quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

manejo

durante minhas breves insônias infantis e para tentar adormecer, eu imaginava uma roda gigante girando de forma cada vez mais veloz para um lado: direito ou esquerdo, não importava. quando ela atingia o máximo de velocidade, eu forçava a imaginação até conseguir fazer girá-la para o outro lado. nem sempre eu conseguia e ficava contente quando o manejo era bem sucedido. venho fazendo mais ou menos isso até hoje, com mais ou menos sucesso e empenho e, no fim, acabo adormecendo.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

neide

depois de uma viagem à california, onde tudo é tecnológico, me sinto bastante anacrônica. mas, por outro lado, vejo que lá, as últimas tendências dos usuários de tecnologia de ponta são usá-la para que tudo seja cada vez mais molecular, local, comunitário e solidário e, além de tudo, aplicado a alguma prática que reverta em serviços para a comunidade.então penso assim: enquanto os fissurados em tecnologia estão indo com o fubá, minha amiga neide rigo já voltou com dez polentas, porque é isso mesmo o que ela faz já há bastante tempo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

situação

não sei exatamente por que, mas não suporto o eufemismo, em língua inglesa, "there's a situation here", quando o falante quer se referir a algum problema que está ocorrendo. situação é, na etimologia, localização.já no uso corrente, é usada como condição, circunstância, ocorrência. por que razão esses significados todos deveriam derivar em problema? de alguma forma esquisita, é como se o próprio fato de algo acontecer já implicasse em uma dificuldade ou então como se qualquer possibilidade de conflito devesse ser evitada ou controlada. por que eles não deixam simplesmente a situação acontecer?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

feijão

jonathan franzen escreve bem. digamos que até muito bem. mas alguma coisa em seu jeito americano-esperto-rápido-engraçado-irônico-auto-depreciativo soa melhor do que aquilo de que ele fala. talvez ele precisasse falar português para ser mais lento,menos soberanamente fluente. ou talvez ele precisasse ser menos seguro de seu estilo orgulhosamente fracassado. ou talvez ele só precisasse mesmo é de comer um pouco mais de feijão.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

ônibus

precisava pegar um ônibus em berkeley. saindo de um bar, vi um sem-teto e perguntei inocentemente se passava um ônibus naquela avenida que me levasse até meu destino. ele pediu que eu esperasse um segundinho, sacou o iphone, teclou uns botões e me disse que um ônibus passaria naquele local para me levar aonde eu queria dali a onze minutos. não deu outra.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ondas

as ondas, as vagas, the waves, le vagues, las olas, die wellen, les ones, den bolger, de golven, as ondulações, as oscilações, as ondas de azar, de calor, de sorte, a onda de violência no brasil em maio de dois mil e seis, as ondas de choque, as rádios de ondas curtas, os elementos descritivos do mar, as ondas químicas, físicas e matemáticas, as ondas de raiva e de amor, as ondas, as ondas, as ondas, as ondas que eu não vi e as que eu vi ontem, entre a uma e as três da manhã,em big sur, batendo contra as rochas e formando espuma branca, as ondas se extinguem inextinguivelmente e o momento de sua extinção é o mesmo momento de sua explosão branca de beleza. as ondas ondulam. é isso o que elas fazem.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

cama

devo confessar que, até o dia de hoje, eu não sabia o que era, em toda sua aparente simplicidade, uma cama. uma cama que é preciso escalar; que tem um colchão que ao mesmo tempo restaura, cura, acolhe, aninha e recebe; com lençóis e travesseiros que acariciam e aguçam os sentidos; com uma dimensão que explica ao corpo o que e para que ele é; com uma temperatura capaz de dissolver quaisquer convicções ideológicas e estéticas. que perigo é uma cama.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

sequoias

num painel que maracava a idade das sequoias, no parque muir, vinha a marcação: novecentos ad. quatro portugueses encasacados de couro preto prestaram atenção e um deles disse, sabedor: veja, é de antes de cristo! ao que o joão respondeu: não, é depois. ad é anno domini. o português então retrucou: ah, esqueci que estava em inglês. pensei em português de portugal! mas o que é ad em portugal? antes de?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

eu

fernando pessoa, como sempre, estava certo. o melhor de viajar não é ganhar, é perder. e o que de melhor se perde, em viagens, é o eu.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

tâmaras 2

depois de comer a melhor torta de tâmaras que se pode conceber em todas as galáxias, no melhor restaurante imaginável em todo o cosmo, o chez panisse, escrevi um poema em homenagem a siew-chinn, a doceira malasiana do lugar. nele, brinquei com os três significados da palavra tâmara em inglês: date (data), date (encontro) e date (tâmara). levei o poema até ela, para agradecê-la pela graça alcançada. ela se emocionou, nós nos olhamos por alguns segundos, as duas ameaçando se aproximar uma da outra e finalmente nos abraçamos e nos beijamos. ela pendurou o poema no mural e me perguntou, timidamente: você gostaria de um pedaço da torta? diante do meu espanto afirmativo, ela cortou o equivalente a meia torta e me deu. ela me deu a torta. ela me deu a torta. ela me deu a torta.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

tâmaras

a torta de tâmaras que eu comi hoje não é mais do que uma torta de tâmaras, como se diria no caso de algo excepcional, espetacular, maravilhoso. não. nada disso se aplica a ela. predicá-la seria ficar aquém do que é o sabor uno e íntegro de uma coisa que, por ser somente o que é, é mais do que se pode dizer dela.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

bonde

hoje, no bonde de san francisco, sentamos no mesmo banco uma senhora bem velhinha da georgia, na rússia, moradora de washington, sua filha também russa, um oncologista holandês que veio para um congresso aqui nos estados unidos e que mora na bélgica e eu, uma brasileira filha de sobreviventes de guerra iugoslavos. um carro parou em fila dupla e o bonde teve que parar para esperar o carro ser rebocado. enquanto esperávamos, o motorneiro, um americano forte e estiloso que mascava chiclete, disse: agora fiquem todos quietos; eu preciso relaxar. nosso pequeno mundo do bonde ficou em silêncio e o motorneiro relaxou.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

agnés

agnés varda é um elefante caminhando altivo e certo numa cidade de vidro, sem nada nunca derrubar. é uma cigarra cujo canto não a faz fenecer. é uma andorinha que, quando capturada pelo gavião, convida-o para um voo de trajetos curtos e fulgurantes e o distrai da predação. é só uma minhoca que está no seu quintal e que, com um pouco de descuido, você inopinadamente esmaga. não tem importância. ela reaparecerá: na sua janela, na escova de dentes, no rosto daquela mulher da padaria.