma pessoa acima do bem e do mal: laerte.

sábado, 9 de abril de 2011

concurso

guardei todo o material para um concurso em que não passei, debaixo da escada da sala. está tudo dentro de uma caixa grande de papelão, que tem largas dobras grossas. a mia adora ficar nesse cantinho e fica arranhando a caixa para afiar as unhas. a caixa já está bem destruída. quero que ela a destrua inteira. é minha vingança contra a instituição que não me aprovou e, afinal, a caixa está servindo para alguma coisa bem mais útil do que passar num concurso.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

corpo

o tempo passa e o corpo, filho do tempo, mais sábio do que a alma, que ambiciona a eternidade, vai rumando para baixo. os seios e as nádegas caem, a coluna verga um pouco, a pele cede. o corpo vai parando de resistir e se aproximando da terra, onde ele vai terminar. a mente, burra, fica tentando subir.

terça-feira, 5 de abril de 2011

quinhentos

meu pai me pedia para datilografar as notas promissórias e as cartas que ele escrevia para os clientes. gostava de começar assim: "referente seu pedido...". ele gostava da palavra referente. achava muito sofisticada e se considerava praticamente um brasileiro quando dizia referente. também gostava de "nunca diga dessa água não beberei" e de "isso são outros quinhentos".

sábado, 2 de abril de 2011

basco

queria escrever um conto utilizando a língua basca como mote, para fazer parte de um livro sobre as letras do alfabeto. o basco não tem parentesco com nenhuma outra língua do mundo. procurei na internet e descobri um poeta basco, bernardo atxaga, que escreveu um poema lindo sobre uma gaivota. escrevi a ele e perguntei se poderia usá-lo como personagem do conto e também ao seu poema. ele demorou a responder e, por isso, inventei um nome basco e um poema também. depois de alguns dias, ele respondeu, calorosamente, dizendo que aceitava ser personagem do meu conto, é claro, e que cedia o poema com alegria. de quebra, ainda contou a história do poema e disse que também escreveu um livro sobre as letras do alfabeto. convergências também são letras. só é preciso lê-las.

quinta-feira, 31 de março de 2011

faca

paul valéry disse que nunca conseguiria escrever um romance, porque seria incapaz de dizer essa frase: "a marquesa saiu às cinco horas". às vezes me sinto incapaz de viver em sociedade, porque não consigo dizer: "o cabo da faca foi tão mal lavado, que ficou todo engordurado".

terça-feira, 29 de março de 2011

parto

inefável, etimologicamente, é aquilo que não se pode pronunciar. filosoficamente, entretanto, inefável é o que não se pode definir. prefiro o não pronunciável ao indefinível, embora acabem sendo a mesma coisa, na prática. não se pode nem dizer a palavra que o designa (como dizer inefável impunemente?), nem imaginar o que seja aquilo que não se pode pronunciar. será o barulho de um grão? será a pátina manchando uma pedra? o cheiro de um asteróide? a aproximação da morte ou do parto?

domingo, 27 de março de 2011

balde

porque chove só um pouco e logo em seguida faz sol. porque tinha sorvete de coco com tapioca. porque a frase não era do kant, era do hegel. porque ainda tem muitos cds aqui e o ipod nem funciona. porque o sofá está coberto por um pano, por causa da sujeira. porque a fonte do telefone quebrou com a sobrecarga de eletricidade na rua. porque não tem balde de gelo e é melhor então usar mesmo a tigela da batedeira. porque acabou a rúcula na feira. porque uma nota da canção sai errada na hora de assoviá-la. porque tinha aquele colar de miçangas comprido. porque o fusca verde tinha o estofamento todo rasgado. porque pastrame com tomate seco é muito gostoso. porque tem tantas surpresas que eu ainda não vi.

sexta-feira, 25 de março de 2011

lugar

empédocles, no ano quatrocentos e cinquenta e três antes de cristo, em agrigento, disse: sobrevive todo aquele que está mais capacitado. já sentádocles, que nunca saiu do lugar, não disse nada disso e ficou só olhando.

observação: no post acima, não se critica sentádocles. a intenção era que ele fosse o mais legal.

