domingo, 28 de dezembro de 2014

terra

em três dias, a terra recomeçará seu giro em torno do sol. ao longo desse ciclo novo, ela girará em torno de si mesma mais trezentas e sessenta e cinco vezes. enquanto isso, a cada quilômetro a mais desses giros, alguém girará a torneira de sua casa para lavar o rosto; alguém se preparará para morrer; alguém ainda não terá nascido; alguém descobrirá uma nova fórmula para curar doenças do fígado; alguém não terá ninguém a quem chamar numa noite solitária; alguém ficará alegre só de ouvir um anúncio numa televisão; alguém assistirá, sozinho, a um filme velho num cinema decadente; alguém caminhará por um tapete vermelho e, sem querer, esbarrará no sapato de outra pessoa, ao que dirá, sinto muito; essa outra pessoa dirá, constrangida, não foi nada, imagine; alguém espantará um inseto no alto de uma montanha, aonde terá chegado depois de meses de preparação. quantos quilômetros a terra, nesse trânsito, já terá percorrido? quantos faltarão, no minuto em que alguém apagar a chama de um fogão em jacarta, em que um grão de milho de pipoca estourar em brunei, para que ela novamente volte até aqui, até esse ponto do teclado onde se digita esta letra e recomece outra vez, numa caminhada incontornável, seu próximo giro em torno de si mesma e em torno do sol?

domingo, 21 de dezembro de 2014

capital

rejkjavik! meu pai girava o disco de papel que tinha todos os países e as capitais e me perguntava; itália? roma. frança? paris. então ele ia para os mais difíceis. bulgária? sofia. romênia? bucareste. equador? quito. ele se animava, orgulhoso. indonésia? jacarta. áfrica do sul? johanesburgo. mas nunca vou esquecer do sorriso dele quando, apostando alto e com medo da dificuldade que me impunha,  ele perguntou a capital da islândia.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

presente

um presente é a atualização de um passado que retorna sob a forma de um objeto doado: um dom, uma dádiva. por isso, é claro, a coincidência entre a conotação temporal e da oferta ritualística: em aniversários, ocasiões de celebração, nascimentos, casamentos. para cada dom, desinteressado mas obrigatório, um compromisso, um selo: sou para você e você é para mim. estamos juntos em aliança. desejo que, neste natal, haja mais presentes presentes.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

conteúdo

o conteúdo é mais mole que a forma. se você partir do conteúdo, para escrever ficção, como ele é muito maleável, ele vai se encaixar em qualquer lugar, de qualquer jeito, porque tudo o que ele quer é dizer o que ele quer dizer. ele é teimoso e quer porque quer dizer aquilo. preto, branco, retangular, redondo, alto, baixo, rápido, devagar, tanto faz. já se você partir da forma, a coisa muda de figura. a forma é inflexível, ou quase. para poder usá-la bem, não é de qualquer jeito não. é preciso forjar o conteúdo à sua semelhança, fazê-lo render-se e configurar-se a ela. só assim ele começa a perder a teimosia do "quero dizer aquilo, por favor me deixa dizer aquilo vai" e começa a dizer o que a língua quer que ele diga. e aí, ah, e aí, surge cada coisa que nem sei.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

inverno

o que eu lembrei sobre ele, anteontem, quando ele faria oitenta e nove anos, foi dele cantando, no carro, uma canção desconhecida, mas que começava com as palavras "shnatse ha winter". não sei se era isso mesmo, mas ele me disse que queria dizer " o inverno está chegando", e ele entoava essa música toda vez que alguma coisa triste se anunciava. sei que essa canção me fez sentir muitas vezes culpada, porque eu tinha certeza de ser a causadora do inverno que se aproximava. agora, quando lembro dela, e dele, o inverno outra vez se avizinha mas, infelizmente, não sou mais eu a provocá-lo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

escândalo

até que ponto, quando nos escandalizamos - por razões morais, ideológicas, profissionais, éticas, políticas - vai o mérito supostamente moral, ideológico etc. do escândalo e até onde vai o desejo de humilhar, vencer, vingar-se, emboscar? até onde a proteção das supostas vítimas e até onde a defesa contra pulsões subjetivas? creio que é impossível saber este limite. por isso, acho melhor calar-se e deixar que cada uma das partes escolha seus caminhos de reflexão e de ação. escândalo vem do grego: "armadilha para o inimigo" e escandalizar-se, penso, nunca perde esta dimensão.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

enxaguador

sempre batemos longos papos enquanto ele está fazendo bochechos com o enxaguador bucal, que é um nome feio para aquilo-que-a-gente-usa-depois-de-escovar-os-dentes. ele começa a contar sobre o dia, fazendo sons e gestos e eu tento adivinhar. erro muito, ele reclama, fazendo "hum, t, t" e eu modifico as previsões, até eventualmente acertar ou, melhor, fazer um erro engraçado, o que quase o faz cuspir o enxaguador. ele gosta de ficar uns três minutos com o negócio na boca, o que valoriza muito a conversa. eu não, fico só uns sete segundos bochechando e, por isso, não conversamos tanto quanto poderíamos.

