terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

bom retiro

o chapéu era amassado e enfiado na cabeça. o terno, umas três vezes o seu tamanho. o rosto amarfanhado, parecendo bravo, mas não era: só o tempo mesmo. parava na nossa frente e abria o paletó: nos infinitos bolsos, coleções de agulhas, alfinetes, alguns canivetes, lâminas de gilete, canetas, lápis, borrachas, apontadores, clipes, fitas durex, linhas, garrafinhas de whisky, enfim, tudo o que alguém precisa para ser feliz. não falava nada e dormia num muquifo. era judeu, mas o bom retiro estava mais nele e ele no bairro do que nós. hoje não existem mais as pessoas que não falam nada e nem o bom retiro profundo, que, como os vilarejos poloneses, desapareceu em nós.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

esquecimento

um segredo quase imperscrutável da literatura maravilhosa de tchekhov é que, nos seus contos e peças, embora os personagens sejam completamente "tchekhovianos", se esquecem de ser "tchekhovianos" e, por isso, o são ainda mais.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

alegria

quem fala que julio cortázar é escritor para adolescentes ou de segunda categoria esqueceu que a alegria é uma expansão do corpo e da alma, que o corpo e a alma são um só, que a alma não existe, que nada existe, que nem a palavra "existe" existe e que nem esse texto existe. só existem corpos caminhando, desejando alegria e é isso é o que cortázar nos dá.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

mãe

no fundo das palavras, bem ali, dormem, tranquilas ou desasossegadas, as palavras-mãe. curiosas, elas observam o tempo e o embate entre as criaturas pelo significados corretos. solitárias, elas riem. como todas as mães, sabem que o tempo acrescentará ou subtrairá outros nomes, sons e sentidos à raiz original e as coisas voltarão, mudarão e de novo passarão. quando tudo se desfigura, elas dormem, estão cansadas. acordarão novamente quando houver mais ar para elas respirarem.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

dor

se não soubermos entender que, no meio disso tudo, só a dor é real - e todo o resto são interpretações da dor - não poderemos fazer o que dizemos querer: mais justiça e igualdade. minha opinião sobre a dor do outro não pode ser maior nem mais importante do que essa dor. a opinião contrária à minha sobre a dor do outro não pode ser maior nem mais importante do que essa dor. quando isso acontece, não pode haver justiça nem igualdade, somente disputa de opiniões.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

legenda

ai - tá doendo
ai - que susto
ai - que gostoso
ai - que nojo
ai - não seja tão agressivo
ai - deixa, vai
ai, ai - estou cansado
ai, ai - eu entendo, já passei por isso
ai, ai - coitado
ai, ai - não vai dar certo
ai, ai - que saudade
ai, ai - que chatice
ai, ai, ai - música mexicana
ai, ai, ai - não vai fazer isso, hein?
ai, ai, ai, ai , ai - se você fizer isso, mamaãe vai ficar muito brava

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

gol

num acampamento do movimento juvenil a que eu pertencia, lá pelos meus dez anos, fui escalada para ser goleira de um jogo de futebol. mesmo sendo melhor do que jogar na linha, aquilo me amedrontou. parada no gol, com um monitor perto de mim, suspirei: "ai, ai". ele me olhou: "você não tem idade para falar ai, ai, menina".

domingo, 2 de fevereiro de 2014

natureza

as metáforas é que foram as culpadas por separar o homem da natureza. mas agora só elas poderão nos reatar.