quinta-feira, 24 de março de 2011

lençol

estava num estado entre o sono e a vigília. ela entrou no meu quarto e disse: mãe? não respondi, mas senti como se um lençol tivesse vindo pelo ar para me cobrir. na hora, pensei que nasci para ouvir essa frase.

terça-feira, 22 de março de 2011

satisfação

sempre me perguntam qual é a diferença entre a "grata satisfação", princípio da prática do haikai e o assim chamado "complexo de poliana", entendido pejorativamente. um poeta haiku, como bashô, tem o telhado destruído e agradece por ver a lua. sente-se grato e agraciado pela oportunidade que o desastre lhe proporcionou. perguntam-me: poliana não faria a mesma coisa? grata satisfação não é a mesma coisa que tolice? penso que não. poliana é a tolerante produtiva; algo como a bobagem de quem "faz do limão uma limonada". já a grata satisfação é, como o nome diz, somente grata. não "aproveita" a situação para ver o lado bom. apenas o vê gratuitamente. vê sem querer.

domingo, 20 de março de 2011

cinto

fui dormir em sábado e alguma coisa muito estranha deve ter acontecido durante a noite, porque acordei em domingo. sábado usa cinto, fivela no cabelo e toma dois banhos por dia. domingo não. domingo tem um certo mau hálito.

sexta-feira, 18 de março de 2011

medida

um silêncio de algo que está sendo não dito, diferente do silêncio de nada estar sendo dito, do silêncio carregado de si mesmo, do silêncio de tudo estar sendo dito. um é poder, outro é apatia, outro é autonomia, outro é pacto. o silêncio é um alfabeto dificílimo. não há dicionário nem método para aprendê-lo. para se comunicar com um silêncio a língua de acesso é o tempo e, com sorte, o olhar. falar atrapalha. diante de alguns silêncios é preciso tomar cuidado. outros não querem cuidado nenhum. para uma hermenêutica do silêncio, a melhor medida é respirar.

quinta-feira, 17 de março de 2011

vinho

quarenta e nove é sete vezes sete. quarenta e nove é mais bonito que cinquenta porque não precisa de toda a solenidade de cinquenta para se impor. vem como quem não quer nada e aos poucos todos percebem como ele é bonito, mais sonoro, complexo e preenchido. quarenta e nove parece vinho francês. garçom, s'il vous plait, un quarante neuf.

quarta-feira, 16 de março de 2011

vento

dizem que deus soprou o mundo. que as musas inspiram os poetas. o radical spr é o vento do sopro e da inspiração. é também o sopro das histórias (sipur, em hebraico) e de contar (lispor e lesaper) os números e outra vez as histórias. mas tenho certeza de que spr também está em saber, com o p trocado pelo b, e em sabor, que é saber com o paladar. tudo vento.

segunda-feira, 14 de março de 2011

gramática

num livro de gramática de mil novecentos e sessenta e um, encontro dois papéis soltos: as letras de meu pai e de minha mãe, aprendendo as conjugações do verbo vir e amar e os tipos de pronomes em português. uma tentativa de saber se ansiedade é com "s" ou com "c". na letra da minha mãe: eu amo, tu amas, ele ama. eu venho, tu vens, ele vem. eles estavam aprendendo português. não sei exatamente o porquê e, na verdade, acho que não quero saber, mas essas conjugações, como diria o drummond, me emocionam como o diabo.

sábado, 12 de março de 2011

função

talvez a principal (ou única) função de saber sobre um terremoto distante seja saber que não se pode fazer nada sobre isso e constatar, assim, nossa cada vez maior impotência diante de (quase) tudo.

quinta-feira, 10 de março de 2011

xareró

quando eu era pequena, a música do vinicius dizia assim: "acordo de manhã, pão com manteiga, e muito, muito sangue no jornal, daí a garotada toda chega, e eu chego a achar herodes natural". e eu ouvia: "e eu chego a xareró desnatural". fazia sentido.