domingo, 23 de novembro de 2014

chão

indígena significa "de dentro da origem", "de dentro da produção", "de dentro do nascimento". somos todos indígenas, portanto. se o governo continuar violando as terras dos índios, roubará de cada um de nós nossa origem e ficaremos, mais do que já somos, perdidos. cada índio em sua terra é, para cada um de nós, um lugar. eles somos nós e tirar o que é deles e roubar-nos o chão.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

cuidado

o cedeefe que não passa cola. o vizinho que conta para o síndico a hora que você chegou. a pessoa que rouba a tua vaga, quando você já a tinha localizado e estava esperando por ela. o cara que não dá esmolas porque os mendigos bebem. todo aquele que salvaguarda os bons costumes. todo aquele que usa impunemente a palavra "salvaguardar". o chefe que, dando muitas broncas, acha que aprimora seus funcionários. aquele que pensa que "cada macaco no seu galho" e "cada um com seus problemas". cuidado! fique atento! ele pode estar te observando, bem próximo de você!

terça-feira, 11 de novembro de 2014

haddad

alguns querem ver em haddad o melhor prefeito do universo, o redentor de nossa decadência. outros teimam em encontrar malícia em tudo o que ele faz e o criticam, dizendo que ele está enganando a todos com um jeito sedutor e mascarado. que tal pensar que ele não é nem um nem outro? que é, finalmente, uma pessoa, um político e um administrador decente, com decisões humanistas, tentativas arriscadas mas corajosas, delicadas mas decisivas? talvez não tão agressivo quanto são paulo precisaria já, mas com perseverança suficiente para que as coisas assumam a devida proporção no tempo necessário? com erros, certo. mas como seria um prefeito de uma cidade como essa que não errasse? haddad é inesperadamente, indubitavelmente legal. isso é insuportável para quem quer que ele seja super heroi e para quem quer um fracalhão.  e como é bom ter um prefeito legal.

domingo, 9 de novembro de 2014

filhos

filhos são falhas, são ilhas, são folhas, firulas, fedelhos, falácias, são fronhas, férias, são fáceis, são frutas, são foda, frágeis, são frente, são fênix, são fatos, fugas, são fúteis, são ferro, são finos, fósforos, faca, são fadas, são festa, fichas, são flocos, são flechas, felinos. são feácios, fotografias, fugindo.

sábado, 8 de novembro de 2014

dom

gift é o mesmo que giveth, ou o particípio passado de give, ou seja "dado", ou seja "dom". a ideia de que o dom é algo dado pela natureza ou por deus, para mim, está equivocada. o dom é recebido de outro e pode ser dado para outros também. é um tipo de presente. a morte, segundo derrida, no livro "o dom da morte", também é um dom. cada vez que se morre, sacrifica-se a própria vida para doá-la aos que ficam e aos que ainda não chegaram. o dom é assim. exige doação, sacrifício e trabalho, além, é claro, do enorme prazer. mas não é divino.

sábado, 1 de novembro de 2014

academia

não gosto do tique acadêmico de falar do passado no futuro: "em mil oitocentos e oitenta e nove, machado de assis vai escrever tal livro"; "no final daquele ano, bergson  terá um filho". tenho a sensação de prepotência, como se, assim, o acadêmico se colocasse ainda antes da vida da pessoa e antevisse o que sucederá. como se a erudição lhe permitisse saber mais sobre outro do que o próprio saberia.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

anjo

como deus só se ocupa das grandes causas, ele deixa as pequenas encrencas do cotidiano para os anjos do primeiro segundo e terceiro escalão. conforme as necessidades das pessoas, os anjos se responsabilizam de forma personalizada por alguns indivíduos. meu anjo particular, por exemplo, é o anjo de vagas para estacionar. eu nunca penso nisso porque, chegando em qualquer lugar, todos sabem que, estando comigo, aparecem vagas. dos outros problemas, entretanto, eu mesma preciso
cuidar, porque a mim só coube esse anjo. mas ele me satisfaz. quando eu não estou usando o carro, ele faz outras coisas também, como encontrar um restaurante ótimo e barato próximo a lugares onde estou perdida em cidades desconhecidas ou fazer os livros me acharem nas livrarias, em vez de eu
precisar procurá-los.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

cara

sabe aquele cara que você viu ontem na rua, comendo um hot dog merreca, mexendo nos bolsos, olhando para os lados, com uma roupa esquisita, uma expressão meio louca, que parecia assim meio sem eira nem beira, aquele cara, enfim, por quem você não dá nada e que hoje você já esqueceu? pois então. esse cara tem uma história. e ela é linda.

domingo, 12 de outubro de 2014

mira schendel

alguns artistas, como mira schendel, chegam a um tal grau de penetração e integração com a linguagem artística, que atingem um lugar em que tudo o que fizerem, pensarem, produzirem, é arte.  se mira desenhasse um traço, seria arte. se escrevesse "e", seria arte. e, por outro lado, também não precisam mais dizer "isso é arte", "isso não é arte", porque ultrapassaram o campo do classificável. chega esse momento em que não é preciso mais ativar um repertório simbólico para se produzir linguagem, porque, para alguns, tudo é simbólico e nada mais precisa ser simbólico. comer é linguagem e pintar é vida.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

comparação

as comparações inesperadas que alberto tassinari vem fazendo há algum tempo no facebook, embora sempre dentro da mesma linguagem - a arte -, para mim são como voltar ao mundo da analogia, que há muito vem sendo substituído pelo da ironia, como diz octavio paz. são aproximações de um tempo em que parecia possível juntar natureza e cultura, céu e terra, humano e animal, corpo e alma, pessoas com pessoas, iguais com diferentes, passado com presente. estas comparações, momentaneamente, me salvam de um mundo em que tudo se separa, sem metáforas possíveis.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

machadinha

quem será o dono da machadinha, que se desespera por alguém ter posto a mão nela, sabendo que ela era dele? e por que será que ele declara tamanho amor a ela, dizendo que ele é dela, se ela for mesmo dele? e por que será que ela pula no meio da rua?

