quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

unúntrio

tudo conspira para o pessimismo. mas continuo otimista, quem sabe numa resistência inocente, mas algo me diz que também necessária. a verdade é que, no japão, descobriram o unúntrio, o elemento cento e treze da tabela periódica e isso é bom, porque, afinal, agora eles planejam seguir pesquisando o território inexplorado do elemento cento e dezenove e além. amém.

domingo, 27 de dezembro de 2015

árvore

o que faz com que uma árvore seja só aquela árvore e mais nenhuma outra? é algo intrínseco a ela, seu ser, sua essência? ou é extrínseco e está na circunstância, no espaço e em quem a olha, nesse caso dispensando a essência? ou é ainda mais distante, uma metafísica cósmica, algo que toca todos os seres e os faz serem quem são? ou serão todas essas coisas e meu olhar sobre a árvore não passaria de uma aceitação do que ela já é, o que, por sua vez, só adquire verdade pelo meu mesmo olhar, olhar que, sem o mistério da visão, nem mesmo existiria?

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

que

que pensemos nos meios mais do que nos fins; que pessoas afins pensem mais no que os torna afins do que nas bobagens que os diferenciam; que fiquemos a fim de muito (e de pouco); que sejamos mais finos, mas também mais desafinados e que, no fim, compreendamos o pequeno círculo do finito, o susto de um oh, e, que coisa, já acabou.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

congresso

ser adulto implica o aprendizado do não. ninguém há de discordar disso. é a assimilação dos limites, da possibilidade de cercar o desejo infantil - sempre à espera de uma brechinha - de ser totalmente realizado, atendido, recebido. por isso, ser adulto tem a ver, necessariamente, com elegância, que vem de "eligere", que é essa dor (e a delícia difícil) da escolha fina, de não poder ter e ser tudo o que se deseja. e é isso o que falta ao nosso congresso infantiloide, com sede de plenitude sem limite: elegância. o aprendizado operoso de ser adulto.

domingo, 29 de novembro de 2015

natal

nunca canta parabéns a você nas festas. acha ridículo. na hora do rá tim bum, então, quer vomitar. a mãe usa blusa e sapato combinando e ela tem vergonha. entrar em shopping, nem pensar, muito menos no natal, quando todos os patéticos saem às ruas com seus cachorros. amigo secreto de firma?! a própria palavra firma?! nojo. nas fotografias, o olhar desconfiado. não sorri para fotos; é falso. tirou todas as máscaras e só sobrou a verdade mais verdadeira. dúvida: será fingimento chamar o paulo para uma cerveja?

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

psicanálise dois

hipótese dois: suponhamos que alguém sonhou com um grande macaco e, ao relatar o sonho, refere-se a ele como um grande mico. um psicanalista que interpretasse essa fala como um "mico", algo que deu errado, um medo que a pessoa tem daquilo com que sonhou ou a que o macaco está ligado:
um) está com um delírio hiper-interpretativo
dois) está certo
três) está se apropriando da imaginação alheia como se fosse seu território
quatro) tem, no mínimo, uma legitimidade semântica e merece consideração
cinco) confunde língua e linguagem
seis) desrespeita a inocência do símbolo e da pessoa.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

um

-  uma sopa de abóbora
- um copinho de pinga
- um picolé de tangerina rochinha
- uma fatia de queijo minas
- uma xícara de café tipo casca de ovo com  café bem quente
- um ventilador na velocidade dois
- os pés na banheira
- tônica na geladeira
- uma nota de cinco na calça

sem saber, você salvam o mundo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

psicanálise

hipótese mais ou menos ficcional: digamos que eu sinta vontade, por exemplo, quando vejo um garçom guardando as mesas de um restaurante,  de ajudá-lo. digamos que conte isso para minha terapeuta, que, por sua vez, interpreta esse desejo como uma forma que ela reconhece repetidamente, em mim, de sempre querer agradar os outros, mesmo desnecessariamente. o que isso significa? 1. ela está certa e os desejos de ajudar sempre têm uma camada subliminar escusa. 2. ela está errada e meu desejo de ajudar é preocupação genuína com o outro. 3. ambas estamos certas. 4. essa interpretação é reducionista e transforma, dogmática e estigmaticamente, um desejo num tabu. 5. a terapeuta é incompetente. 6. por que eu não ajudei o garçom?

