sexta-feira, 30 de março de 2012

objeto

é preciso que um extrato da ideia de verdade não seja relativo. não se pode relativizar tudo, sob pena de que, assim, nada tenha substância. e o aspecto absoluto da verdade está sobretudo na coincidência entre sujeito e objeto. se estou, sem saber como estou, por que estou, nem mesmo se estou, e mesmo assim estou completamente, então estou verdadeiramente.

segunda-feira, 26 de março de 2012

dois

penso que talvez os pequenos poderes sejam tão nefastos quanto os grandes, ou quem sabe até mais. o dono de um pequeno poder, como um secretário de repartição, um funcionário de baixo escalão ou mesmo um escritor, é capaz de interpor dificuldades às práticas mais simples e descompromissadas, para, entre outras coisas, vingar-se de seu poder ser tão pequeno. um atendente de uma grande rede de drogarias pode, por exemplo, recusar uma receita, porque está faltando, no ano de dois mil e doze, uma perninha no número dois.

sexta-feira, 23 de março de 2012

estrela

thor é filho de odin, o deus supremo de asgard, e de jord, a deusa de midgar. ele dispara relâmpagos com seu poderoso martelo mjolnir. thor não leu a hora da estrela, de clarice lispector, porque ele só gosta de disparar relâmpagos com seu poderoso mjolnir. wanderson é filho de ana e josé. ele não tem um martelo mjolnir, não consegue disparar relâmpagos e também não leu a hora da estrela.

quarta-feira, 21 de março de 2012

nicholas

encontro o nicholas por acaso tantas vezes por ano, que nós sempre combinamos de nos ver no próximo acaso, que sabemos ser iminente. ontem nos encontramos no mesmo vagão do metrô, quando os dois íamos para as respectivas reuniões e, para espanto até dos deuses, também na volta. quando a beleza em si mesma (aquela de platão) tropeça sem querer numa nuvem e deixa escapar um suspiro, aqui, no mundo sensível, ocorrem os acasos recorrentes e, nesse momento, somos como espectadores, sujeitos e objetos de um tipo de brincadeira do belo.

segunda-feira, 19 de março de 2012

ela

duas atitudes completamente distintas diante da vida se revelam nas respostas "sou eu" ou "é ela", à pergunta "fulana está?", dita ao telefone. não compreendo muito bem o que significa o eu que responde "é ela". é alguém que trata a si mesmo como o outro do interlocutor que o procura ao aparelho. como se, neste momento, o eu abandonasse sua casa e se tornasse o receptor impessoal de alguém que o busca. logo depois dessa resposta vicária, entretanto, o eu retoma a conversação e assume seu posto: "oi, eu posso ir ao cinema; eu estou almoçando" etc. qual é o momento da passagem do ela para o eu? o quanto não há de medo na recusa do eu em dizer "sou eu", como se ao revelar-se assim cruamente, o eu se expusesse ao desconhecido?

sexta-feira, 16 de março de 2012

aniversário

se você tenta, se você enfrenta, se você inventa, se você é briguenta, se você come menta, se você arrebenta, se você se contenta, se você é ciumenta, se você aumenta, se você condimenta, se você cumprimenta, se você se aposenta, se você é desatenta, se você arregimenta, se você cimenta, se você é cinzenta, azarenta, atenta, cruenta, barulhenta, avarenta, nojenta, fedorenta, molambenta, fraudulenta, truculenta e sonolenta, enfim e por tudo, se você quarenta e nove, você cinquenta.

quinta-feira, 15 de março de 2012

conta

o pai de gustav viu que a conta de luz estava muito alta, foi verificar e descobriu que o filho ficava escrevendo sob a luz do abajur até altas horas da noite. furtou os poemas do filho, ditou, mandou datilografar, imprimiu e entregou para seu amigo da corretora de seguros ler. o amigo também escrevia e devia entender aquilo. o amigo era franz kafka. o pai de gustav o levou para conhecer franz. no primeiro encontro, com gustav muito tímido, kafka, para quebrar o gelo, disse: não se preocupe, minha conta de luz também é altíssima.

terça-feira, 13 de março de 2012

luz

quando acaba a luz e cessam os barulhos dos aparelhos elétricos, como a geladeira e o freezer, a qualidade do silêncio noturno é diferente e começam a se ouvir os sons dos insetos, dos grilos, dos pássaros ainda acordados, que provavelmente estranham a ausência dos barulhos habituais. a consciência é o barulho da geladeira, que fica lá, imperceptível, dando um contorno preciso e cansativo aos nossos pensamentos. no sono é como se acabasse a energia e os pensamentos ultrapassassem esses rijos contornos e se diluíssem no mundo líquido e gasoso dos sonhos, dos grilos e dos passarinhos acordados em hora errada.

sábado, 10 de março de 2012

presídio

ontem, saí do presídio feminino, depois de uma aula para as presidiárias e, do lado de fora, dentro do espaço assim chamado livre em que vivemos, senti que lá também é um dentro. lá é o aqui da luzia, da janete, da rose, da mônica, da joelma e de mais onze meninas que me ensinaram que, que me ensinaram que, que me ensinaram.

quinta-feira, 8 de março de 2012

dislexia

benedito e inês eram só duas palavras, provenientes das expressões "será o benedito?" e "inês é morta". mas, numa ocasião, alguém os quis pronunciar em sequência e, durante o encontro na língua, antes de serem emitidos para o ar, para nunca mais, as duas palavras se apaixonaram, assim, como num esbarrão. recusaram-se então a serem emitidos pela pessoa que, sem entender nada, não conseguia pronunciar aquelas duas palavras, que não saíam mais de dentro da boca do sujeito. enrolaram-se ali mesmo e ali ficaram. o resultado disso é que o indivíduo ficou disléxico destas palavras e foi daí que surgiram as expressões, ainda não utilizadas em português, "será a inês" ou "benedito é morto". mas aguardem, porque assim que as duas palavras se reproduzirem, todos estarão, como que do nada, falando estas expressões por aí.

segunda-feira, 5 de março de 2012

anistia

então vão anistiar os desmatadores que têm dívidas acima de um milhão de reais. pois ficamos assim. anistiem também: os torturadores, os trituradores, os tratores, os terrores, os tremores e depois adquiram amnésia, que é de onde vem a palavra anistia, e esqueçam-se a si mesmos.

sábado, 3 de março de 2012

lego

era uma vez três categorias: o índio, o lego e o superlego. o índio era, por sua natureza, selvagem e livre. o superlego, também por natureza, só queria saber de cálculos e montagens complicadas. o lego buscava manter o equilíbrio entre os dois, propondo montagens difíceis, mas prazerosas. no entanto, mesmo com essas diferenças, o índio e o superlego acabavam se dando bem, porque o índio era ótimo na montagem de grandes desafios propostos pelo superlego que, por sua vez, também era excelente nadador e caçador. o lego então ficava, durante muito tempo, quieto, só observando o índio e o superlego brincando: ou de desmontar as caixas ou de atirar pedrinhas um no outro.