domingo, 28 de dezembro de 2014

terra

em três dias, a terra recomeçará seu giro em torno do sol. ao longo desse ciclo novo, ela girará em torno de si mesma mais trezentas e sessenta e cinco vezes. enquanto isso, a cada quilômetro a mais desses giros, alguém girará a torneira de sua casa para lavar o rosto; alguém se preparará para morrer; alguém ainda não terá nascido; alguém descobrirá uma nova fórmula para curar doenças do fígado; alguém não terá ninguém a quem chamar numa noite solitária; alguém ficará alegre só de ouvir um anúncio numa televisão; alguém assistirá, sozinho, a um filme velho num cinema decadente; alguém caminhará por um tapete vermelho e, sem querer, esbarrará no sapato de outra pessoa, ao que dirá, sinto muito; essa outra pessoa dirá, constrangida, não foi nada, imagine; alguém espantará um inseto no alto de uma montanha, aonde terá chegado depois de meses de preparação. quantos quilômetros a terra, nesse trânsito, já terá percorrido? quantos faltarão, no minuto em que alguém apagar a chama de um fogão em jacarta, em que um grão de milho de pipoca estourar em brunei, para que ela novamente volte até aqui, até esse ponto do teclado onde se digita esta letra e recomece outra vez, numa caminhada incontornável, seu próximo giro em torno de si mesma e em torno do sol?

domingo, 21 de dezembro de 2014

capital

rejkjavik! meu pai girava o disco de papel que tinha todos os países e as capitais e me perguntava; itália? roma. frança? paris. então ele ia para os mais difíceis. bulgária? sofia. romênia? bucareste. equador? quito. ele se animava, orgulhoso. indonésia? jacarta. áfrica do sul? johanesburgo. mas nunca vou esquecer do sorriso dele quando, apostando alto e com medo da dificuldade que me impunha,  ele perguntou a capital da islândia.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

presente

um presente é a atualização de um passado que retorna sob a forma de um objeto doado: um dom, uma dádiva. por isso, é claro, a coincidência entre a conotação temporal e da oferta ritualística: em aniversários, ocasiões de celebração, nascimentos, casamentos. para cada dom, desinteressado mas obrigatório, um compromisso, um selo: sou para você e você é para mim. estamos juntos em aliança. desejo que, neste natal, haja mais presentes presentes.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

conteúdo

o conteúdo é mais mole que a forma. se você partir do conteúdo, para escrever ficção, como ele é muito maleável, ele vai se encaixar em qualquer lugar, de qualquer jeito, porque tudo o que ele quer é dizer o que ele quer dizer. ele é teimoso e quer porque quer dizer aquilo. preto, branco, retangular, redondo, alto, baixo, rápido, devagar, tanto faz. já se você partir da forma, a coisa muda de figura. a forma é inflexível, ou quase. para poder usá-la bem, não é de qualquer jeito não. é preciso forjar o conteúdo à sua semelhança, fazê-lo render-se e configurar-se a ela. só assim ele começa a perder a teimosia do "quero dizer aquilo, por favor me deixa dizer aquilo vai" e começa a dizer o que a língua quer que ele diga. e aí, ah, e aí, surge cada coisa que nem sei.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

inverno

o que eu lembrei sobre ele, anteontem, quando ele faria oitenta e nove anos, foi dele cantando, no carro, uma canção desconhecida, mas que começava com as palavras "shnatse ha winter". não sei se era isso mesmo, mas ele me disse que queria dizer " o inverno está chegando", e ele entoava essa música toda vez que alguma coisa triste se anunciava. sei que essa canção me fez sentir muitas vezes culpada, porque eu tinha certeza de ser a causadora do inverno que se aproximava. agora, quando lembro dela, e dele, o inverno outra vez se avizinha mas, infelizmente, não sou mais eu a provocá-lo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

escândalo

até que ponto, quando nos escandalizamos - por razões morais, ideológicas, profissionais, éticas, políticas - vai o mérito supostamente moral, ideológico etc. do escândalo e até onde vai o desejo de humilhar, vencer, vingar-se, emboscar? até onde a proteção das supostas vítimas e até onde a defesa contra pulsões subjetivas? creio que é impossível saber este limite. por isso, acho melhor calar-se e deixar que cada uma das partes escolha seus caminhos de reflexão e de ação. escândalo vem do grego: "armadilha para o inimigo" e escandalizar-se, penso, nunca perde esta dimensão.