sábado, 7 de novembro de 2015

enlatados

matei uma pessoa, mas o assassinato foi com uma arma não letal, um fio de barbante, desses que se compram no supermercado e a pessoa, afinal, nem era tão importante, ninguém vai reparar na sua falta, ele nem conhecia ninguém e ninguém o conhecia e depois eu estava com uma vontade danada de matar uma pessoa, então acho que nesse caso não fiz nada de ilegal, ou ao menos não tão ilegal assim, porque essa pessoa era somente usufrutuário da vida, não exatamente o dono, porque o dono é sempre deus e eu somente desautorizei o usufruto da vida por essa pessoa, ou melhor do ativo "vida" por essa pessoa. eu não tenho ativos desse trust, a vida, sou só mais um beneficiário, que, por uma demanda interna e circunstancial, tirou o benefício de outra pessoa, mas foi só uma vez, um instante, em troca de todo o resto que já fiz nesse benefício, a vida, de todos os outros ativos que já conquistei, não foi nem nada. o morto, agora, é só carne enlatada.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

filha

quando a leda nasceu eu pensei: vai, filha, cumprir a vida de uma mulher. não é fácil não, filha. você vai atravessar as cidades, as ruas, as esquinas e sempre haverá alguém te olhando e você vai correr e chorar e pedir e os outros vão te ajudar e às vezes ninguém vai te ajudar e você vai aprender a se defender e às vezes não vai aprender e eu vou estar onde for preciso para te ajudar, mas tenho medo de não poder estar. mas hoje, leda, tantas mulheres, e homens, vão caminhar juntos, porque hoje é o dia em que todas aquelas pessoas que não puderam estar juntas vão estar. e vamos nos olhar e vai ser bom olhar, porque não haverá esguelhas nem soslaios nem cunhas no nosso olhar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

sardinha

tenho problemas com sequências. coisas que começam, se desenvolvem e terminam. coisas com coisas. coisas que são causas de certas consequências e vice-versa. parágrafos com ideias principais. conclusões. e por quê? porque não conheço nada assim, nem na mais intensa e luminosa - ou obscura - imaginação. menos ainda na vida. na vida, e mais ainda no sonho, o tempo se espreme, se alastra, se comprime e se propaga. mas não segue em linha reta. nada continua como começou, nem mesmo começa antes de terminar. aliás, nada termina. não se pode, pelas consequências, determinar a causa e estas se proliferam de acordo com necessidades, desejos, medos e uma memória falha e que só faz, quanto mais o tempo passa, puxar a brasa para sua sardinha. ou a sardinha para sua brasa, nem sei.

sábado, 17 de outubro de 2015

pão

aleluia, aleluia, farinha na cuia, repetia o tradutor de guimarães rosa, incansavelmente, o dia inteiro, sem conseguir achar a equivalente em alemão. pudera, pois se para nenhuma palavra existe correspondência exata, ainda mais para isso. foi quando à noite, no banheiro, começaram a ouvir um murmúrio lento: hosana, hosana, brot is mana. e foi assim, com o sonho do pão transformado em maná, que fez-se o milagre da versão de uma língua para a outra. e como na língua das línguas, o homem nomeou as coisas com as palavras.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

tempo

por que escolhemos o verbo "passar" para o tempo? o que é passar? transcorrer, mudar, mover-se? nunca ninguém viu o tempo operar estas ações. somente vemos os seres e lugares sofrerem-nas. mas queremos que seja algo que opera, neles, as mudanças e, de alguma forma, ao atribuir tudo ao tempo, recusamo-nos a aceitar que somos nós que passamos, que estamos passando, vamos passar até não podermos mais dizer que está passando, porque passou. para o tempo, nossa invenção para sentir a morte - e, com ela, a vida - talvez possamos dizer que ele é. o quê, não sabemos.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

pai

pai, você lembra das coisas que você falava? entrava numa consulta médica e dizia: urina, normal e fezes, normal. se um amigo chegasse em casa, você chamava e perguntava: o que acha de conjuntura política e econômica internacional? quando você ficava chateado, assobiava sozinho e suspirava: shnatse ha winter! se eu dizia que nunca faria alguma coisa, você vinha: nunca diga dessa água não beberei. e tinha os outros quinhentos e quem não tem quinhentos mil dólares e a piada do e se eu fechar a janela? vai fazer menos frio lá fora? você lembra, pai? não, é claro que você não lembra.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