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

futuro

sonho que estou na estação errada do trem. ou no trem errado. ou no horário errado. ou com as pessoas erradas. sonho desajustes assustadores. a memória: um trem cuja passageira se atrasa ou se adianta. o tempo da memória é implacável: nunca sou simultânea a ele. para o trem-memória, o presente já é passado. para a passageira desmemoriada, o presente é quase um futuro.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

água

o poema que eu mais gostaria de ter escrito:

row row row my boat
gently down the stream
merrily, merrily, merrily, merrily,
life is but a dream


row, boat e stream são palavras marinhas, hídricas, são a própria água
gently é a melhor forma de estar na vida
merrily é mais feliz que happy, que glad, que joyful
a construção "is but a" é a que melhor designa algo incomparável para a qual, infelizmente, não há tradução no português
três vezes row dá a sensação de remar como a vida, como constância, imanência e ondulação
merrily quatro vezes é a própria felicidade

ainda há tanto a dizer e, ao mesmo tempo, nada a ser dito.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

nós

ocês falam muito, disse o homem. e vocês, não falam? não. nós prefere ficar quieto. nós não têm muito o que dizer. então como vocês fazem pra reclamar, pra exigir? nós exige assim mesmo. quieto. e vocês assim, quietos, conseguem o que vocês querem? às veiz. outras veiz não. mas não seria melhor falar? é, pode ser. mas nós prefere ficar quieto mesmo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

dedo

"fiction"vem de "finger", dedo, porque era com o dedo que se dava forma às invenções produzidas. dou um dedo, sem nem pesquisar, que é daí também que vem o nosso "fingir", tradução corrompida e criativa de "finger" e de "ficção" ao mesmo tempo. ou seja, e para todos os efeitos, ficção é fingimento. o resto é só e monotonamente a verdade.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

água

- quantos olhos cabem em uma mulher? quantos tratores? grades, tímpanos? quantos modos, verdades, mentiras, espelhos, fraldas, sábados, elevadores, garagens, enciclopédias, moedas, cus, porradas, diamantes, lábios? muitos ou poucas? nenhuns ou infinitas? cinco ou setecentas?
- um copo d'água, por favor - ela respondeu.

sábado, 23 de agosto de 2014

colar

enfiei um cordão em volta do pescoço da catarina, minha sobrinha-neta de um ano e meio, e disse assim: olha, cata, um colar. ela apontou para o colar que eu tinha no pescoço: "coiai. ôto. dois." fiquei espantada com a esperteza dela e por constatar que ela sabe mais sobre o mundo do que metade da humanidade.

domingo, 17 de agosto de 2014

elas

quem são "elas"em "agora é que são elas"? serão as onças que bebem água? ou as chuvas onde as pessoas saem para se molhar? ou as essências que estão nos menores frascos? ou as panelas velhas que fazem comidas boas? ou as galinhas que encheram os papos de grão em grão? ou as águas passadas que não moveram os moinhos? ou as andorinhas sozinhas que não fizeram verões? ou as colheres que não se meteram nas brigas de marido e mulher? ou as boas intenções que encheram o inferno? ou são as muitas esmolas das quais os santos desconfiaram? ou as laranjas nas beiras das estradas? ou as cordas que sempre arrebentaram do lado mais fraco? ou as pérolas que não foram dadas aos porcos? quem são? hein?

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

etimologia

a etimologia é a utopia do passado atrás de um porvir menos quebrado. é o anjo de klee ao contrário, sendo arrastado para antes e vendo, as suas costas, um futuro sombrio que pode vir a ser melhor.

sábado, 9 de agosto de 2014

touro


o touro
sem modo

dome-o
todo

ou roto,
a esmo

sem medo
do outro

mude

o demo
do mesmo





terça-feira, 5 de agosto de 2014

resto

ok. se não há mais utopias (e não as há) e o futuro murchou, se o cinismo não é a opção inevitável,  e o hedonismo tampouco (sem nem mesmo a utopia do presente e do prazer) o que resta além de vozes quebradas autoproclamadoras de si mesmas ou do silêncio pasmo e imóvel? o que resta é isso mesmo: o resto. restar, o mesmo que repousar, manter-se, ficar. ficar no resto, um passo atrás ou à frente. só um passo e não uma escalada ou um abismo. restemos. como partes e como repouso. um pouco no passado e um pouco no futuro, outro tanto no presente. não haverá paz, nem justiça ou democracia total. nem um gregarismo harmônico, beirando o totalitário. só o resto. tolerância, escuta, demora e alguma ousadia para pequenas grandes coisas e grandes coisas pequenas.

sábado, 2 de agosto de 2014

o

quero outra vez o estupor de descobrir - como aconteceu quando eu tinha uns oito anos - que todos os meses do ano terminam com a letra "o", menos abril.