terça-feira, 8 de março de 2011

modernidade

bruto é não manipulado, intocado. líquido é fluente, corrente e, na metáfora econômica, aquilo que resta após a dedução das despesas. as despesas são como manipulações sobre o dinheiro grosso, intocado que, após sofrê-las, torna-se líquido. liquidar também é exterminar rapidamente. já a liquidação é a manipulação artificial dos preços supostamente naturais do produto, revertendo-se como um benefício imaginário ao consumidor. o bruto tem a qualidade do intocável, mas o problema da não depuração; o líquido tem a vantagem da fluidez, mas o problema da manipulação: problema alquímico da modernidade

domingo, 6 de março de 2011

vaca

charlie parker ouviu dizer que vacas gostam de música. uma vez, viajando de carro pelo campo, ao avistar uma vaca, pediu para o condutor parar o carro, desceu com seu saxofone e começou a tocar para a vaca. na imensidão do tempo e do espaço, dos séculos que giram indefinidamente, essa cena aconteceu.

sexta-feira, 4 de março de 2011

músculo

âmago vem de amido, uma massa mole que compõe o centro de algumas plantas. daí a ideia de âmago como o centro mesmo de alguma coisa. músculo vem de pequeno rato, com o qual se assemelham alguns músculos quando contraídos. daí que o âmago do músculo, expressão que minha professora de ginástica usou ontem e que eu achei tão linda, é como o amido de um ratinho. é meio nojento, eu sei, mas dá para focalizar melhor na hora de alongar.

quarta-feira, 2 de março de 2011

geladeira

ontem, num jantar, entabulamos uma pequena discussão: no caso do surgimento de um dinheiro extra, gastaríamos numa geladeira nova ou numa viagem de um mês para ny? todos os que tinham cerca de cinquenta anos optaram pela geladeira. uma lançou um ótimo argumento: as coisas pequenas são infinitas, tanto quanto as que há de se encontrar em ny. outra disse que, aos cinquenta anos, temos mais noção de nossa mortalidade, portanto, preferimos cumprir sonhos possíveis e, quem sabe, até medíocres, porque mais duradouros e coletivos. um dos membros da mesa, de vinte e dois anos, disse que, com um dinheiro a mais, iria para rússia. conhecer mundos novos, diferentes, experiências únicas, que enriqueceriam sua história pessoal e cultural. os de cinquenta gritaram em uníssono: rússia?

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

palhaços

em barcelona, combinamos com pepa, mulher de joan brossa, que gostaríamos de entrevistá-lo na manhã seguinte. ela disse que não havia interfone em seu prédio e que, no horário combinado, ela nos esperaria na rua. chegamos cinco minutos atrasados e não havia ninguém à nossa espera. meia hora depois, pepa apareceu, nos viu e disse: mas você já não entraram? dissemos que não, que tínhamos nos atrasado. ela disse que, no horário combinado, havia um homem e uma mulher vestidos de palhaços, sentados no banco em frente ao prédio. pepa perguntou: o que vocês querem? eles disseram: conversar com joan brossa. ela achou que fôssemos nós e os deixou entrar. naquele momento, eles estavam entrevistando joan brossa. nós dissemos: não! nós é que somos nós, não os palhaços! ela disse: bem, então vocês entram depois.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

vida

o cínico, por ser cínico, e portanto, incrédulo, não acredita que é possível mudar aquilo que ele finge criticar. com isso, acaba servindo àquilo que critica. assim, o cínico, além de cínico, é também covarde. e é por isso que o cinismo é um companheiro da morte. para ficar do lado da vida não se pode sempre desconfiar.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

nojo

saindo da padaria, encontrei um ex-aluno, que me abraçou e perguntou: noemi, agora eu posso te fazer uma pergunta. você disse que depois que eu me formasse e começasse a gostar de ler, eu descobriria alguma coisa na literatura. agora já me formei, gosto de ler, mas não descobri nada. o que era? eu disse: não sei. acho que era a própria literatura. ele fez uma careta de nojo e respondeu: só isso?