letra

num túmulo qualquer, um nome estava incompleto. alguém passou por lá e completou o nome, acrescentando, com massinha, a letra que faltava. é uma letra "e". agora o nome está lá, inteiro e essa letra zela, vela e guarda por nós, sempre incompletos, exilados, juízes sem verdade nem justiça. cuide de nós, letra "e", para que sejamos menos certos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

bem

sonhei com uma menininha, no fundo de um carro, dizendo, enquanto brincava com um jogo de montar: a cozinha do bem inconcebível não está nas coisas, nem nas ações ou nas ideias, mas nas palavras.
acorde-se com um barulho desses.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

forma

recuar também pode ser uma forma de avançar. entregar-se também pode ser uma forma de resistir. negar também pode ser uma forma de dar. dar também pode ser uma forma de possuir. ficar também pode ser uma forma de ir.

sábado, 5 de setembro de 2015

queijo

quando descobri que todos os meses terminam com a letra "o", menos abril; quando li a primeira página de demian; quando entendi a maneira como chico buarque tinha escrito "construção"; quando pude escrever o que eu queria no livro "criatividade", de samir cury meserani; quando a noêmia me disse que minha calcinha suja de sangue era uma coisa legal; quando a tia pola me deixou comer um segundo queijo quente no macabi; quando a jany me deu a camiseta com a bandeira dos estados unidos; quando minha mãe me deu a baianinha que eu queria; quando a té ficou em casa; quando o menino que eu gostava sentou ao meu lado no ônibus; quando o badu me abraçou de surpresa na rua; quando minha avó trazia chocolate em forma de cocô em casa; quando eu disse que também queria ir para a disney e meu pai disse: tá bom.

domingo, 30 de agosto de 2015

dilema

até que ponto não vivemos todos nós o dilema da samba, minha cachorra querida. a coisa que ela mais ama é brincar com a bolinha de tênis. ela pega a bolinha, morde gulosamente, se aproxima de mim e mostra que quer que eu jogue a bolinha para ela pegar. mas no que eu ameaço tirar a bolinha da sua boca e jogá-la, para que a samba corra e a cate, ela se retrai e segura a bolinha com força, com medo de ficar sem ela. o resultado é que não dá pra brincar de bolinha. de tanto querer brincar e de tanto amar a bolinha, ela não me deixa chegar perto dela.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

tempo

para escrever melhor é preciso sentir a espessura do tempo. esperar; ter paciência; reler; reescrever; sentir as transformações acontecendo. conhecer o tempo do texto, do autor, dos personagens, do narrador, do editor, da vida. demorar-se. urgir. escrever o tempo e sua intangibilidade que, estranhamente, é perceptível: a simultaneidade, a duração, a instantaneidade. muitas vezes, o excesso de subjetividade pode atrapalhar o tempo; o excesso de palavras também. deixe, de vez em quando, que ele comande a escrita e submeta-se a ele. morra um pouco. depois renasça,

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

clipe

valei-me meu são cristóvão, meu santo escritório! um clipe, um clítoris, um critério, qualquer coisa com cr ou cl, qualquer proparoxítona ajudaria, um clavicórdio, um sacrilégio, mas valei-me! ajudai-me em qualquer coisa, mas não esquecei de mim.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

tudo

é sábio se dar conta de que tudo é vão. mas, pena, também o é esta própria sabedoria.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

cérebro

evoluímos o suficiente para termos um cérebro mais inteligente do que o do resto dos animais; mas por que catzo será que não evoluímos o suficiente de modo a que esse cérebro entenda, de uma vez por todas, que ainda somos animais?