domingo, 27 de julho de 2014

dose

se pharmakon é veneno e é remédio, o que determina sua eficácia é a dose, que, por sua vez, significa dom, doação e dádiva. saber dosar é saber doar.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

tempo

time é tempo e weather é tempo também. por um lado, como é bonito perguntarmos "como está o tempo?"e, com isso, qualificarmos a passagem dos dias. "o tempo está bonito", "o tempo está feio", "o tempo está chuvoso", como se o próprio tempo se vestisse para passar por nós e em nós. mas, por outro, que falta de poder reconhecer a chuva, o vento e o sol como coisas independentes e, com isso, acreditar, por alguns minutos, que somos marinheiros ou desbravadores guiados pelos fenômenos naturais.





domingo, 20 de julho de 2014

paz

como suportar ser e não ser? é isso o real. e não alternadamente, mas simultaneamente. o mesmo pode ser o outro e o outro pode ser o mesmo ao mesmo tempo. enquanto não nos preparamos para contermos e sermos contidos por isso, não haverá paz. nem em nós nem para nós.

domingo, 13 de julho de 2014

piedade

nossa senhora das gentes ordinárias, tende piedade dos que duvidam, se contradizem, não conseguem se decidir e gaguejam. mas mais piedade ainda, senhora, daqueles que têm certezas, porque sua solidão é tão terrivelmente maior.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

vida

a poesia fica adiante ou antes da vida, mas não coincide com ela. e é nessas horas - quando eu penso que elas são a mesma - que a vida vem e te pega e te lança seguidamente morro abaixo e acima, te torce que nem laranja madura e te explica, às vezes alto e outras baixinho: eu sou só isso. ou tudo isso. eu sou sete a um.

domingo, 6 de julho de 2014

preconceito

o ímpeto preconceituoso contra os carrões bmw falou alto ontem, quando fui fechada por um deles, que continuou patinando pela rua estreita, sem definir a pista, como se fosse dono do lugar. passei do lado, doida para ver a cara do motorista e, justificada em meu preconceito pela sua cara já intuída de coxinha cem por cento, xingá-lo. mas era a gal costa. era a gal costa. era a gal costa.

terça-feira, 1 de julho de 2014

inferno

não é que o inferno sejam exatamente os outros. pior do que isso é saber, implicitamente, que eu é que sou o outro do inferno deles. o inferno são os outros é quase como dizer: o inferno sou eu.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

prejuízo

quanto eu devo por ter dito? e por não ter dito? vão cobrar? preciso pagar? qual a extensão do prejuízo? corresponde à culpa? se corresponder, está pago? quanto custa falar? e não falar? avaliam a coerência? avalizam? eu mesma endosso? a dúvida compromete? o medo ajuda? pode dar desconto? o erro aumentou o risco? a covardia protege? a coragem compensa? o custo-benefício vale?

sábado, 21 de junho de 2014

samba

a samba é minha cachorra. o gênero do artigo está errado, porque, na verdade, está certo. a samba lelê, a samba que agoniza mas não morre, eu sou a samba, desde que a samba é samba é assim, e quem suportar uma paixão, saberá que a samba então nasce no coração, a samba pede passagem, não deixe a samba morrer, esta samba é só por que, rio eu gosto de você, tem muita samba, muito choro e rock'n'roll, a samba da minha terra deixa a gente mole, a voz da minha samba ninguém vai calar, os originais da samba, vai minha samba, a samba puro de amor.

sábado, 14 de junho de 2014

foco narrativo

duas demonstrações recentes da ideia de que o foco narrativo significa a distância maior ou menor que o narrador assume diante do personagem e que, em função disso, todo personagem é complexo, quando visto de perto: um) uma manicure, com quem conversei, é jogadora de futebol. jogava em goiás, mas precisou vir a são paulo para trabalhar. velha demais para ser aceita em algum clube, joga no time masculino do marido. não é que eu goste de futebol, eu amo. é uma paixão, uma fascinação. enquanto assistíamos ao jogo camarões e méxico, ela me ensinou todos os impedimentos. dois) o vendedor de queijos do sacolão é croata, casado com uma japonesa, que conheceu num navio de cruzeiro. ela trabalhava na cozinha e ele na área de cargas. se apaixonaram e, como ela é filha de brasileiros, vieram para cá e trabalham com laticínios. ele tem, na parede da banca do sacolão, um prato de cerâmica com o mapa da croácia e sua cidadezinha em relevo. a bandeira croata escondida no balcão está dobrada ao lado da brasileira, propriedade de sua mulher japonesa.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

namorados

eu te dou minha palavra, amor: lavoura, açum-preto, costura, água, pistilo. qual você quer? quero água, amor, é a mais bonita. tudo bem. essa também é a que eu mais gosto, mas eu te dou.

