quarta-feira, 29 de junho de 2011

televisão

quando eu era pequena, montei uma televisão de papelão no meu quarto, pintei, decorei, fiz um buraco no lugar da tela e ficava do lado de trás, porque eu era a âncora de uma programação em tudo idêntica à da tv globo, só que um segundo depois. punha a televisão de verdade na minha frente e ficava horas repetindo tudinho o que eles falavam. notícias, novelas, propagandas, tudo. claro que o preço das cotas de publicidade na minha tv eram mais baratos.

sábado, 25 de junho de 2011

felicidade

ser ou não ser um gato? o gato é feliz mas não sabe que é feliz, o que, em minha opinião, é a condição para ser feliz. por outro lado, quem sabe que é feliz, não pode ser feliz, porque saber-se feliz é a primeira condição para ser infeliz. além disso, a experiência mostra que a ignorância de si é o melhor caminho para a felicidade, mas, por outro lado, o auto-conhecimento leva, segundo sócrates (mesmo que seja ao preço de saber que nada se sabe) a uma felicidade mais profunda e complexa. ou ainda, os gatos são felizes porque não sabem que o são ou são felizes porque nem são felizes, já que nem esse desejo existe nos gatos e não querer ser feliz é a única forma de ser feliz?

quarta-feira, 22 de junho de 2011

espelho

freud, sem querer, viu seu reflexo no espelho de um trem. como não esperava por aquilo, assustou-se pensando que via um velho feio e mau-humorado e mais ainda ao reconhecer que aquela imagem era a sua. a explosão de espelhos no dia a dia nos faz perder esse susto e nos habitua a uma imagem conhecida de nós mesmos. mas, de vez em quando, ainda olho espantada para dentro de um elevador e pergunto: quem é essa pessoa tão enrugada e meio esquisita? odeio os espelhos dos elevadores. por que espelhos no elevador? por que tanta luz, meu deus?

domingo, 19 de junho de 2011

coincidência

sempre me perguntam como é possível saber quando um livro é bom. respondo que boa é a literatura que consegue criar uma coincidência única entre o que se diz e a forma como se diz o que está sendo dito. mas também, acho que boa é a literatura que contém algum tipo de risco. algo está sendo posto em cheque: a linguagem, o leitor, a existência, o que já se conhece. alguma coisa vai se perder - iminência de vazio ou de morte - e/ou alguma coisa vai se criar - iminência de nascimento. a literatura que não mora na iminência não tem me interessado muito mais.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

esquecimento

tenho pensado que aquilo que se esquece é mais verdadeiro do que o que se lembra. o que se lembra é carregado de versões, conveniências, fantasia, necessidade, deslocamento e montagem. não que por isso seja menos legítimo; mas é o que a memória pode e, ao mesmo tempo, precisa. já o esquecido, não. não há como acrescentar nada ao que se esquece. o esquecido é tão verdadeiro, que precisa ser riscado a corte seco e rente. a verdade parece estar mais no vazio, num oco que eventualmente pode ser preenchido. mas a lembrança que possivelmente o preencherá já será uma verdade na justa medida do que a memória pode e quer. a verdade e a mentira são cabimentos do belo e da dor.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

imanência

mesmo conhecendo-a desde que nasci, mesmo sabendo que ela é a pessoa no mundo que mais me conhece, sempre sinto que não a conheço o bastante e que nunca vou chegar a conhecê-la. seja porque ela esconde o que pensa, porque pensa muito diferente de mim, ou mesmo, o que é o mais provável, porque quase não pensa. ela não pensa em ser ou em fazer. ela é e faz. seu mistério está em ela ser e nada é mais misterioso do que uma pessoa que é como uma coisa; imanência sem metáfora, sem mentira, estratégia ou palavras. para mim, estar com ela não é completamente fácil justamente porque é fácil demais. sou tão complicada e ela simples; simples na integridade e justeza da simplicidade. nasci de dentro dela, mas com ela algo em mim está sempre nascendo.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

sobre

sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar, disse wittgenstein. pode-se falar sobre as coisas, mas não se pode falar as coisas. e como não se pode falar as coisas, é melhor calar-se as coisas, porque quando elas falam mais é em silêncio e quando melhor as falamos é não dizendo-as.

domingo, 5 de junho de 2011

o joão disse que hoje, na feira, viu a pessoa com a orelha mais feia que existe. que o lóbulo dessa orelha tinha o tamanho de um nariz e que tinha até rugas. uma vez, no metrô de nova york, vi o pé mais feio do mundo. tinha os dedos em forma de gancho, as unhas como garras e pintadas de vermelho reluzente.aposto que a dona desse pé era, na verdade, uma extreterrestre burra, que não soube se disfarçar direito.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

arte

a arte é uma reserva técnica de inadaptação. quando o mundo, como agora, sofre de excesso de adaptabilidade, doença que vem acometendo indiscriminadamente milhões de pessoas, sem muita perspectiva de cura, alguns médicos mais sabidos recorrem à arte. algumas vezes eles ainda conseguem curar doentes, se estes não estiverem em estado terminal da doença. já se soube de casos em que até doentes considerados desenganados foram salvos nos últimos estertores. a arte não é ainda considerada um remédio infalível e há vários casos de reincidências. ainda não foram feitos testes bastante confiáveis em laboratório. dizem que quando estes testes forem finalmente realizados, infelizmente, a aplicação da arte para a cura da doença da adaptabilidade deixará de funcionar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

balada

a bia bracher, amiga querida, me deu de presente o livro balada, do nuno ramos. fiquei algumas horas dividida entre a alegria de ter o livro e a alegria de tê-lo ganhado. o tiro foi dado à queima-roupa e pode-se ver o efeito da explosão da pólvora sobre o papel. depois, a cada página (numerada), acompanha-se o efeito da penetração da bala, um buraco que vai se abrindo bem lentamente, até ir se esgarçando mais e mais para, finalmente, na página quatrocentos e setenta, encontrar-se a bala alojada. restos de pólvora vão se soltando nas páginas imediatamente anteriores e posteriores. da página quinhentos até a página mil, quando o livro termina, vão aparecendo marcas cada vez menores, como cicatrizes, até que, no final, não haja nem sombra de que houve um tiro. o livro como um corpo, as páginas como órgãos, virar as páginas como o ar que sai dos pulmões, a página atingida como a ferida aberta, as páginas seguintes como a cura, o esquecimento, a morte ou a continuação da vida. a bala alojada como uma coisa que fica guardada e que marca o local atingido definitivamente, mesmo depois de retirada.como a balada de robin hood na idade média, esta é a balada que podemos, ou merecemos ter.