domingo, 9 de agosto de 2015

paranoia

eu era garota, tinha acabado de começar a dar aulas de português no meu primeiro emprego de verdade, quando a psicóloga da escola, mais velha e experiente, chegou para mim e disse: noemi, você é boa, mas precisaria ser mais paranoica. não explicou nada. entendi, um pouco depois, que a paranoia, supostamente, iria me salvar dos espertalhões, dos enganos e dos truques. que o que ela entendia como ingenuidade (que, para ela, era sinônimo de carência de paranoia (?)) iria me colocar, frequentemente, em maus lençóis. trinta anos mais tarde, ainda me lembro disso. calou fundo. e continuo discordando. não sou ingênua coisa nenhuma. nem tampouco paranoica. e uma coisa, fique você sabendo, psicóloga de meia tigela, não é o contrário da outra. muitas vezes, sua chata de galocha, a verdade é que é a melhor forma de mentir.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

doença

sabe aquela frase linda que você escreveu no livro que está querendo publicar? aquela assim: "nos estertores da doença que o consumia, estendido no leito, suspirou um pedido derradeiro"? então. corte.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

eurequinha

lendo o quarto volume da autobioficção de karl ove, ontem, tive uma espécie de epifania que, talvez, muitos outros já tenham tido. sempre fico me perguntando por que gosto tanto de lê-lo. é um mistério. ontem entendi: karl ove escreve bem porque não escreve bem. seu estilo está em parecer que não tem estilo nenhum e que ele escreve apenas com sinceridade, total transparência. como se contasse, tim tim por tim tim, toda, mas toda sua vida mesmo. isso o humaniza profundamente, o torna comum, cheio de erros e mesmo assim capaz de escrever um livro de muito sucesso e, ao mesmo tempo, também aproxima tremendamente o leitor, que vê suas mundanidades elevadas ao nível de boa literatura.

domingo, 26 de julho de 2015

solidão

solução para a solidão: fique só. sabe por quê? porque a solidão não tem solução e nem é bom que tenha. e também porque só a solidão faz entender a alegria da solidão como o orto da companhia.

domingo, 19 de julho de 2015

sorvete

uma liberdade trágica, trôpega, quase ruim de tão boa, pode estar em escolher, no supermercado, o sorvete que, antes, você nunca teve coragem de pegar.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

coisas

quem diz "mas as coisas são assim! o que se há de fazer?' não entende que as coisas são assim por causa de quem diz que as coisas são assim. as coisas não são nem não são. as coisas, coitadas, nem estão interessadas nisso.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

etimologia

a etimologia é a memória amante da língua. são as palavras em estado de nascimento, próximas das coisas, menos marcadas pelas abstrações que as submetem a megalomanías ideológicas e pessoais. ainda concretas, elas, amorosamente, se conectam umas às outras e nos expandem para mais sensações e menos pensamentos.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

urgência

é urgente. urge que seja. tudo urge, urra, vocês não ouvem o chamado das coisas urgindo? elas estão falando: vão! e nós estamos olhando, ouvindo surdos e falando calados, mas parados. perdemos a urgência do chamado para a urgência dos compromissos. é urgente, ouçam!

sábado, 20 de junho de 2015

alegria

a alegria, como quando ouvimos a voz das coisas - a planta que viceja, o bolo que cresce, o ar que rumoreja - é quando o corpo diz mais do que as palavras. as pernas querem mexer, as mãos bater, o peito avançar, os olhos procurar e as palavras, tímidas diante de tanto sentido, só sabem ahs, ihs, ohs e uhs. alegria é quando as palavras emburrecem.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

glamour

glamour e gramática têm a mesma origem: gramaris, que significa encantamento, magia. isso porque quem domina as regras do sistema possui, certamente, conhecimentos mágicos. é claro. a magia é ter total maestria sobre as regras, de forma tal que elas pareçam não existir. glamuroso é um gramático, no final das contas. nada mesmo é tão charmoso quanto saber o que é uma oração reduzida de infinitivo e não parecer que se a sabe.

terça-feira, 9 de junho de 2015

írisz.

é hoje o lançamento do meu novo livro "írisz: as orquídeas". apareça, a partir das 19, quando falo sobre o livro, na livraria da vila da rua fradique coutinho. te espero lá!

terça-feira, 2 de junho de 2015

israel

pedem que gil e caetano não toquem em israel porque o governo de lá é repressivo e segregador. sim, é. e a música é ( ou pode ser) libertária e agregadora. em israel, há milhares de pessoas assim, sedentas de espaços e tempos para se expressar. por que tocar em um lugar significa endossar o governo? por que negar a quem pode, a possibilidade de manobrar entre as margens do sim e do não? só há duas opções para cada pergunta? por que a vida virou vestibular? por que israel, e de cambulhada tanta coisa, virou um bloco uno e deixou de ser também um povo? claro que é justo e necessário que eles se apresentem também na palestina. posso ser ingênua, mas maior ingenuidade, acho, é fingir que Israel não existe.