domingo, 8 de junho de 2014

buraco

pelos buracos do corpo - olhos, ouvidos, nariz, boca, poros, ânus, genitais - saíram todas as palavras, grudadas: barulhodeninguémcomacentonoaagudoporquenãotemtiloqueéotilque acentoesquisitosemordemsemgatosemscuspequeridículoessabrigadofacebookentreninguémetodomundo.
sobraram muito poucas palavras e nesse espaço vazio entrou um golpe de ar que balançou algumas estruturas fixas do inconsciente. a fase oral se deslocou levemente do lugar e a anal deu uma mexidinha. à noite não tive pesadelos.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

facebook

ando pensando se há determinações midiáticas e linguísticas no instrumento facebook. é muito difícil concluir, mas me parece que há algumas: radicalização dos discursos; esvaziamento (direta e reciprocamente ligado à radicalização); efemeridade; polarização (diferente, mas contígua à radicalização); certa inconsequência (no sentido literal, de não ponderar a sequencialidade e o tempo dos discursos); redundância; tautologia (algo está certo e evidente porque eu o estou dizendo). estes são alguns dos aspectos negativos, mas há os positivos também, que ficam para outra.

sábado, 31 de maio de 2014

amor

"eu sou o historiador dos nomes das ruas de diadema", o homem que interrompeu minha aula disse. "se a senhora for noemi jaffe, eu vou ficar muito feliz". "sou". mostrou uma lista de ruas de diadema, de mil novecentos e sessenta e um. os alunos olhando. esse nome, "aron jaffe", "a senhora conhece?'. "é meu pai". "pois ele comprou vários terrenos na rua gama, em diadema". "lá em diadema nóis não fala jáffe, não. nóis fala jafé". "meu pai tinha vários terrenos em diadema?". "tinha sim, minha senhora. eu vi que a senhora escreve uns negócio na folha de s.paulo e como eu não sei mexer em computador, pedi pra uma pessoa pesquisar, vi que a senhora tava dando aula aqui em santo andré e vim aqui mostrar pra senhora".

terça-feira, 27 de maio de 2014

pregão

outro tempo me visita às terças de manhã, com o pregão: "olha a mandioca, mandioca, mandioca, mandioca, mandioca, banana". a disjunção entre a mandioca e a banana; a quantidade de repetições da palavra "mandioca"; a "banana"sozinha no final; o acento que o pregoeiro coloca na última sílaba de "banana"e não na segunda, tornando-a oxítona; o tom inacabado com que ele soa o chamado, terminando a nota no alto e não em baixo, como seria de se esperar; tudo isso enxerta outro tempo, espaço e possibilidades na vida desta rua da previdência, às terças de manhã, que reclina, agradecida, à presença desse real irreal.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

umbigo

deus, que é aquilo que se invoca, que é a voz que fala apesar de mim, fora e dentro do que sou eu, que obedece ao sopro emitido pelos sons que formam algum sentido, faça com que o tempo abrande o medo e que o possa transformar em onda, giro, círculo, cor e tônus. faça com que as faces - você que mora nos umbigos - ganhem agudeza e gravidade, mas também ar. sopre, de dentro para fora, de baixo para cima, um vento mínimo, que areje os olhos, as bocas, os orifícios e que esse gás se espalhe. sem poder, sem corrosão, mas com elasticidade, expansão e leveza.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

ou

acertar no alvo; atingir a meta; ajustar o foco; otimizar a estratégia; agilizar os trabalhos; sinergia adequada; empreendimento agressivo; ação ofensiva. é vida ou é guerra?

terça-feira, 13 de maio de 2014

verdade

todo mundo se queixa de não poder mentir sem culpa. afinal, ser verdadeiro, honesto, fiel, etc. é, muitas vezes, uma construção difícil. mas no momento em que é possível mentir livremente - ou seja, na literatura - todos querem falar a verdade. verdade é para analistas, padres, amigos. na literatura, a verdade pouco funciona.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

árvore

dizem que quando alguém "se arvora"um direito, é porque, na verdade, não o tem mas quer ostentá-lo. desperdício da língua. todos deveriam arvorar-se, não necessariamente direitos, mas intransitivamente. daí as pessoas distribuiriam galhos, gastariam frutos, amadureceriam e murchariam conforme as estações e ciclicamente; olhariam as coisas lá de cima, mas também de baixo, com descaso e experiência. logo tudo começaria de novo e cada novo tempo criaria aneis, que só muito mais tarde alguém determinaria como nossa velha idade.

sábado, 3 de maio de 2014

pepino

resumo da filosofia em no máximo quinze palavras:

freud: quem desdenha quer comprar
schopenhauer: não ria do mal do vizinho, que o seu está a caminho
descartes: barata sabida não atravessa galinheiro
nietzsche: o sol nasce para todos; a lua, para quem merece
platão: as aparências enganam
leibniz: para muito sono, toda cama é boa
heráclito: os opostos se unem
marx: uma andorinha só não faz verão
skinner: é de pequeno que se torce o pepino
aristóteles: muito riso, pouco siso
comte: ninguém nasce sabendo


quinta-feira, 1 de maio de 2014

acaso

uma girafa viu um homem cínico rindo do sofrimento humano. ele ria, dizia, porque tudo é dor e o sofrimento é, portanto um desperdício. como você é bobo, disse a girafa, espantada. acaso a economia é menos dolorida que o desperdício?