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

gelsomina

gelsomina, fique comigo nas noites escuras e me ensine a ter sonhos como os seus; gelsomina, toque no trompete aquela melodia que faz as mulheres e os homens chorarem; gelsomina, me deixe te dar uma colherada de sopa da tua panelinha; gelsomina, me acompanhe pelas cidades desconhecidas; gelsomina, me ensine a arregalar os olhos; gelsomina, não chore mais.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

galocha

o real e o verdadeiro são duas coisas totalmente diferentes, já que o irreal é verdadeiro e o falso pode ser real. além disso, o real é invariavelmente chato, esvaziante, enquanto o verdadeiro pode ser sempre uma fonte de novidades e possibilidades. para agravar o estatuto do real, ainda tem sua etimologia, ligada à realeza, que, por um tempo, determinava o que era real. fiquemos, assim, com o verdadeiro e esqueçamos o real, esse chato de galocha.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

vitrolinha

meu pai se trancava no meu quarto e ficava escutando músicas na minha vitrolinha laranja. ele apagava a luz e eu, do outro lado da porta, o escutava chorar. sei que isso é verdade, mas, de alguma forma, parece mentira. é estranho testemunhar que o pai tem uma verdade que nunca se conhecerá; e talvez por isso a verdade pareça falsa.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

superfície

como superar a sábia obviedade de: "a inveja é uma merda"; "amigo é a melhor coisa do mundo" e "demora, mas passa"?. e por que superar, se o óbvio é o evidente, o que está à vista? por que superar a superfície?

domingo, 13 de fevereiro de 2011

égua

em inglês, pesadelo é, com razão, a égua da noite. ela vem, passa correndo, nos rapta temporariamente e depois nos derruba com violência de volta para a vigília. nos abandona à ignorância da consciência e volta para a floresta louca do inconsciente, cujas razões só ela conhece.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

espera

no romance "a fera na selva", de henry james, john não se dá conta de que o objeto de sua espera infinita esteve a vida toda diante dele próprio. a espera é um tempo narcísico e inflado; ocupa tanto todos os espaços do esperador, que o impede de ver além da espera. o esperador compraz-se tanto em ser sujeito e vítima da espera, que a realização de seu conteúdo pode, para ele, não passar de frustração.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

pergunta

por que deus pergunta a adão: "onde está você, adão?", se ele certamente sabe onde adão está? dizem que o efeito e a intenção desta pergunta é moral e repressivo, não literal. mas então por que deus faz a adão uma pergunta de caráter irônico? por que esta obliquidade verbal naquele único momento de suposta harmonia linguística? por que ele não diz, simplesmente: "adão, não faça isso"? deus, dessa forma, se assemelha mais a uma mãe controladora do que a um pai protetor. em alguns aspectos, pode-se dizer que deus é uma ídishe mame.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

lorenzo

graças a lorenzo, um italiano não judeu que primo levi conheceu em auschwitz, e que trabalhava numa fábrica próxima, ele e seu amigo alberto sobreviveram ao campo de concentração. lorenzo levou sopa e pão para os dois, todos os dias, durante quatro meses, pondo em risco a própria vida, sem ganhar nada em troca. é muito difícil, talvez impossível, imaginar como seriam as ações e reações que eu, ou qualquer outra pessoa, teriam numa situação como esta. mas lorenzo, com seu silêncio, sua recusa sincera em receber alguma forma de agradecimento, seu gesto arriscado e decisivo para a vida de primo levi, é, para mim, uma verdade serena que sustenta um passado que não tive.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

maçã

se eu esquecer desta história, como diz a reza, que me caia a mão direita: meu querido amigo henrique é cineasta. numa viagem pela antiga união soviética, ao anunciar que passaria por uma cidadezinha do interior, foi recebido na estação do trem, após um grande atraso, pela orquestra da cidade, cujos músicos estavam todos adormecidos pela plataforma. o maestro o levou até sua casa e tratou dele o melhor que pode, apesar das dificuldades todas. no dia seguinte, o henrique tinha que ir para outra cidade. foi acompanhado novamente pela orquestra local, que tocou para ele e, como presente, recebeu do maestro uma companhia para a viagem: um ovo e uma maçã.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

finito

ontem, num filme meio bobo na televisão, ouvi essa pergunta também meio boba, mas interessante: "por que fazer o mundo melhor? por que não fazê-lo menos pior?" ontem também, num livro nada bobo de goethe, li esta outra frase e acabei percebendo que as duas são, na verdade, muito semelhantes: "se queres caminhar para o infinito, caminha para todos os lados do finito".