sábado, 23 de maio de 2015

davi e silva

"ele falou baixinho: agradece os clientes por mim e cuida da mãe". "eu sei que não vou sair dessa, davi". foi isso que o silva disse para o irmão, davi, antes de morrer de uma infecção numa úlcera  mal medicada, em dezembro do ano passado. e foi isso o que o davi me contou, ontem à noite, no pascuale, explicando por que tem trauma de andar de moto. era o silva que o levava para casa, todas as noites e ele não pode subir numa moto porque lembra do irmão, "que foi como um pai para mim". a mãe, cearense, agora está aqui e davi está cuidando dela. o silva, que era chef de salão, digno que só ele, e agora que só o irmão, faz falta para nós, os clientes a quem ele pediu para agradecer. agradecer o quê, silvia?

quarta-feira, 13 de maio de 2015

utopia

no início o homem criou a cidade e o campo. e na cidade os homens se organizavam e desorganizavam, e no campo os homens se espalhavam e se concentravam. e o homem viu que era bom. dia um. no dia dois, o homem criou as palavras e, com elas, os nomes. e os homens passaram a se chamar uns aos outros e as coisas se aproximaram. e o homem viu que era bom. dia dois. no dia três, o homem criou as trocas e os presentes. e os homens, nas cidades e nos campos, trocaram pimentas por burros e palavras por martelos. e o homem viu que era bom. dia três. no dia quatro, o homem criou o papel e os pequenos cantos. e os homens se recolhiam, reapareciam, escreviam e liam. e o homem viu que era bom. dia quatro. no dia cinco, o homem criou o amor e o ódio, a alegria e a tristeza. e os homens fizeram amor e filhos e brigavam e faziam festas. e o homem viu que era bom. dia cinco. no dia seis, o homem criou as viagens e os descobrimentos. e os homens foram da cidade para o campo e do campo para a cidade e descobriram os óculos e o gramofone. e o homem viu que era bom. dia seis. no dia sete, o homem criou as histórias e os brinquedos. e os homens inventaram e brincaram. e o homem viu que era bom. dia sete. no dia oito o homem não criou deus, porque tudo estava bom assim.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

sino

sabendo dos meus pesadelos instransigentes, ontem, de dia das mães, a leda me deu um sino que filtra os sonhos. pediu para eu pendurá-lo ao lado da cama porque, durante a noite, ele agiria sobre mim, afastando os pesadelos. nessa noite mesmo sonhei com uma tela de computador, onde se liam as seguintes instruções: "como mudar as configurações do passado".

quarta-feira, 6 de maio de 2015

gravidez

das três, grávida, pregnant e enceinte, está claro que pregnant é a mais grávida das palavras. isso porque grávida vem de gravidade, peso e, gentil, mas implicitamente acusatória, chama a mulher de, simplesmente, gorda. já enceinte vem de rodear e, nem tão sutilmente, aponta a grávida como mulher circular. mas pregnant é impregnada, pregnante. ou seja, a melhor palavra grávida para grávida é mesmo prenha e não grávida. e não me venham com o eufemismo "estado interessante".

sexta-feira, 1 de maio de 2015

balde

experiência três: a mesma piada do balde, agora só com adjetivos ( e também com vírgulas e a licença do jovem, aqui usado como adjetivo e substantivo).

velha, jovem, plácido amplo marejante, arenoso. líquidas ondulantes devorantes jovem. velha teimosa: onipotente! misericordioso! jovem querido, amado! ondulantes obedientes, jovem emergente arenoso. velha agradecida, razoável: onisciente! útil lúdico côncavo, esquecido?

sexta-feira, 24 de abril de 2015

tentativa

experimento dois: a mesma piada da avó, neto e balde, agora sem pronomes, verbos ou adjetivos.

a avó na praia, com o neto. neto em meio às ondas. vó: deus, por favor, o netinho de volta! menino outra vez, a salvo. avó, sem mais, para deus: senhor, e o baldinho?