sábado, 26 de abril de 2014

arrependimento

senhor, me arrependo, senhor, de não ter dado um soco bem na fuça de um namorado, que à meia-noite do dia trinta e um de dezembro de algum ano, numa praia linda, se aproximou de mim, me deu um beijo, me preparou para o que iria dizer e disse: noemi, você é uma enfermeira de almas.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

buraco

acode, mãe. o que foi, filha? é o sumiço, mãe, esse buraco, essas coisas que eu tinha e não tenho, as coisas que eu não tinha também, o que eu perdi, o que eu ainda não tive, as coisas que passaram, as coisas que ainda não chegaram, a hora que você não podia estar lá quando aquilo sumiu, e depois aquilo outro, e o meu pescoço, mãe, que não foi cortado, mãe, cadê eles? eles já foram, filha, já foram. é isso, mãe, para onde? e lá, mãe, e eles, eles têm a coisa? eu não sei, minha filha. quem tem? por que lá é lá?

sexta-feira, 18 de abril de 2014

porra

tudo bem que em português existe o "porra", equivalente do "fucking" em inglês, para ser usado entre as palavras. por exemplo, a tradução de "where is your fucking wallet?" pode ser "cadê a porra da tua carteira?".  mas é muito duro não podermos dividir as palavras no meio, como os americanos fazem com "impo-fucking-possible", por exemplo. como fazer? impo-porra-ssível? impos-porra-sível? é duro, duro demais.

sábado, 12 de abril de 2014

kisuco

não consegui acreditar que ganhei o prêmio brasília de literatura, porque os outros únicos prêmios que ganhei na vida foram: um casaco de couro num concurso de pintura do mosaico na tv; uma caixa de dominó numa rifa de teatro infantil e uma boneca suzi no concurso da kisuco. mas este último foi armado pelo meu cunhado, que trabalhava na kibon.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

avó

minha avó era mais ou menos legal. determinada, orgulhosa, vaidosa, só andou de ônibus até morrer e fez questão de continuar trabalhando até o final. aprendeu a falar hebraico sozinha e fazia discursos baseados na torá em todas as festas religiosas. mas fazia um bolo esquisito com cobertura azul ou verde ou rosa, não comia em nenhuma outra casa a não ser na própria, era teimosa e tinha uma coisa imperdoável: quando vinha cuidar de mim - meus pais e minhas irmãs saíam - ela dormia na poltrona da sala e o nariz fazia aquele chiadinho: fiii.

sábado, 5 de abril de 2014

mito

que ingenuidade achar que são ingênuos os que acreditam nos mitos. os que acham, por exemplo, que os sonhos são mensagens do além ou dos antepassados. acaso é menos mitológico o id, pelo fato de ter sido nomeado como um mecanismo interno? acaso a ideia de sujeito é menos fantástica que a de transcendência? a razão tem seu tanto de crença e, se quisermos ser razoáveis - sinônimo miais razoável de racional - não podemos abolir seu aspecto mitológico.

terça-feira, 1 de abril de 2014

tia

enfiava as duas notas de cinco na carteira, que a menina da banca me trocou por uma de dez, quando o moço, jovem, velho, não sei, me flagrou no gesto e disse ô tia, me dá uma dessas, quero tomar um café, moro na rua. não olhei para ele, nem dei a nota, continuei andando e ouvi, ao longe, ô, tia, não faz isso, tia, não faz iissoo, já gritando. à tarde, mandei minha cachorra, ainda bem nova, para o primeiro banho fora de casa. deixei-a entrar na gaiola de um carro desconhecido e ela foi. voltou limpa, com dois lacinhos amarelos nas orelhas e assustada. acordo hoje com o mendigo e os lacinhos na minha cabeça. merda de vida. 

domingo, 30 de março de 2014

caetano

agradeço por ter nascido na mesma época que caetano veloso e: jorge benjor, luis melodia, macalé, tim maia, chico buarque, nelson cavaquinho, maria bethânia. mas olha, só uma coisa: agradeço por ter nascido na mesma época que caetano veloso.

terça-feira, 25 de março de 2014

solidão

melhor do que fazer as coisas certo, é fazer as coisas leve, mesmo quando elas são pesadas. as coisas certo envaidecem, mas causam solidão. ninguém quer muito a companhia de quem faz tudo certo.

sexta-feira, 21 de março de 2014

sarah

pense numa combinação absurda: uma pessoa que, por gostar de caravelas brasileiras, vai estudar literatura portuguesa em glasgow, a cidade europeia que tem a maior tradição na construção de navios de grande porte. ela se apaixona tanto pelas caravelas e pelo português, que vai morar nos açores, para aprender a língua. de lá, ela vem para o brasil. mas, uma vez aqui, não quer visitar são paulo, o rio de janeiro, nada. só abrolhos e itacaré. ela fica em itacaré, onde abre um sebo e faz traduções. ela gosta de barcos, literatura brasileira e de surf. e tem mais uma coisa: ela existe e se chama sarah. faz poesia em português e nós duas, no porto de salvador, vimos um navio vindo de hamburgo com grandes contêineres que pareciam livros numa biblioteca gigante. eles carregavam carros ou creme hidratante ou lentes de aumento ou panoramas da literatura brasileira. não sabemos. mas um desses contêineres iria cair no mar e, daqui a cem mil anos, um pesquisador vai encontrar esses panoramas da literatura brasileira e só ele saberá, inutilmente, que ela estava prestes a salvar o mundo, mas que o mundo não quis ser salvo.

