terça-feira, 31 de julho de 2012

letra (post hesitante)

é claro que é absurdo idealizar o não letramento do sertanejo mais velho e relacionar diretamente a isso sua sabedoria sobre a natureza e a existência. mas algo que percebo é que, com a aquisição do letramento, adquire-se também uma espécie de figurativização do real que diminui a capacidade de integração orgânica entre a imaginação, a inteligência e os sentidos. o mundo passa a ganhar contornos letrados, as coisas passam a ganhar significados mais claros e definidos. tudo recebe limites. é o destino da letra e do pensamento representativo. acho que os responsáveis pelo letramento das crianças deveriam, cada vez mais, levar em conta possibilidades de integrar o pensamento mágico - sem limites, não representativo, alógico - ao ensino do alfabeto e dos significados das palavras. tenho medo de que, num mundo de correspondência unívoca entre significantes e significados, percam-se os sacis, as uiaras e as simpatias sem pé nem cabeça.

domingo, 29 de julho de 2012

morada

por que, em inglês, viver e morar são ambos traduzidos por "to live"? será que a tradição anglo-germânica protestante os fez acreditar que não é possível viver sem morar? como é opressora essa fúria aplicativa da língua. deixa, deixa, deixa as pessoas viverem sem morar um pouquinho.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

novidade

enquanto herdeiros e pseudo-herdeiros de marshall mcluhan se debatem atrás do que fazer para lidar com a quantidade de novidades que surgem a cada minuto, o pretinho, aqui de morro da garça, resolveu melhor: o jornal pode ser de uma semana, até de um mês atrás. se eu não li, ainda não aconteceu. uma coisa é sempre nova enquanto a gente não lê. só depois que a gente lê é que ela fica velha.

domingo, 22 de julho de 2012

dezessete

o antropólogo islandês eiour smari guojohnsen descobriu, após longas e profundas pesquisas, que, numa ilha a noroeste da islândia, de nome asgrims, os habitantes não estabelecem as divisões da natureza e do mundo a partir de pares, como fazem todos os povos da terra, mas a partir de grupos de dezessete. assim, se alguém deseja tomar um banho, há dezessete e não duas ou três gradações, como frio, morno e quente. as temperaturas variam em: extremamente gélido, altamente gélido, gélido, extremamente frio, muito frio, frio, na passagem de frio para morno, quase morno, morno, na passagem de frio para quente, quente, muito quente, extremamente quente, pelando, altamente pelando, extremamente pelando e em estado de fogo. da mesma forma, estabelecem-se graus para o dia e a noite, a confiabilidade de uma pessoa, a madureza de uma fruta, a qualidade de um alimento. eiour relata que a comunicação, em função dessa divisão, é tão lenta e trabalhosa, que os habitantes de asgrims preferem permanecer calados a maior parte do tempo. parece que essa é uma das razões por que eles parecem sempre tão satisfeitos.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

regência

de vez em quando, mudar algumas regências verbais (aliás, a própria palavra regência deveria ser mudada, já que o verbo não é o rei das palavras): libertar-se em e não libertar-se de; viajar algo e não viajar em ou por algo; apaixonar alguém e não apaixonar-se por alguém; sonhar algo e não sonhar com algo; você me gosta, querendo dizer que eu gosto de você, como no francês ou no espanhol (tu me plais, esto me gusta); você me falta, querendo dizer que eu sinto sua falta, como em francês (tu me manque) e, finalmente, e sem vergonha, deslocar alguns pronomes repressores: nada de "eu o amo". já que é para dizer, digamos logo: "eu amo ele".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

trusva

como ela exglitasse tuito, astroveu não ploncar. não persocou. rasminhou, inblorteu, casblintiu e ploste. ascontante prislo, chuntrou as praisgas e foi cloca. isso sempre acontece, não plosco tormê.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

mania

os obsessivos que me perdoem, mas não tenho paciência para manias. não gosto quando se dá importância a fazer as malas assim ou assado, à forma como se dobra a calça, ao jeito de se pendurar a blusa, ao lugar onde fica o vaso. talvez seja uma interpretação rasteira, mas me parece que as manias são enxertos medrosos da morte dentro da vida; espécies de congelamentos, tentativas de fixar a dinâmica da vida, que é sempre imprevisível e desorganizada.

sábado, 14 de julho de 2012

eu

eu mandou ver se eu estava lá na esquina. eu foi e não o encontrou. quis voltar. mas eu não suporta mais eu, que interfere em tudo o que eu faz; eu opina, quer e, o que é pior, acha. eu acha sem parar. quando alguém diz qualquer coisa sobre si, eu quer dizer também. e eu simplesmente não aguenta mais isso. por favor, eu, vá ver se eu está lá na esquina e se eu não estiver, vá para outra freguesia, esqueça que eu existe. deixa eu em paz.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

entretenimento

perguntaram a jonathan franzen se a função da literatura é entreter. com ressalvas, ele acabou dizendo que sim. costumo atribuir a esta suposta "função" da literatura o papel de algo menor; digamos que inevitável. digo que sempre prefiro o perturbador ao divertido. mas se entreter, divertir e deleitar forem entendidos etimologicamente, como "manter entre", "desviar-se" e "obter delícia", então tudo muda. a literatura é mesmo o que nos mantém entre dois lugares: não somente no ficcional (o que seria o entretenimento menor),mas também no real. a ficção nos lança de volta ao real de maneira nova, esquisita, outra. é também o que nos desvia do conhecido e que, com isso, com essa localização fronteiriça e esse estranhamento, nos delicia.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

violão

logo que conheci o joão, me apaixonei, entre outras coisas, pelo fato de ele tocar violão tão bem. no mesmo ano lançaram, na rádio eldorado, um concurso para ganhar um violão igual ao que o gilberto gil tocava na época. mandei umas cinquenta cartinhas. como era proibido um mesmo nome concorrer mais de uma vez, pedi que todos os meus conhecidos enviassem. e um dia, no rádio, escutei: o vencedor do concurso "ganhe o violão de gilberto gil" é noemi jaffe. exultei por ganhar o violão e por ouvir meu nome na voz daquele locutor. o ganhador teria direito ao autógrafo de gil no próprio violão, algo que já nos constrangia só em pensamento. recusamos o autógrafo. o violão também não era lá essas coisas, mas como foi bom.

terça-feira, 3 de julho de 2012

pingo

o pingo está bem velhinho, surdo, meio cego, fraco das pernas e um pouco esclerosado. fica andando sem parar, pra lá e pra cá, desgovernado e carente. quando saio para a rua, fico pensando nele dentro de sua casinha. provavelmente, ele não está pensando em nada e nem sofrendo. mas ele está lá e tem um ser, algum tipo de individualidade só sua. o que o constitui? como é o seu ser velho? como estar junto de sua solidão velha e atendê-lo nas necessidades que ele mal sabe expressar, além de olhar e andar? a velhice explode como a condição de um eu vazio, como que pedindo: seja por mim. sua velhice me faz pensar na minha.