terça-feira, 21 de abril de 2015

experimento

experimento 1: um dia sem pronomes.
para começar, uma piada sem pronomes pessoais: nem retos, nem oblíquos, nem possessivos.

a vó foi à praia levando o netinho, que foi engolido por uma onda. a velha implorou a deus: senhor, traga o netinho de volta, por favor. a onda veio e o menino ressurgiu, intacto. a avó, razoavelmente satisfeita, reclamou: tudo bem, deus, mas e o baldinho?

terça-feira, 14 de abril de 2015

diabo

por que deus em cima e o inferno em baixo? justo em baixo, onde ficam as raizes, as minhocas, os siris, as baleias, o magma, os movimentos tectônicos? é lá, em meio às minhocas nutridoras, que o diabo espeta seu tridente maléfico? por que não em cima, onde convulsionam os pernilongos?

sexta-feira, 10 de abril de 2015

não

não vou ir na não manifestação, porque o que se manifesta é aquilo que súbito se revela e não o que se arma metodicamente contra, aparelhando de medo o medo já semeado que, purificado em seu civismo, se auto-nomeia coragem. eu não vou ir no medo administrado.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

sexo

sexo basta amor não basta porque sexo é inteiro amor é metade. não bastar não basta e bastar basta e por isso sexo apraz e amor dói. mas o prazer que basta, de tanto bastar acaba não mais bastando porque ninguém quer tanto bastante. e a dor que não basta, de tanto não bastar se desgasta e então o sexo que basta reabastece a não bastância da dor.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

namoro

ele pediu que eu namorasse com ele e eu exultei. mas era pra fazer ciúmes na márcia, a mais bonita da série. aceitei mesmo assim. achei que o tempo o faria gostar de mim. não fez. três dias depois, ele desmanchou. a márcia não ficou enciumada e o falso namoro não serviu pra nada. foi no pátio, na saída da escola, no meio de uma multidão que se acotovelava. só eu ouvi o pedido. hoje me arrependo de ter aceitado, lamento não ter servido pra fazer ciúme. mas durante nosso breve namoro, assistindo a um jerrry lewis no cinema, aproveitei, me assanhei e sentei no colo dele. era a prova do namoro. foi um escândalo. bem feito.

sexta-feira, 27 de março de 2015

ovo

não lembro direito das palavras. alguma coisa como "para nascer é preciso quebrar o ovo" ou "quebrar a casca". eu tinha uns oito anos e estava descendo as escadinhas da portaria do prédio, com o demian aberto nas mãos. então li isso. fiquei parada na calçada da correa dos santos. então era preciso quebrar a casca? como eu faria isso? eu também precisaria quebrá-la? qual era a casca, qual o ovo? entrei num transe ontológico literário. não saí ainda.

segunda-feira, 23 de março de 2015

erro

quer errar? erre. a literatura, dama fácil, aceita tudo. mas que o erro seja o sonho impossível do acerto, a troça  da língua sobre os gabaritos, a necessidade urgente da regra ruir, o inconformismo das palavras assalariadas, a trilha dos viajantes exaustos ou curiosos.

domingo, 8 de março de 2015

fábula

então ela não amou seu filho assim que ele nasceu. estranhou aquele desconhecido. e passaram-se alguns meses e ela ainda não o amava. tinha sonhos ruins. amamentava, acompanhava os progressos e gostava quando, às vezes, ele parecia reconhecê-la. chorava por ela e ela vinha, pressurosa mas não incondicional. gostava daquela presença tão vizinha, mas não sentia um arrebatamento. um dia ele quase caiu. ela o salvou com certa ferocidade. estranhou. seria isso? segurou-o mais forte. ensaiou um abraço, como se o conhecesse de há muito e como se há muito não o visse. perguntou: está tudo bem? e, como ele não respondesse, ela mesma disse: está sim, está tudo bem.