terça-feira, 18 de março de 2014

estrela

no hotel onde estou hospedada, um três estrelas beirando duas mas querendo parecer quatro, o frigobar do quarto vem vazio. mas, sobre ele, um aviso: prezado hóspede, se quiser o kit frigobar, peça: kit frigobar básico, kit frigobar prata, kit frigobar golden e e kit frigobar platinum. o platinum vem com duas cervejas, dois refrigerantes e duas águas. custa trinta e dois reais. não pensei que fosse viver para precisar ouvir essa combinação de palavras: kit, frigobar e platinum, todas numa mesma frase.

sábado, 15 de março de 2014

linguiça

apesar de não sermos religiosos, em casa ainda havia certo tabu em comprar carne de porco. acontece que ele adorava presunto, pernil, linguiça e mortadela, o que nos obrigava a procurar bares e lanchonetes para comê-los. no restaurante, não. seria ostensivo demais. então encontrávamos padarias com bons sanduíches de mortadela, a "saladinha" da rua três rios para o de pernil e um bar da rua são bento para o de linguiça. o porco foi nossa reserva de amizade secreta e segura. hoje, como carne de porco com cerimônia. brindo intimamente a ele, que apreciaria tanto essa linguiça e, retroativamente, cultivo nosso segredo: pai, essa é de bragança paulista.

quinta-feira, 13 de março de 2014

erros

sem pensar, ser acometido de, virar cometa, cometer doze pecados, poucas horas para acabar, meu pai e o acabamento das saias, saia já daqui, daqui não saio, daqui ninguém me tira, era a piada que me contavam quando eu era pequena, desligar o motor metalinguístico, frustrar os leitores, perder amigos no facebook, perder os campeonatos verbais, falar a vírgula errada, falar a vírgulas errados, sabotar, sabão em pó.

domingo, 9 de março de 2014

irmã

entramos juntas numa loja de cds em jerusalem. depois de pouco tempo, eu chorava de um lado, ouvindo um cd do mati caspi, que me lembrava a adolescência, e ela do outro, ouvindo um vinil do jethro tull. eu, feliz: lembrei de tanta coisa. ela, triste: onde está aquela que eu fui? hoje, com sessenta anos, acho que ela reencontrou.

sexta-feira, 7 de março de 2014

ela

uma mulher arruma as escovas de dentes: a vermelha, no de geleia; a verde, no de requeijão. uma pasta para os dois. duas saboneteiras: vermelha e verde também. os nomes nas camisetas. estão dormindo. ajeita o cobertor, um pouco mais para cima. prepara um café e bebe. as sirenes pararam. ninguém diz que está tudo bem. está, ela sabe. sabe muito, ela.

terça-feira, 4 de março de 2014

conclusão

o melhor remédio para a tristeza: não tire conclusões. para a raiva: não tire conclusões. para manter a alegria: não tire conclusões. para sentir alegria: não tire conclusões. para o progresso da ciência: não tire conclusões. para a paz: não etc.

sábado, 1 de março de 2014

alecrim


se um dia os deuses quiserem me fazer feliz, permitirão que eu consiga escrever algo assim:

alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo e não foi semeado.
alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo e não foi semeado.
foi o meu amor, que me disse assim
que a flor do campo é o alecrim.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

bom retiro

o chapéu era amassado e enfiado na cabeça. o terno, umas três vezes o seu tamanho. o rosto amarfanhado, parecendo bravo, mas não era: só o tempo mesmo. parava na nossa frente e abria o paletó: nos infinitos bolsos, coleções de agulhas, alfinetes, alguns canivetes, lâminas de gilete, canetas, lápis, borrachas, apontadores, clipes, fitas durex, linhas, garrafinhas de whisky, enfim, tudo o que alguém precisa para ser feliz. não falava nada e dormia num muquifo. era judeu, mas o bom retiro estava mais nele e ele no bairro do que nós. hoje não existem mais as pessoas que não falam nada e nem o bom retiro profundo, que, como os vilarejos poloneses, desapareceu em nós.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

esquecimento

um segredo quase imperscrutável da literatura maravilhosa de tchekhov é que, nos seus contos e peças, embora os personagens sejam completamente "tchekhovianos", se esquecem de ser "tchekhovianos" e, por isso, o são ainda mais.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

alegria

quem fala que julio cortázar é escritor para adolescentes ou de segunda categoria esqueceu que a alegria é uma expansão do corpo e da alma, que o corpo e a alma são um só, que a alma não existe, que nada existe, que nem a palavra "existe" existe e que nem esse texto existe. só existem corpos caminhando, desejando alegria e é isso é o que cortázar nos dá.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

mãe

no fundo das palavras, bem ali, dormem, tranquilas ou desasossegadas, as palavras-mãe. curiosas, elas observam o tempo e o embate entre as criaturas pelo significados corretos. solitárias, elas riem. como todas as mães, sabem que o tempo acrescentará ou subtrairá outros nomes, sons e sentidos à raiz original e as coisas voltarão, mudarão e de novo passarão. quando tudo se desfigura, elas dormem, estão cansadas. acordarão novamente quando houver mais ar para elas respirarem.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

dor

se não soubermos entender que, no meio disso tudo, só a dor é real - e todo o resto são interpretações da dor - não poderemos fazer o que dizemos querer: mais justiça e igualdade. minha opinião sobre a dor do outro não pode ser maior nem mais importante do que essa dor. a opinião contrária à minha sobre a dor do outro não pode ser maior nem mais importante do que essa dor. quando isso acontece, não pode haver justiça nem igualdade, somente disputa de opiniões.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

legenda

ai - tá doendo
ai - que susto
ai - que gostoso
ai - que nojo
ai - não seja tão agressivo
ai - deixa, vai
ai, ai - estou cansado
ai, ai - eu entendo, já passei por isso
ai, ai - coitado
ai, ai - não vai dar certo
ai, ai - que saudade
ai, ai - que chatice
ai, ai, ai - música mexicana
ai, ai, ai - não vai fazer isso, hein?
ai, ai, ai, ai , ai - se você fizer isso, mamaãe vai ficar muito brava

