sexta-feira, 27 de março de 2015

ovo

não lembro direito das palavras. alguma coisa como "para nascer é preciso quebrar o ovo" ou "quebrar a casca". eu tinha uns oito anos e estava descendo as escadinhas da portaria do prédio, com o demian aberto nas mãos. então li isso. fiquei parada na calçada da correa dos santos. então era preciso quebrar a casca? como eu faria isso? eu também precisaria quebrá-la? qual era a casca, qual o ovo? entrei num transe ontológico literário. não saí ainda.

segunda-feira, 23 de março de 2015

erro

quer errar? erre. a literatura, dama fácil, aceita tudo. mas que o erro seja o sonho impossível do acerto, a troça  da língua sobre os gabaritos, a necessidade urgente da regra ruir, o inconformismo das palavras assalariadas, a trilha dos viajantes exaustos ou curiosos.

domingo, 8 de março de 2015

fábula

então ela não amou seu filho assim que ele nasceu. estranhou aquele desconhecido. e passaram-se alguns meses e ela ainda não o amava. tinha sonhos ruins. amamentava, acompanhava os progressos e gostava quando, às vezes, ele parecia reconhecê-la. chorava por ela e ela vinha, pressurosa mas não incondicional. gostava daquela presença tão vizinha, mas não sentia um arrebatamento. um dia ele quase caiu. ela o salvou com certa ferocidade. estranhou. seria isso? segurou-o mais forte. ensaiou um abraço, como se o conhecesse de há muito e como se há muito não o visse. perguntou: está tudo bem? e, como ele não respondesse, ela mesma disse: está sim, está tudo bem.

terça-feira, 3 de março de 2015

moral

a palavra "dwell", em inglês, que eu sempre estranhei e que significa morar, é um exemplo da aplicação moral de um significado sobre seu efeito espacial e histórico. eu não estranhava à toa. "dwell" vem de desviar, levar para o caminho errado. como então, morar? de desviar, enganar, ela evoluiu para adiar, porque quem engana, adia. de adiar, surpreendente e contraditoriamente, para ficar por muito tempo, porque quem adia, vai ficando. e, finalmente, de ficar, para morar, porque quem fica, mora.