quinta-feira, 28 de abril de 2011

mosca

em a partida do audaz navegante, zito pergunta a brejeirinha: como você sabe que há um jacaré no lago, se você nunca viu ele estar lá? e ela responde: como você sabe que não há, se você nunca viu ele não estar lá? como o pragmatismo se autoriza afirmar a não existência das coisas que nunca viu não estarem lá? não falo de deuses, anjos, ou transcendências, mas só de possibilidades, imaginações, absurdos. como saber que não há, agora, uma mosca flertando com um grilo, se não os vemos não flertarem?

terça-feira, 26 de abril de 2011

parte

a raiva é roxa, tem nove pontas que apontam aleatoriamente para lados diferentes, é feita de cristal, não tem olhos, seu miolo tem infinitos pés que se mexem rápidos mas miúdos e, por incrível que pareça, uma de suas partes é esponjosa e macia. quando apertamos essa parte da raiva, ela inteira se contrai e cessa o movimento contínuo. é preciso muita atenção para encontrar exatamente este ponto, caso contrário ela se lança sozinha no ar e vai parar não sei onde.

sábado, 23 de abril de 2011

torção

sugestões de jogos para torcer ou deslocar um pouco a vida: passar um dia inteiro sem falar a palavra eu (não valem substitutos ou correlatos); traçar um plano de viagem de ônibus e segui-lo à risca (exemplo: pegar um ônibus para santana; descer no trigésimo quarto ponto, virar à direita, andar seis quadras, virar à esquerda etc.); abolir alguma função fática por um tempo determinado (oi, tudo bem, alô, beijão); cumprimentar pessoas aleatoriamente na rua; enxertar algumas sutis frases absurdas em algumas conversas; ficar mais tempo calado do que de hábito.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

liquidificador/ ricardo

tenho a impressão de que a formação da assim chamada "nova classe média", ao invés de diminuir, só tem feito aumentar o abismo social. ela tem chamado tanto a atenção sobre si, que é como se as classes baixas tivessem subitamente cessado de existir. mas elas subsistem atrozes. por outro lado, o que ocorreu com a nova classe média não foi um maior acesso aos direitos e à cultura, mas ao consumo de bens do capital. não é exatamente uma democratização dos direitos, mas um aprofundamento do capitalismo. maior democracia é comprar mais liquidificadores? tenho andado bem confusa. ricardo, explique!

terça-feira, 19 de abril de 2011

exemplo

por exemplo: se você não tivesse me oferecido aquela cadeira para eu me sentar ao seu lado, num dia em que só havia conhecidos seus e eu não tinha com quem conversar, acho que eu não teria me apaixonado por você. outros exemplos: eu disse que seu colchão era duro e você o trocou de lado; você anda do lado de fora de rua, para me proteger; você me comprou um presente para cada sentido: um para o tato, outro para a visão, o paladar, o olfato e a audição. posso concluir: o amor está nos exemplos e não na explicação.

domingo, 17 de abril de 2011

letônia

precisei falar com o consulado da letônia. consegui o número e telefonei: alô, consultório odontológico. mas não é o consulado da letônia? ah! é aqui também.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

intuição

pode ser impossível narrar alguma coisa ou porque ela está muito além ou muito aquém da linguagem. aquém da linguagem estão as percepções súbitas, as intuições, as sensações. além da linguagem estão as coisas que passaram pela linguagem, foram expressas mas a superaram, no sentido de que voltaram para o nível das intuições, já tendo passado pelo canal expressivo. são intuições e sensações tão fortes, tão carregadas de significado, tão plenas, que a linguagem não dá mais conta delas, embora ela tenha sido necessária para dar forma àquilo. nesses casos, a linguagem serve de ponte para um caminho circular que vai da intuição como palpite para a intuição como certeza, reconhecimento, força mobilizadora. foi esse, ontem, o caso com pina bausch.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

teatro

no colegial, eu gostava de um menino, mas tinha certeza de que não era correspondida. era um dos garotos mais populares da escola. um dia, no intervalo do ensaio de teatro, ficamos só nós dois. ele me perguntou: você gosta de alguém? disse que sim. ele perguntou: de quem? disse que não responderia. perguntei: e você? ele disse que também gostava de alguém e que também não diria de quem. sei que nós dois soubemos, naquele momento, que um gostava do outro, mas nos calamos. será que ele sabe disso hoje? será que se lembra?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

bife

três comidas acima do bem e do mal: batata frita, pipoca e bife à milanesa; três músicos acima do bem e do mal: jorge benjor, rita lee e stevie wonder; um pintor acima do bem e do mal: paul klee; um escritor acima do bem e do mal: anton tchekhov; uma pessoa acima do bem e do mal: laerte.

sábado, 9 de abril de 2011

concurso

guardei todo o material para um concurso em que não passei, debaixo da escada da sala. está tudo dentro de uma caixa grande de papelão, que tem largas dobras grossas. a mia adora ficar nesse cantinho e fica arranhando a caixa para afiar as unhas. a caixa já está bem destruída. quero que ela a destrua inteira. é minha vingança contra a instituição que não me aprovou e, afinal, a caixa está servindo para alguma coisa bem mais útil do que passar num concurso.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

corpo

o tempo passa e o corpo, filho do tempo, mais sábio do que a alma, que ambiciona a eternidade, vai rumando para baixo. os seios e as nádegas caem, a coluna verga um pouco, a pele cede. o corpo vai parando de resistir e se aproximando da terra, onde ele vai terminar. a mente, burra, fica tentando subir.

terça-feira, 5 de abril de 2011

quinhentos

meu pai me pedia para datilografar as notas promissórias e as cartas que ele escrevia para os clientes. gostava de começar assim: "referente seu pedido...". ele gostava da palavra referente. achava muito sofisticada e se considerava praticamente um brasileiro quando dizia referente. também gostava de "nunca diga dessa água não beberei" e de "isso são outros quinhentos".

sábado, 2 de abril de 2011

basco

queria escrever um conto utilizando a língua basca como mote, para fazer parte de um livro sobre as letras do alfabeto. o basco não tem parentesco com nenhuma outra língua do mundo. procurei na internet e descobri um poeta basco, bernardo atxaga, que escreveu um poema lindo sobre uma gaivota. escrevi a ele e perguntei se poderia usá-lo como personagem do conto e também ao seu poema. ele demorou a responder e, por isso, inventei um nome basco e um poema também. depois de alguns dias, ele respondeu, calorosamente, dizendo que aceitava ser personagem do meu conto, é claro, e que cedia o poema com alegria. de quebra, ainda contou a história do poema e disse que também escreveu um livro sobre as letras do alfabeto. convergências também são letras. só é preciso lê-las.