terça-feira, 3 de março de 2015

moral

a palavra "dwell", em inglês, que eu sempre estranhei e que significa morar, é um exemplo da aplicação moral de um significado sobre seu efeito espacial e histórico. eu não estranhava à toa. "dwell" vem de desviar, levar para o caminho errado. como então, morar? de desviar, enganar, ela evoluiu para adiar, porque quem engana, adia. de adiar, surpreendente e contraditoriamente, para ficar por muito tempo, porque quem adia, vai ficando. e, finalmente, de ficar, para morar, porque quem fica, mora.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

triângulos

o pai, durante o shabat, fazia pequenos triângulos de papel e os colocava sobre o móvel, para não manchá-lo quando a cera das velas, acesas nos candelabros, derretesse. literatura é sobre isso. e não sobre dizer que o pai era cuidadoso, obsessivo ou sobre o amor que um filho sente ao lembrar desse gesto.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

nome

por que, em todos os tempos, em todas as culturas e em todos os lugares, nomeia-se? por que o nome determina tanto o ser, como sabemos nós, os nomeados? nomeia-se para que se possa chamar: "fulano! olha isso! venha aqui! cuidado! não faz assim! nós te homenageamos, fulano. eu te amo, meu fulano adorado. some daqui, seu fulano imbecil!" nomeia-se para que haja reputação e memória: "lembra do que fulano fez? miremo-nos no exemplo de fulano. fulano será nosso símbolo por gerações e gerações." nomeia-se para ninar: "dorme, meu fulaninho querido." nomeia-se para a vingança: "você pensa que eu vou esquecer, algum dia, do que você fez para fulano?" nomeia-se para que exista o tempo e a memória. mas, acima de tudo, nomeia-se para que cada um seja o outro de alguém.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

chá

a vida, disse o rabino estertorando, é uma xícara de chá. "a vida é uma xícara de chá, a vida é uma xícara de chá, a vida é uma xícara de chá!", repetiram todos os habitantes do vilarejo, de boca em boca, até chegar à taberna, onde um jovem, menos avisado sobre a santidade do rabino que morria, perguntou: "por que a vida é uma xícara de chá?' e todos, no sentido contrário da corrente, repetiram a pergunta: "mas por que a vida é uma xícara de chá? mas por que a vida é uma xícara de chá? mas por que a vida é uma xícara de chá?" até que a pergunta finalmente chegou ao rabino agonizante, feita por um discípulo cauteloso, que a segredou temerário: "rabino, por que a vida é uma xícara de chá?' "nu, então a vida não é uma xícara de chá!". e morreu.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

carnaval

oração pagã da carne, desprovida de culpa: que eduardo cunha, à luz da madrugada, e sozinho, sinta um comichão a acossá-lo, como que vindo de dentro e de trás, arrostando-se para a frente. que ele, com as calças do pijama arreadas, se dirija com fremência e ignorância ao vaso, onde, pasmo diante da anodinice de seu pintinho, forceje-o repetidas vezes para diante, premido por um como que frêmito, mas que nada, nada, a não ser uma baga viscosa, borbote do mofino badalhoco.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

quinhentos

anteontem fez dezenove anos que ele morreu, mas lá pelos anos setenta, a amiga chata, rica e metida disse uma vez: "hoje em dia quem não tem quinhentos mil dólares?". desde então, toda vez que um dos mendigos e fiscais que frequentavam a "oficina" (como ele chamava sua confecção de roupas femininas) vinha pedir dinheiro (fosse esmola ou propina), ele dava, mas não sem antes dizer: "hoje em dia quem não tem quinhentos mil dólares?"

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

benedito

tudo bem. mensalão, petrolão, água, luz, feliciano. mas como não amar um país, ou melhor, uma língua, que tem, entre muitas, palavras como sirigaita, comezinho, noves- fora, será o benedito, demais da conta e, sobretudo, pairando excelsa e inamovível no panteão das alegrias, prontinho da silva?

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

ferida

para quem, como eu, acreditava e amava o pt, o que está acontecendo agora é uma espécie de ferida narcísica, mais do que uma frustração política. é a dor de ver um sonho pessoal se desfazer. daí, imagino, a indignação humilhada, a impotência, o vazio. para quem, como vários amigos e familiares, nunca acreditou no pt, parece haver certa satisfação intimamente vingadora, uma superioridade discreta de quem diz "não falei, sua sonhadora?", "o mundo não é simples como você sempre quer pensar", "eu sim já sei como tudo é hipócrita e não tem como ser diferente". ou seja, nem os que acreditavam e nem os que não acreditavam estão fazendo alguma coisa com seu sonho desfeito ou seu pesadelo confirmado. tenho pensado que o necessário é agir com e na derrota do sonho, encarar a importância de viver politicamente sem um sonho, que talvez seja a melhor forma de ação, se não política, ao menos social. ainda amargo o narcisismo supurado, mas algo acena, no fundo da ferida, para uma realidade mais gregária.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

