quinta-feira, 31 de março de 2011

faca

paul valéry disse que nunca conseguiria escrever um romance, porque seria incapaz de dizer essa frase: "a marquesa saiu às cinco horas". às vezes me sinto incapaz de viver em sociedade, porque não consigo dizer: "o cabo da faca foi tão mal lavado, que ficou todo engordurado".

terça-feira, 29 de março de 2011

parto

inefável, etimologicamente, é aquilo que não se pode pronunciar. filosoficamente, entretanto, inefável é o que não se pode definir. prefiro o não pronunciável ao indefinível, embora acabem sendo a mesma coisa, na prática. não se pode nem dizer a palavra que o designa (como dizer inefável impunemente?), nem imaginar o que seja aquilo que não se pode pronunciar. será o barulho de um grão? será a pátina manchando uma pedra? o cheiro de um asteróide? a aproximação da morte ou do parto?

domingo, 27 de março de 2011

balde

porque chove só um pouco e logo em seguida faz sol. porque tinha sorvete de coco com tapioca. porque a frase não era do kant, era do hegel. porque ainda tem muitos cds aqui e o ipod nem funciona. porque o sofá está coberto por um pano, por causa da sujeira. porque a fonte do telefone quebrou com a sobrecarga de eletricidade na rua. porque não tem balde de gelo e é melhor então usar mesmo a tigela da batedeira. porque acabou a rúcula na feira. porque uma nota da canção sai errada na hora de assoviá-la. porque tinha aquele colar de miçangas comprido. porque o fusca verde tinha o estofamento todo rasgado. porque pastrame com tomate seco é muito gostoso. porque tem tantas surpresas que eu ainda não vi.

sexta-feira, 25 de março de 2011

lugar

empédocles, no ano quatrocentos e cinquenta e três antes de cristo, em agrigento, disse: sobrevive todo aquele que está mais capacitado. já sentádocles, que nunca saiu do lugar, não disse nada disso e ficou só olhando.

observação: no post acima, não se critica sentádocles. a intenção era que ele fosse o mais legal.

quinta-feira, 24 de março de 2011

lençol

estava num estado entre o sono e a vigília. ela entrou no meu quarto e disse: mãe? não respondi, mas senti como se um lençol tivesse vindo pelo ar para me cobrir. na hora, pensei que nasci para ouvir essa frase.

terça-feira, 22 de março de 2011

satisfação

sempre me perguntam qual é a diferença entre a "grata satisfação", princípio da prática do haikai e o assim chamado "complexo de poliana", entendido pejorativamente. um poeta haiku, como bashô, tem o telhado destruído e agradece por ver a lua. sente-se grato e agraciado pela oportunidade que o desastre lhe proporcionou. perguntam-me: poliana não faria a mesma coisa? grata satisfação não é a mesma coisa que tolice? penso que não. poliana é a tolerante produtiva; algo como a bobagem de quem "faz do limão uma limonada". já a grata satisfação é, como o nome diz, somente grata. não "aproveita" a situação para ver o lado bom. apenas o vê gratuitamente. vê sem querer.

domingo, 20 de março de 2011

cinto

fui dormir em sábado e alguma coisa muito estranha deve ter acontecido durante a noite, porque acordei em domingo. sábado usa cinto, fivela no cabelo e toma dois banhos por dia. domingo não. domingo tem um certo mau hálito.

sexta-feira, 18 de março de 2011

medida

um silêncio de algo que está sendo não dito, diferente do silêncio de nada estar sendo dito, do silêncio carregado de si mesmo, do silêncio de tudo estar sendo dito. um é poder, outro é apatia, outro é autonomia, outro é pacto. o silêncio é um alfabeto dificílimo. não há dicionário nem método para aprendê-lo. para se comunicar com um silêncio a língua de acesso é o tempo e, com sorte, o olhar. falar atrapalha. diante de alguns silêncios é preciso tomar cuidado. outros não querem cuidado nenhum. para uma hermenêutica do silêncio, a melhor medida é respirar.

