quinta-feira, 27 de junho de 2013

queixo

o dia: essa luz. o ar: esse céu. a temperatura: frio, não muito. o sono: contínuo. o olhar: queixo paralelo ao chão. os ombros: para baixo. a barriga: ok. o pão: centeio. o café: quente. o trabalho: feito. a roupa do filho: jogada na cama. a cama: recém desfeita. o controle remoto da tv: jogado no chão. seis livros: empilhados. um livro novo: zuca sardan. mãos: dois machucados. hoje: bom.

terça-feira, 25 de junho de 2013

carretel

um pequeno objeto: uma bolinha de gude, um botão de camisa, uma faixa amarela para indicar: não quero briga. será que dava? um alfinete? um carretel?

sábado, 22 de junho de 2013

realidade

não é o prazer que está em jogo nas ruas, por mais prazeroso que seja participar de manifestações. é o princípio de realidade, que consiste, segundo freud, justamente na capacidade de suportar o adiamento do prazer. é preciso forjar e ativar em nós mesmos todos os mecanismos de maturidade para continuarmos a buscar objetivos claros e não inconsequentes. manifestar-se para poder manifestar-se é legítimo e é um objetivo, por exemplo. mas não para exibir superioridade intelectual, capacidade de cuspir ironias finas, fazer passeatas melhores do que outros, competir para ver quem é mais de esquerda ou mais coerente. crianças eternas: está na hora de crescer.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

vozes

manuel bandeira na manifestação: minha virgem santinha, paciência com esses homens tristes que batem nas moças bonitas. drummond: as botas do mundo enxergam esses tornozelos férteis. cabral: na fachada de vidro no banco, a multidão pela luz tanto, refrata à vista o alcance. caymmi:gente na rua, por exemplo, é bom. murilo mendes: no asfalto copado das sirenes lentas/ pisam umas vozes claras. clarice: ela gaguejou: era aqui o mundo? marcelino: mãe, fiz o que a senhora pediu, mãe, não quis brigar não, a senhora sabe, mas aquele um, o comandante, ele, quis me humilhar, mãe, e a senhora me conhece, quando tenho raiva, mãe, não enxergo direito. fabrício corsaletti: o povo unido é gente pra caralho/ era o que acontecia/ mas não fui eu que falei isso/ e sim a nara maria. e.e. cummings: life is a but is there a yes with three twenty?

domingo, 16 de junho de 2013

caqui

esses aventais, esses pães, esses fermentos
o caqui no ponto,
que não pega na gengiva.
o verbo pegar com esse sentido.
a cor laranja e os dois tons,
na casca e na polpa.
os óculos sobre a mesa.
o pão não cresceu.
o avental está sujo.
está tudo bem.

sábado, 15 de junho de 2013

ovelhas

as ovelhas são, parece, os animais mais antigos a terem sido domesticados pelos humanos e contribuíram decisivamente para o processo civilizatório, devido à possibilidade que oferecem de extração de lã, leite e carne, além da própria urina, que pode ser utilizada para finalidades curativas e cosméticas. além disso, são dóceis e gregárias, prestando-se facilmente ao pastoreamento. mas (ou além disso, ou apesar disso, ou felizmente) em todo rebanho há, inevitavelmente, as ovelhas desgarradas, indivíduos que, segundo é conhecido, "só pensam em si, sem consideração ao rebanho". recusam-se à obediência. são ovelhas - dóceis e gentis - mas, por algum mistério inexplicável, desviam-se do grupo. "mas que ovelhinhas safadas", disse aquela senhora, indignada.

terça-feira, 11 de junho de 2013

preguiça

a síntese da ética de píndaro é: torna-te o que tu és. o pecado capital conhecido como preguiça é só uma simplificação de acídia: a acidez moral que entedia a alma e impede o ser de tornar-se o que ele é. tornar-se o que se é significa agir melhor, porque é sempre agir tornando-se e não repetindo-se e o que se torna, melhora.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

nascituro

uma mulher não pode. onde fica ser mulher? onde está uma mulher? quem amou, quis, penetrou, estuprou essa mulher? ela espera um filho. ela concebe. ela dá: à luz, a buceta, a bunda. uma mulher se come. ela sabe a quê? ela é gostosa. o filho que ela espera é um menino. ela não sabe que espera um filho. está embaraçada. tem regras. não pode fazer amor nas regras; é suja. quem fez amor com ela? o filho que ela guarda na barriga a matou. ela está mortinha da silva. vai trabalhar cedinho de manhã. ele não se importa. vai matar a mulher que o carrega. ela sente enjoo e fica quieta. ninguém pode saber que ela está grávida. só o nascituro a observa de dentro do ventre e não sorri porque ainda não está vivo. ela chega em casa e esta só. olha para a geladeira e está só. pensa na solidão do seu abajur. o nascituro não a avisa que ainda não vive. agora ela está dormindo. façam silêncio porque ela dorme.

domingo, 2 de junho de 2013

mia

a mia é levemente vesga. emite miados longos para comer,  agudos para passear, graves e explosivos quando aparece em minha cama com um grilo ou uma mariposa e curtos e repetitivos quando faz manha. é educada. quando quer sair e a porta do quarto está fechada, espera que eu acorde, em posição semi- alerta, num canto estratégico do quarto, para então pedir. é curiosa e trepa na janela para ver o que acontece lá fora. se há algo interessante, instala-se no peitoril, atrás da persiana e fica, por mais de hora, observando. no frio, esfrega seu rosto em meu casaco até vir aninhar-se em meu colo, não sem antes testar com as patas o grau de fofura da minha barriga, amassando-a como se mamasse. então ronrona levemente, como um motor de barco e vai se achegando até deitar, em estado de relaxamento completo, com uma pata para fora do colo e outra sobre os olhos. nesses momentos, geralmente estou ocupada ou quero ir ao banheiro, mas não me levanto mais, para não incomodá-la. então sinto o calor que ela emite, ouço o som da sua respiração e durmo.