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

gol

num acampamento do movimento juvenil a que eu pertencia, lá pelos meus dez anos, fui escalada para ser goleira de um jogo de futebol. mesmo sendo melhor do que jogar na linha, aquilo me amedrontou. parada no gol, com um monitor perto de mim, suspirei: "ai, ai". ele me olhou: "você não tem idade para falar ai, ai, menina".

domingo, 2 de fevereiro de 2014

natureza

as metáforas é que foram as culpadas por separar o homem da natureza. mas agora só elas poderão nos reatar.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

neblina

na música "you're gonna lose that girl", o joão escutava "esgana lose that girl". na placa "cuidado, sujeito a neblina", a rita lia "cuidado sujeito, há neblina", e achava que os administradores da estrada eram solidários com os motoristas. quando o henrique lia "casas do ramo" ficava procurando onde ficavam essas casas com um símbolo de raminho e eu, quando escutava o verso da música do vinicius "e chego a achar herodes natural", ouvia "e chego a xareró desnatural". isso tudo para não falar do "dimirô- se - se".

sábado, 25 de janeiro de 2014

arte

wassily kandinsky disse a frase que mais me convence sobre arte: "só é belo o que é necessariamente belo". para integrar técnica e "alma", linguagem e "desejo", forma e "conteúdo", a necessidade é o caminho. as coisas são assim porque precisavam ser assim; aquela palavra está ali porque precisava, não poderia ter sido outra. a obra é difícil, complicada, desafia a ideia geral de arte, mas o leitor ou o espectador sentem essa necessidade: então é bela.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

tambor

a vivian me perguntou o que eu levaria para uma ilha deserta. pensei imediatamente em um livro, é claro. ela me disse, simples: eu levaria um tambor. estou há dez dias pensando na sabedoria desta escolha. um tambor: se shakespeare tocasse tambor, se dostoievski tocasse tambor, se descartes tocasse tambor. por que eu não disse: um tambor?

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

si

essa história de "seja você mesmo", "seja único", "seja diferente" já deu o que tinha que dar. como conciliar o imperativo "seja" com o adjetivo "único"? se você obedece ao apelo, já está se submetendo. quer ser único? diferente? você mesmo? o melhor a fazer é começar desobedecendo. e, para continuar, o "si mesmo" está longe, muito longe do "eu". ele está na esquina, no banco ao lado, do outro lado da cidade e do país. está vendo aquela pessoa ali, do outro lado da rua, que você não conhece? preste atenção. é lá que está o "si mesmo".

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

coração

embora o estômago seja mais ou menos o centro do corpo, é o coração que está ao sul do cérebro e ao norte dos órgãos digestivos. é ele que, entre o escritório central e deliberativo e a esteira de montagem e descarte, faz as vezes de veículo, meio, suporte, ponte, rua, passagem. não é à toa que a tradição poética e cultural assentou nele o símbolo do sentimento, uma espécie de ponto central entre o pensamento e o cocô.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

mão

"tu me manque", em francês, é o equivalente a "tenho saudades de você". "mancar" vem de faltar uma mão, ser maneta, daí a ideia de carência, de algo que não está lá. essa inversão gramatical (tu como sujeito da frase, no lugar de eu) faz com que o outro seja o protagonista da falta que provoca no eu. como se o outro fosse uma mão ausente. já no português, a falta é interna, mais lírica e subjetiva. como se o outro não fizesse tanta diferença. a saudade, e não ele, é o que machuca.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

guerra

depois de ter sua casa de campo invadida pelos soviéticos, que a ocuparam completamente, transformando-a num galpão para conserto de armas danificadas e depois de ser continuamente acusado de "burguês", pois possuía "objetos fascistas" como candelabros, vasos, talheres de prata e porcelana, além de ser acusado de pensar e agir de forma burguesa e individualista, sandor marai se viu finalmente livre. os alemães saíram de budapeste, perderam a guerra e os soviéticos desocuparam sua casa. voltando à cidade, encontrou o lugar onde já escrevera cerca de sessenta livros, onde vivera os últimos quinze anos de sua vida, totalmente arrasado. não sobrara nada. em meio aos escombros de sua casa, destruída pelos nazistas, vasculhada e saqueada pelos soviéticos, ele encontrou, intacto, um livro isolado numa prateleira: "como criar um cão numa casa burguesa".

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

madame

debaixo da polidez impecável do parisiense mora um ogro terrível. bonjour madame, desolee madame, silvouplaites madame, je vous en prie madame,  pardon madame. mas trisque um dedinho do plano pré-estabelecido das trocas fáticas e o ogro aparece: ficou louca, madame? pode esperar um pouco, madame? já não ouviu o que eu disse, não entendeu, madame? quer falar francês, então fale direito, madame.
madame não gosta que ninguém mexa com ela. madame fica brava.