segunda-feira, 30 de maio de 2011

cena

um filme sobre o esquecimento: em vez de as coisas irem sumindo lentamente, a cena vai se carregando de objetos, até saturar totalmente o espaço. não cabe mais nada, nada. nem um grão de areia. no meio disso tudo há uma pessoa. quando não sobra mais espaço nenhum, ele não consegue mais se lembrar de nada, nem do que está exatamente a sua frente.

sábado, 28 de maio de 2011

escuta

não aguento pessoas que não escutam. escutar é muito mais importante do que falar. a fala proveniente da pessoa que sabe escutar é mais próxima de algum sentido da verdade, se é que existe algo parecido. os que não escutam fazem assim: perguntam: você prefere escrever em que momento do dia? ao que se responde: ah, normalmente pela manhã. e o não escutador diz: ah, eu não funciono de manhã. minhas filhas reclamam disso, mas de manhã eu só sei mesmo é dormir. você não adora a noite? eu adoro! bom, na próxima pergunta, você então só responde: é, não sei, tá.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

fotografia

a suely, minha prima querida, me mandou uma foto de um jantar na casa dos meus pais, quando eu tinha, provavelmente, cerca de doze anos. todos na foto olham para o fotógrafo, menos eu. não me nego a olhar para a câmera; meu olhar não é de raiva. é de distração. para onde olhava, aos doze anos? com o que me distraía? vejo nesse olhar a mesma curiosidade e divagação de que sou vítima e sujeito ainda agora. mas, certamente, naquele tempo, elas divisavam coisas que já não espero mais. quatro das pessoas da fotografia já não estão mais por aqui. a criança deve ser um senhor de meia idade. a casa já não é mais da família. o quadro da briga de galos desapareceu em algum lugar. a foto mesma foi parar na casa da minha prima, que, infelizmente, vejo tão pouco. distraio-me e divago hoje justamente com um passado que, ali, estava perdido no futuro. a fotografia do passado distante não só me faz ver quem eu era, mas também quem sou. não é só o passado que é uma sombra do que sou, mas também eu, no presente, sou uma sombra do que era.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

mais

no sábado conheci uma pessoa que é mais que o johnny depp, mais que o philip roth, mais que o neymar e todo mundo junto: a filha do dono do carrinho de bate-bate do parque de diversões de coney island, em cuja placa de entrada está escrito: bump your asses off. e, ainda por cima, ela me convidou para ir lá.

sábado, 21 de maio de 2011

pena

pena vem de punição, penitência. sentir pena é sentir o sofrimento que se deve ter ao sofrer uma punição. mas como é possível sentir a pena de outro? a pena do outro, na verdade, se parece mais com a satisfação por ser ele a estar recebendo a punição e não nós. por isso a pena é o pior sentimento a se ter ou a se receber.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

faróis

coisas de que me lembro do futuro: os picolés terão cinco faces - limão, coco, chocolate, maracujá, pera - e descerão gelados dos tetos, nos dias de calor; sempre haverá sopas quentes - de ervilha, lentilhas e legumes - nos dias de inverno;os picolés e sopas serão fartamente distribuídos para todas as pessoas, indiscriminadamente, e todos terão as faces rosadas de saciedade. por isso, pelos picolés e sopas, ninguém mais se preocupará com irrelevâncias, como a guerra, as commodities e os faróis xenon.

terça-feira, 17 de maio de 2011

uso

coisas de que não gosto no uso da língua:o uso do presente em exposições teóricas sobre o passado, como em "nesse momento, descartes decide viajar"; o uso do futuro para desculpar-se, como em, "olha, agora eu não vou ter espaguete"; o uso do condicional intransitivo ao telefone, como em: "quem gostaria?"; o uso do pronome interrogativo intransitivo, também ao telefone, como em: "de onde?"; o uso da pergunta dirigida por clientes a funcionários, para saber se eles trabalham em algum lugar: "você é daqui?"e o uso da interjeição "hã?".

