quinta-feira, 30 de agosto de 2012

arroz

é melhor: um abraço do que o amor; um sim do que a verdade; um papagaio do que a natureza; um olhar do que a honestidade; uma panela de arroz do que a solidariedade.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

ar

na idade média, dividiam-se os humanos de acordo com o líquido que predominava em seu organismo. eram o humor vermelho, o amarelo, o negro e o branco. para cada humor, um tipo de personalidade: a colérica, a melancólica, a mórbida e a apática. já meu pai, em tudo mais prático, facilitou as coisas: quando não gostava de alguém por considerá-lo apático, dizia que a pessoa era luft inspektor, ou inspetor de ar.

sábado, 25 de agosto de 2012

amarelo

no fundo, no fundo, mas bem no fundo mesmo, não há nada. a grande verdade de uma alma, o segredo único de uma obre de arte não existem. superfície e fundo se misturam permanentemente, em processos de sobredeterminação contínua. uma mania, coçar o dedo, por exemplo, não revela ansiedade ou o que quer que seja. coçar o dedo está relacionado a algum traço da psique que nunca poderá ser isolado. da mesma forma, a psique também se deixa moldar pela coceira do dedo, que passa a transformá-la. o grande segredo, mas o misterioso e único segredo do amarelo de van gogh é ele ser amarelo. além disso, mais nada.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

halteres

na rádio ouço a propaganda de uma escola "forte". uma criança diz que é forte em matemática, outra em desenho e outra em português. ao final, o texto diz que a escola é forte em ensinar. por que chegou-se a essa ideia nefasta de ensino forte? por que associar conteúdo a força, já que escola forte é aquela que "puxa" no conteúdo? por que não pensar em escolas que ensinam os alunos também a serem fracos quando necessário? onde a ideia de que conteúdo não é halteres?

sábado, 18 de agosto de 2012

espera

eu sou a espera. estou: no botão da sua camisa; nas cerdas da escova de dentes; na borra do café; na composição química do remédio; no pé de ameixa; no bico do papagaio; no poliestileno; na bola de ping-pong; no seu pé.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

bugiganga

as palavras que designam coisas sem importância são bem mais interessantes do que as palavras que designam coisas sérias e solenes. senão, comparem-se: bugiganga, quinquilharia, cacareco, bagatela, inânias, és-não-és, questiúncula e rebotalho com, por exemplo, ponderação, monta, notabilidade, substância, ênfase, relevo, gravidade e urgência. como são pobres as palavras importantes.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

agá

por algum mistério etimológico, em português a diferença entre o estado de repouso fisiológico - o sono - e a produção fabular do inconsciente - o sonho - é somente de uma letra, o agá. que lindo que seja justamente essa letra, muda mas determinante, símbolo gráfico da aspiração - apenas um sopro - que marque a diferença também mínima, mas essencial, entre o sono e o sonho. e que bom também que acasos históricos, culturais, linguísticos tenham abençoado o português com essa sutileza.

sábado, 11 de agosto de 2012

isso

rema, rema, rema, meu barquinho/ gentilmente pela corrente/ alegremente, alegremente, alegremente, alegremente/ a vida é só um sonho. pronto, é isso.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

ciúmes

jealous vem de zeal, que significa a não tolerância à infidelidade, no sentido religioso. em espanhol, jealous derivou em celoso e, em português, zeloso. o ciumento é, na verdade, um zelador, possessivo (outro significado original de jealous), que toma conta de seu território. a palavra gelosia, ou persiana, também está relacionada aos ciúmes, porque era atrás delas que se guardavam as mulheres das vistas alheias. celoso derivou em cilume, que acabou no nosso ciúme que, aliás,além de considerar um dos sentimentos mais nocivos da psique,não sei quando é ciúme e quando é ciúmes.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

saída

a grande glória de dizer solenemente que a vida não tem saída. oh! que coragem! isso, na verdade, é nada mais do que um escudo poderoso para justificar sofisticadamente o egoísmo, tornando-o algo maduro. vamos, aproveite seu egoísmo, porque eu afirmo do alto de meus diplomas que a vida não tem sentido. pois olhe aqui: que a vida não tem sentido nem saída qualquer monge budista, qualquer padre de paróquia sabe. mas é isso justamente o que deveria explicar nossa louca oscilação entre buscar o nosso bem e buscar o bem comum, que, aliás, não são excludentes. quem sabe que as coisas não têm mesmo sentido e ainda assim luta por algum ideal (mesmo que tosco e tonto), é muito mais genuíno, efetivo e capaz de realmente agir do que os irônicos desdenhadores do bem. o que eles fazem é auto-ajuda para quem diz que não gosta de auto-ajuda.

sábado, 4 de agosto de 2012

ludwig

a viúva de schiller foi visitar um conservatório em colonne. o professor disse a ela que havia lá um aluno completamente obcecado pelo poema ode à alegria, de seu falecido marido. a esposa foi conhecer o jovem ludwig que, emocionado, lhe prometeu que escreveria algo grandioso em homenagem àquele poema. imaginar a iminência da nona sinfonia, a quase existência do que já existe e que dá sentido à vida, é da ordem do maravilhoso.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

fronteira

à noite, na imensidão de uma vigília súbita, sobrevém uma angústia sem nome nem substância. ela se confunde com a noite, com as manchas da luz, com o sonho recente que já está se desfazendo. ela é a moradora adormecida da minha alegria; dela minha alegria se abastece. enquanto estou bem acordada, a angústia dorme. quando durmo, muitas vezes ela acorda e me sustenta. mas na fronteira inadvertida entre dormir e acordar, ela se avoluma. aperto o travesseiro.