sábado, 26 de abril de 2014

arrependimento

senhor, me arrependo, senhor, de não ter dado um soco bem na fuça de um namorado, que à meia-noite do dia trinta e um de dezembro de algum ano, numa praia linda, se aproximou de mim, me deu um beijo, me preparou para o que iria dizer e disse: noemi, você é uma enfermeira de almas.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

buraco

acode, mãe. o que foi, filha? é o sumiço, mãe, esse buraco, essas coisas que eu tinha e não tenho, as coisas que eu não tinha também, o que eu perdi, o que eu ainda não tive, as coisas que passaram, as coisas que ainda não chegaram, a hora que você não podia estar lá quando aquilo sumiu, e depois aquilo outro, e o meu pescoço, mãe, que não foi cortado, mãe, cadê eles? eles já foram, filha, já foram. é isso, mãe, para onde? e lá, mãe, e eles, eles têm a coisa? eu não sei, minha filha. quem tem? por que lá é lá?

sexta-feira, 18 de abril de 2014

porra

tudo bem que em português existe o "porra", equivalente do "fucking" em inglês, para ser usado entre as palavras. por exemplo, a tradução de "where is your fucking wallet?" pode ser "cadê a porra da tua carteira?".  mas é muito duro não podermos dividir as palavras no meio, como os americanos fazem com "impo-fucking-possible", por exemplo. como fazer? impo-porra-ssível? impos-porra-sível? é duro, duro demais.

sábado, 12 de abril de 2014

kisuco

não consegui acreditar que ganhei o prêmio brasília de literatura, porque os outros únicos prêmios que ganhei na vida foram: um casaco de couro num concurso de pintura do mosaico na tv; uma caixa de dominó numa rifa de teatro infantil e uma boneca suzi no concurso da kisuco. mas este último foi armado pelo meu cunhado, que trabalhava na kibon.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

avó

minha avó era mais ou menos legal. determinada, orgulhosa, vaidosa, só andou de ônibus até morrer e fez questão de continuar trabalhando até o final. aprendeu a falar hebraico sozinha e fazia discursos baseados na torá em todas as festas religiosas. mas fazia um bolo esquisito com cobertura azul ou verde ou rosa, não comia em nenhuma outra casa a não ser na própria, era teimosa e tinha uma coisa imperdoável: quando vinha cuidar de mim - meus pais e minhas irmãs saíam - ela dormia na poltrona da sala e o nariz fazia aquele chiadinho: fiii.

sábado, 5 de abril de 2014

mito

que ingenuidade achar que são ingênuos os que acreditam nos mitos. os que acham, por exemplo, que os sonhos são mensagens do além ou dos antepassados. acaso é menos mitológico o id, pelo fato de ter sido nomeado como um mecanismo interno? acaso a ideia de sujeito é menos fantástica que a de transcendência? a razão tem seu tanto de crença e, se quisermos ser razoáveis - sinônimo miais razoável de racional - não podemos abolir seu aspecto mitológico.

terça-feira, 1 de abril de 2014

tia

enfiava as duas notas de cinco na carteira, que a menina da banca me trocou por uma de dez, quando o moço, jovem, velho, não sei, me flagrou no gesto e disse ô tia, me dá uma dessas, quero tomar um café, moro na rua. não olhei para ele, nem dei a nota, continuei andando e ouvi, ao longe, ô, tia, não faz isso, tia, não faz iissoo, já gritando. à tarde, mandei minha cachorra, ainda bem nova, para o primeiro banho fora de casa. deixei-a entrar na gaiola de um carro desconhecido e ela foi. voltou limpa, com dois lacinhos amarelos nas orelhas e assustada. acordo hoje com o mendigo e os lacinhos na minha cabeça. merda de vida.