sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

triângulos

o pai, durante o shabat, fazia pequenos triângulos de papel e os colocava sobre o móvel, para não manchá-lo quando a cera das velas, acesas nos candelabros, derretesse. literatura é sobre isso. e não sobre dizer que o pai era cuidadoso, obsessivo ou sobre o amor que um filho sente ao lembrar desse gesto.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

nome

por que, em todos os tempos, em todas as culturas e em todos os lugares, nomeia-se? por que o nome determina tanto o ser, como sabemos nós, os nomeados? nomeia-se para que se possa chamar: "fulano! olha isso! venha aqui! cuidado! não faz assim! nós te homenageamos, fulano. eu te amo, meu fulano adorado. some daqui, seu fulano imbecil!" nomeia-se para que haja reputação e memória: "lembra do que fulano fez? miremo-nos no exemplo de fulano. fulano será nosso símbolo por gerações e gerações." nomeia-se para ninar: "dorme, meu fulaninho querido." nomeia-se para a vingança: "você pensa que eu vou esquecer, algum dia, do que você fez para fulano?" nomeia-se para que exista o tempo e a memória. mas, acima de tudo, nomeia-se para que cada um seja o outro de alguém.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

chá

a vida, disse o rabino estertorando, é uma xícara de chá. "a vida é uma xícara de chá, a vida é uma xícara de chá, a vida é uma xícara de chá!", repetiram todos os habitantes do vilarejo, de boca em boca, até chegar à taberna, onde um jovem, menos avisado sobre a santidade do rabino que morria, perguntou: "por que a vida é uma xícara de chá?' e todos, no sentido contrário da corrente, repetiram a pergunta: "mas por que a vida é uma xícara de chá? mas por que a vida é uma xícara de chá? mas por que a vida é uma xícara de chá?" até que a pergunta finalmente chegou ao rabino agonizante, feita por um discípulo cauteloso, que a segredou temerário: "rabino, por que a vida é uma xícara de chá?' "nu, então a vida não é uma xícara de chá!". e morreu.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

carnaval

oração pagã da carne, desprovida de culpa: que eduardo cunha, à luz da madrugada, e sozinho, sinta um comichão a acossá-lo, como que vindo de dentro e de trás, arrostando-se para a frente. que ele, com as calças do pijama arreadas, se dirija com fremência e ignorância ao vaso, onde, pasmo diante da anodinice de seu pintinho, forceje-o repetidas vezes para diante, premido por um como que frêmito, mas que nada, nada, a não ser uma baga viscosa, borbote do mofino badalhoco.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

quinhentos

anteontem fez dezenove anos que ele morreu, mas lá pelos anos setenta, a amiga chata, rica e metida disse uma vez: "hoje em dia quem não tem quinhentos mil dólares?". desde então, toda vez que um dos mendigos e fiscais que frequentavam a "oficina" (como ele chamava sua confecção de roupas femininas) vinha pedir dinheiro (fosse esmola ou propina), ele dava, mas não sem antes dizer: "hoje em dia quem não tem quinhentos mil dólares?"

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

benedito

tudo bem. mensalão, petrolão, água, luz, feliciano. mas como não amar um país, ou melhor, uma língua, que tem, entre muitas, palavras como sirigaita, comezinho, noves- fora, será o benedito, demais da conta e, sobretudo, pairando excelsa e inamovível no panteão das alegrias, prontinho da silva?

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

ferida

para quem, como eu, acreditava e amava o pt, o que está acontecendo agora é uma espécie de ferida narcísica, mais do que uma frustração política. é a dor de ver um sonho pessoal se desfazer. daí, imagino, a indignação humilhada, a impotência, o vazio. para quem, como vários amigos e familiares, nunca acreditou no pt, parece haver certa satisfação intimamente vingadora, uma superioridade discreta de quem diz "não falei, sua sonhadora?", "o mundo não é simples como você sempre quer pensar", "eu sim já sei como tudo é hipócrita e não tem como ser diferente". ou seja, nem os que acreditavam e nem os que não acreditavam estão fazendo alguma coisa com seu sonho desfeito ou seu pesadelo confirmado. tenho pensado que o necessário é agir com e na derrota do sonho, encarar a importância de viver politicamente sem um sonho, que talvez seja a melhor forma de ação, se não política, ao menos social. ainda amargo o narcisismo supurado, mas algo acena, no fundo da ferida, para uma realidade mais gregária.