sábado, 29 de setembro de 2012

siso

siso é sinônimo idêntico de juízo. e não é à toa que às pessoas carrancudas, austeras, chamam também de sisudas. são, etimologicamente, pessoas ajuizadas. e o juízo é mesmo portador e credor da rabugice. não tem nada a ver com o conhecimento, a sabedoria, a inteligência. ao juízo, ao siso, prefiro a graça desajuizada.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

asa

você se esqueceu de colar a asa daquela xícara que quebrou já faz dois meses, e que está separada no peitoril da janela da cozinha.você não tem ideia, mas disso depende muito: a continuidade da procriação das baleias orca no sul de santa catarina, o relacionamento conjugal malparado do vizinho da esquerda, o sopro do apito do guarda que fica na francisco morato com a vital brasil e o café que nunca dá certo no escritório torres & torres, no centro de vitória. corra, pegue um tubo de cola e vá consertar aquela asa.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

tão

gosto do bonito, não do belo; do difícil, não do complicado; do simples, não do fácil; do verdadeiro, não do real; da mentira, não do falso; do longe, não do distante; do perto, não do próximo; da procura, não da busca; da paciência, não da espera; de estar sozinha, não da solidão; da tolice, não da burrice; da inteligência, não da esperteza. mas nada disso é tão categórico assim.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

t3

hérnia vem de hirnia, que significa ruptura. mas, antes disso, a palavra vem de yarn, que é fio e, por derivação, entranha. derivando ainda mais, o corte no fio virou ruptura na entranha, ou as hérnias atuais: de disco, na lombar, no esôfago, inguinal. em inglês, to spin a yarn, ou girar o fio, é metáfora também para contar uma história, porque essa era certamente uma das coisas que os tecelães faziam enquanto manuseavam o tear. posso pensar, portanto, que uma hérnia é um tipo de pausa narrativa, bloqueio criativo, travação geral. faz uma semana que essa maldita me acompanha na altura das misteriosas t3 e t4.

sábado, 15 de setembro de 2012

real

atenção, atenção, você, que está perdido, angustiado, tenho a resposta para uma de suas perguntas mais difíceis! eu sei o que é o real! o real é: o ardor da pimenta, o pelo do gato,o frescor do vento, a raiva do vizinho, a inveja da moça mais bonita, a paranoia, as falsas impressões, as opiniões contraditórias, o desejo de ajudar alguém desconhecido, o desejo de esgoelar alguém conhecido, os elefantes cor de laranja, o buraco negro, o homem que cospe coelhos no conto do cortázar, o pipoqueiro que mora numa mansão aqui do lado da minha casa e o outro que pescou um peixe de trezentos quilos num riachinho de um bairro da periferia.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

nariz

ele tinha um nariz enorme. daqueles tão tipicamente judeus, que justificava todas as piadas sobre narizes. por cima do lençol que o cobria bem rente ao corpo, eu acompanhei o desenho do seu nariz, cujo perfil se delineava com perfeição. enquanto eu mantiver na memória esse contorno, enquanto eu sentir nos meus dedos o relevo daquele nariz, ele vai continuar vivo comigo. não é muito, mas é muito mesmo assim.

domingo, 9 de setembro de 2012

casamento

ahã,ela disse e eles foram para o lugar onde ainda se fala ngarrindjeri, uma língua aborígine do baixo rio murray, onde se brinca com os leões marinhos e onde existe um poema de amor que diz assim: flutuar, flutuar, flutuar; peneirar, peneirar, peneirar; atravessar, atravessar, atravessar; cabeça, cabeça, cabeça e é o jeito que os ngarrindjeri têm de pedir em casamento.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

chiça

tenho tamanho desprezo por essa pessoa, que me recuso até a dizer seu nome. acontece que, ao recusar-me a isso, dou a ele uma importância que ele não tem. mas, se para não lhe dar essa importância, digo o nome, sinto minha boca se sujar. o nome cola na língua, gruda na gengiva. preciso encontrar um apelido à altura de sua pequenez, sem que isso dê a impressão de que ele é desprezivelmente importante para mim, ou importantemente desprezível. seu apelido, portanto, a partir de hoje, será "reles". e quando eu ouvi-lo falando ou tiver que ler o que ele escreve, direi: vá à fava! vá bugiar! vá à tabua! uxte! chiça! fu! cebolório! irra! passa fora, reles!

sábado, 1 de setembro de 2012

ausência

ideia para resolver uma ausência de ideias para escrever: olhe para sua esquerda. qual é a primeira coisa que você vê? eu vejo um interruptor. vá ao google e pesquise: interruptor. eu fui e encontrei um site com o título: "onze modelos de interruptores com diferentes funções". uma frase diz assim: "é o futuro dos interruptores na sua casa". pensei como é triste que os interruptores tenham um futuro e que ele venha parar na minha casa. também pensei que interruptor é aquilo que interrompe a passagem de energia. então pronto. já tenho o começo do meu conto: "um pequeno fluxo de energia vinha passando em seu movimento aleatório habitual, quando foi subitamente interrompido e redirecionado para um bulbo metálico. era o futuro e o fluxo se entristeceu."