domingo, 15 de maio de 2011

papoula

achei um único lugar de são paulo que ainda vende rocambole de papoula. a importação da papoula é tão dificultada pelo brasil, que a maioria dos compradores desistiu de comprá-la e, por isso, os doces famosos do bom retiro não existem mais. a papoula como recheio, misturada com açúcar e manteiga, consegue superar até o chocolate. é como um chocolate com pedrinhas que se desfazem, com um gosto que não é exatamente doce. a papoula está entre o fácil do doce e o estranho do amargo. preenche todos os espaços do interior da boca, ocupa a gengiva sem incomodá-la, espalha-se na língua e, quando chega à garganta, provoca um misto de calor e maciez robusta. a papoula restaura e sacia, além da imensa vantagem de ser proveniente da hungria. a papoula é a hungria das comidas.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

pedido

katherine mansfield, pouco antes da morte, disse: "se eu pudesse fazer um único pedido a deus, ele seria: eu quero ser real". o que é ser real? não é ser verdadeiro, porque a verdade está relacionada à moral ou à filosofia. o oposto de verdadeiro é falso e não irreal. o real está ligado à própria existência física. talvez o fato mesmo de querer ser real, ou seja, não ser ficcional, é que impeça alguém de sê-lo. querer ser real já é, em si mesmo, uma elaboração ficcional, de alguém que fabula a própria vida. será que a única maneira de ser real é não querer sê-lo?

quarta-feira, 11 de maio de 2011

metrô

a cidade da higiene, higienópolis, não quer o metrô. o metrô é subterrâneo e sabe-se lá o que pode surgir das entranhas da terra: ratos, sujeira, lama, estranhos. o estranho é o outro e os princípios de limpeza e asseio não toleram esse corpo diferente. para manter a higiene é preciso bastar-se com o mesmo.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

conselho

não saiba, não decida, não pense. seja, por um pouco, a água que se transforma em água: no rio, na chuva e no copo.

sábado, 7 de maio de 2011

azeite

como é possível que a água do banho e o gosto do azeite tenham vencido e tenham até mudado a direção da raiva que eu vinha sentindo? a sensação tem, sobre o sentimento, a força que o silêncio tem sobre a palavra. dilui e desarma.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

girafa

o elefante é o tempo. a girafa é o espaço. ele fica, ela passa. ele é, ela está. ele cresce para baixo e para os lados; ela cresce para cima e para a frente. ele pensa, ela age. ele lembra, ela esquece. ele é zeloso, ela é descuidada. o elefante diz para a girafa: girafa-espaço, pare um pouco. não fique tão agitada. a girafa não escuta direito, porque viu uma coisa interessante lá adiante e já ia naquela direção, mas responde: tempo-elefante, você pode repetir?

terça-feira, 3 de maio de 2011

anágua

minha avó tinha vergonha de se sentar porque saberiam que ela tinha bunda; nunca se viu nua, porque tomava banho de anágua; comprava um frango na segunda-feira e ele tinha que durar a semana inteira; comprava três pacotinhos de chocolate, escrevia os nomes das netas no diminutivo e nos entregava na sexta-feira à noite: stelinhu, janynhu, noeminhu; não comia nada na casa dos outros, só na própria casa; fazia doce de casca de melancia; usava corante nos bolos e eles ficavam verdes, azuis, vermelhos; só andou de ônibus até morrer, porque se recusava a pegar um táxi; guardava o dinheiro que tinha em caixas de sapatos; ria muito e gostava de rir conosco. quando a leda era bebê e ria, ela gargalhava e dizia em alemão: sie lach!

domingo, 1 de maio de 2011

música

a música é um quimono que, primeiro, vem descendo como uma pena pelo ar, envolvendo o corpo lentamente até ajustar-se em todas as dobras, reentrâncias e saliências. depois, ela mesma começa o trabalho de ajustamento e amarrações, enfeixando-se em laços, cordões e pequenos nós, até atar-se ao corpo como um paramento que já tivesse nascido conosco ou nos preparando tanto para uma festividade como para ir à padaria. vestidos de música, a certa, podemos ir a qualquer parte.