quinta-feira, 17 de março de 2011

vinho

quarenta e nove é sete vezes sete. quarenta e nove é mais bonito que cinquenta porque não precisa de toda a solenidade de cinquenta para se impor. vem como quem não quer nada e aos poucos todos percebem como ele é bonito, mais sonoro, complexo e preenchido. quarenta e nove parece vinho francês. garçom, s'il vous plait, un quarante neuf.

quarta-feira, 16 de março de 2011

vento

dizem que deus soprou o mundo. que as musas inspiram os poetas. o radical spr é o vento do sopro e da inspiração. é também o sopro das histórias (sipur, em hebraico) e de contar (lispor e lesaper) os números e outra vez as histórias. mas tenho certeza de que spr também está em saber, com o p trocado pelo b, e em sabor, que é saber com o paladar. tudo vento.

segunda-feira, 14 de março de 2011

gramática

num livro de gramática de mil novecentos e sessenta e um, encontro dois papéis soltos: as letras de meu pai e de minha mãe, aprendendo as conjugações do verbo vir e amar e os tipos de pronomes em português. uma tentativa de saber se ansiedade é com "s" ou com "c". na letra da minha mãe: eu amo, tu amas, ele ama. eu venho, tu vens, ele vem. eles estavam aprendendo português. não sei exatamente o porquê e, na verdade, acho que não quero saber, mas essas conjugações, como diria o drummond, me emocionam como o diabo.

sábado, 12 de março de 2011

função

talvez a principal (ou única) função de saber sobre um terremoto distante seja saber que não se pode fazer nada sobre isso e constatar, assim, nossa cada vez maior impotência diante de (quase) tudo.

quinta-feira, 10 de março de 2011

xareró

quando eu era pequena, a música do vinicius dizia assim: "acordo de manhã, pão com manteiga, e muito, muito sangue no jornal, daí a garotada toda chega, e eu chego a achar herodes natural". e eu ouvia: "e eu chego a xareró desnatural". fazia sentido.

terça-feira, 8 de março de 2011

modernidade

bruto é não manipulado, intocado. líquido é fluente, corrente e, na metáfora econômica, aquilo que resta após a dedução das despesas. as despesas são como manipulações sobre o dinheiro grosso, intocado que, após sofrê-las, torna-se líquido. liquidar também é exterminar rapidamente. já a liquidação é a manipulação artificial dos preços supostamente naturais do produto, revertendo-se como um benefício imaginário ao consumidor. o bruto tem a qualidade do intocável, mas o problema da não depuração; o líquido tem a vantagem da fluidez, mas o problema da manipulação: problema alquímico da modernidade

domingo, 6 de março de 2011

vaca

charlie parker ouviu dizer que vacas gostam de música. uma vez, viajando de carro pelo campo, ao avistar uma vaca, pediu para o condutor parar o carro, desceu com seu saxofone e começou a tocar para a vaca. na imensidão do tempo e do espaço, dos séculos que giram indefinidamente, essa cena aconteceu.

sexta-feira, 4 de março de 2011

músculo

âmago vem de amido, uma massa mole que compõe o centro de algumas plantas. daí a ideia de âmago como o centro mesmo de alguma coisa. músculo vem de pequeno rato, com o qual se assemelham alguns músculos quando contraídos. daí que o âmago do músculo, expressão que minha professora de ginástica usou ontem e que eu achei tão linda, é como o amido de um ratinho. é meio nojento, eu sei, mas dá para focalizar melhor na hora de alongar.

quarta-feira, 2 de março de 2011

geladeira

ontem, num jantar, entabulamos uma pequena discussão: no caso do surgimento de um dinheiro extra, gastaríamos numa geladeira nova ou numa viagem de um mês para ny? todos os que tinham cerca de cinquenta anos optaram pela geladeira. uma lançou um ótimo argumento: as coisas pequenas são infinitas, tanto quanto as que há de se encontrar em ny. outra disse que, aos cinquenta anos, temos mais noção de nossa mortalidade, portanto, preferimos cumprir sonhos possíveis e, quem sabe, até medíocres, porque mais duradouros e coletivos. um dos membros da mesa, de vinte e dois anos, disse que, com um dinheiro a mais, iria para rússia. conhecer mundos novos, diferentes, experiências únicas, que enriqueceriam sua história pessoal e cultural. os de cinquenta gritaram em uníssono: rússia?