o

o excesso, a falta, a intensidade, o abridor de lata que não serve para canhotos, a militância, o sexo, a burrice, a ginástica, a aula que ficou aquém, os olhares, o truque, a salada com gorgonzola (ele falava gongorzola), o palito de dentes, o peso (não esse, o outro), o café, a casca, o dinheiro, a chatice, a teimosia, o olha isso, olha, olha, por favor, olha vai, o mais uma coisa, e mais uma coisa, a quantidade, o caminhãozinho, o elefante que eu não sei montar, a bicicleta, a noite que virá de qualquer jeito e os preços do carrefour, alguns centavos mais barato, meu deus, o cabide que lá custa onze reais, mas foi feito na china, e eu e o escravo, o cabide, o carrefour, o carrefour, meu deus, o carrefour.

domingo, 25 de janeiro de 2015

ingenuidade

me emociono, sem saber muito bem por quê, quando leio, num texto de lévinas, a frase: "não a ingenuidade, mas a inocência". vou atrás da origem de ingenuidade, que pensava ter a ver com "ingenuity", do inglês, que significa " engenho". nada a ver. ingenuidade vem de "genus", comum, e ingênuo é o homem nobre, incomum, que nasce livre porque é genuinamente melhor. puta merda. então foi por isso que me emocionei com o lévinas. o ingênuo é bom porque se crê congenitamente melhor. já "inocente" é, só e simplesmente, sem maldade.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

eu

o terceiro volume do romance "minha luta", de karl ove knausgard, começa se perguntando quem é o "eu" das fotos que guardamos da nossa infância. por que aquele "eu" é "eu"? se nos mostrassem a foto de outra criança, dizendo que aquele é "eu", também não poderia ser? o autor chega até a sugerir que tivéssemos, cada um, nomes diferentes para idades diferentes, porque, afinal de contas, nada, além do nome, nos identifica naquela foto. ser "eu", nessas condições, seria somente uma abstração. mas o que identifica o "eu" de agora? provavelmente, só o fato de que ele coincide com a enunciação atual da palavra "eu". esse "eu", assim como aquele, tampouco existe e não passa de dois sons, "e" e "u". por outro lado, karl ove, a covinha no queixo, a verruga na orelha, o olhar distraído, a coca cola no gargalo, um cílio torto, a blusinha de cambraia, a sola do sapato suja de cocô de cachorro, isso tudo é de quem, hein, karl ove? responde agora, quero ver!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

paz

quem visa aos fins e usa o meio como instrumento para chegar a eles esquece os sentidos do meio, que são inúmeros, processuais e mutantes. quem visa aos fins pode dizer que quer a paz, mas não pode e nem sabe querê-la, porque os fins não comportam a paz. porque o fim só tem um lado e para se chegar à paz é preciso ter muitos. a paz fica só no meio e não no fim.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

literatura

sabe quando, num desenho, o desenhista deixa uma parte vazia e a gente deduz, dela, o pedaço que está faltando? então. é disso que eu gosto.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

ovo

o ano n'ovo cresce bem devagar, como fazem as coisas que ficam nos ovos. por enquanto, ele ainda está clarinho, clarinho, quase branco, de uma transparência viscosa e pegagenta. o ano n'ovo acabou de ser concebido e parece meleca. logo ele começará a amarelecer, encorpar, liquefazer e suas partes vão começar a se distinguir, as fronteiras se delinear. no meio do processo, as fronteiras ficam bem claras. como são chatas essas fronteiras bem delimitadas do ano n'ovo. mas o que se há de fazer? é assim com tudo o que quer nascer. vai chegar uma hora, enfim, em que, de tão bem configuradas as formas, o ano n'ovo vai querer sair para fora da casca. e, pronto. lá se vai outro ano n'ovo de novo se preparar para virar passarinho. e a casca do ovo, quebrada, ficará vazia do ano, já velho, que partiu para fora. é o fado das cascas e dos anos, dirá alguém mais sabido. e outro alguém, mais perplexo, responderá: puxa vida, mas tudo sempre tem que ser assim?