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

domingo, 30 de janeiro de 2011

conserva

sempre tive muito orgulho do meu pai por essa história que ele me contava, sem também demonstrar nenhum arrependimento: na antiga iugoslávia, minha avó fazia conservas doces e salgadas e guardava para o inverno, num depósito perto da sua casa. cobria os vidros com papel de seda e não deixava ninguém encostar nelas. meu pai subia no telhado do depósito e, com uma vareta, furava o papel. as conservas começavam a estragar e minha avó era, por isso, obrigada a servi-las. essa era uma alternativa. a outra era meu pai e o irmãos se fingirem doentes para que ela se compadecesse e oferecesse a eles geleias e compotas.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

embora

embora, como advérbio, é a contração de em boa hora. "vou embora" é usado como um advérbio de lugar, mas, na origem, tem significado temporal. o tempo e o espaço se reúnem, assim, para que este tempo-lugar seja carregado de bons augúrios. embora fica sendo o lugar e o tempo ideais. mas não consigo entender por que a língua reservou a esta palavra tão bonita também a ideia de conjunção concessiva, como em "embora não fale inglês, eu consigo me virar." penso, penso e não entendo. por que advérbio tempo-espacial e conjunção concessiva?

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

nada

quando o mundo acabar, além das baratas, sobreviverá também a burocracia, que, como elas, se auto-imuniza, auto-reproduz, não serve para nada, é feia, chata e burra.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

todo

envelhecer como um distanciamento, sem a histeria de fazer parte de tudo. e, à distância, enxergar melhor o todo, mais do que as partes.

sábado, 22 de janeiro de 2011

diminutivo

é um privilégio que o português, como poucas línguas, tenha o diminutivo, o que nos permite dizer coisas lindas, como "teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho da índia que me deram quando eu tinha seis anos". por outro lado, e certamente a partir do mesmo raciocínio de apequenamento, o "inho" também pode ser um indicador de segregação social. na pousada em que eu estava, ouvi a perua se dirigindo ao cozinheiro: "thiago, você pode me fazer um omeletinho ou uns ovinhos mexidos? ou melhor, acho que eu preferia um tostexzinho. ai, não sei, thiago! tostex ou ovinhos?"

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

plano

fico incomodada quando ouço dizerem: no plano profissional estou bem, mas no plano emocional, não; plano quer dizer nível, uma espécie de andar. isso significa que, ao nos referirmos à nossa vida em termos de planos, estamos dividindo-a em andares. penso que justamente o fato de verticalizarmos tanto a vida e a personalidade, é uma das razões para sermos infelizes. se fôssemos mais horizontais e se profissão e emoção não ficassem em dois planos diferentes, mas misturados, como já são, talvez tivéssemos menos problemas e certamente haveria menos mediocridade.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

infinitilhão

o menino de uns sete anos na mesa: quanto vem depois de um bilhão? o pai: trilhão. daí o menino ficou falando: trilhão, quatrilhão, cinquilhão, sextilhão, septilhão, octilhão, novilhão e ele iria até infinitilhão. daí a menina falou: bobalhão.

domingo, 16 de janeiro de 2011

beija-flor

vi um ninho com dois filhotes de beija-flor. num dia, cada um olhava para uma direção diferente. no dia seguinte, os dois, já maiores e com o pescoço bem esticado, olhavam para a mesma direção. no terceiro dia, só havia um, já bem mais crescido. enquanto eles estavam lá, sabia que, ao menos para mim, eles sustentavam o mundo. podia dormir segura, porque eles velavam pelos homens. e tinha mais certeza ainda disso tudo, porque sabia que o que os fazia sustentar o mundo inteiro era porque eles não o sustentavam em nada. nada mesmo. só ao farelo que sua mãe lhes traria no bico e ao espaço de um milímetro que lhes cabia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

férias

férias significa féria, feira, regozijo. por extensão (e infelicidade inevitável) também significa salário remunerado para descanso ( salário que, por sua vez era o pagamento do trabalho em forma de sal). isso torna o descanso um direito concedido pela instituição máxima: o trabalho, ao invés de um ato autônomo. todos descansam sem culpa, porque trabalham. de qualquer maneira, o blog vai descansar, porque eu trabalho e porque eu quero também. não vou receber sal nem remuneração. só silêncio. volto no dia dezesseis.

sábado, 1 de janeiro de 2011

onze

que o novo seja a sucessão despercebida do igual e a surpresa urgente do durante. bom dois mil e onze para todos!