terça-feira, 20 de dezembro de 2016

escudo

quando era professor de filologia, em basel, nietzsche pediu aos alunos que, durante as férias, lessem com atenção o trecho da odisséia em que é descrito o escudo de aquiles. na volta às aulas, ele perguntou a um dos alunos se ele havia lido o trecho e o aluno, temeroso, respondeu que sim, apesar de não havê-lo lido. nietzsche, então, pediu a ele que descrevesse o escudo. o aluno ficou quieto e nietzsche aguardou em silêncio durante dez minutos, o tempo que ele estimava necessário para que o escudo fosse descrito minuciosamente. ao final desse prazo, nietzsche voltou à aula, dizendo: agora, depois de ouvirmos a descrição perfeita do escudo de aquiles, podemos voltar à matéria normal.

domingo, 11 de dezembro de 2016

sábado, 26 de novembro de 2016

futuro

o celular me avisa que não tenho nenhum lembrete futuro. mas gostaria de tê-los. gostaria que o futuro me mandasse lembretes sobre como ele terá sido passado. que o futuro sentisse saudades de não ter acontecido ainda. que ele dissesse: não venha agora não, que por aqui as coisas estão complicadas. ou então o contrário: você não imagina como está bom por aqui, aguardo sua chegada ansioso. que ele indicasse o caminho mais longo para eu seguir até chegar nele. ou então que ele se tocasse da sua inexistência e entendesse que, quando ele chegar, ele não será nada. que ele saísse do aviso do celular e ficasse sossegado lá, sem me encher o saco.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

mundo

o mundo é um homem velho que está dormindo. logo logo ele acorda. acorda, mundo. vem uma criança novinha, passa a mão na sua cabeça, o mundo a ergue, sonolento, não entende onde está, que dia é, que horas são. esqueceu. pergunta à criança: em que lugar estou? ela responde: mundo, você é todos os lugares. mas qual é o dia? o dia é você mesmo. o mundo se espreguiça. não gostou de ser ele mesmo o tempo e o espaço. boceja. menina, você pode me fazer um favor? posso sim, mundo. quando der dez para as nove, de uma terça de manhã, você me acorda de novo? preciso tomar um remédio novo. mas hoje não, tá, por favor. hoje ainda vou dormir um pouco mais. a menina concordou.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

confiança

uma reação comum, quando apresento uma interpretação surpreendente de algum texto literário, é perguntar: "mas será que o autor pensou mesmo nisso?". acho estranho, para ser delicada. é um tipo de negação da própria surpresa, do espanto estético, da confiança na potência criativa. antes de entregar-se à credulidade, é melhor armar-se de desconfiança: será mesmo? mas em que mesmo a desconfiança ou a comprovação impossível de que o autor teria ou não teria pensado naquilo modificam o espanto interpretativo? em que reside a superioridade inútil de achar que, caso o autor não tenha pensado nesse efeito, a grandeza passa a ser menor? penso que é uma espécie de sub-produto, para o lado estético, do fetichismo hábil da descrença. como descrer é fácil! acreditem, se quiserem gostar de literatura. acreditem nas interpretações mais absurdas, se elas lhes parecerem convincentes, e garanto que serão mais felizes na confiança inútil da ignorância sobre as escusas ou lídimas intenções dos autores.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

janela

quando eu era pequena, gostava que, toda a noite, meu pai me contasse a mesma piada: o shlomo e o moishe iam dormir. o shlomo dizia pro moishe: fecha a janela, está muito frio lá fora! e o moishe respondia: mas e se eu fechar a janela, vai ficar mais quente lá fora? essa literalidade burra da piada, que me fazia rir tanto, repetidamente, me acompanha até hoje e me faz pensar se não foi ela, entre outras coisas, que me fez gostar tanto de literatura, um tipo de coisa que faz ficar mais quente lá fora.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

beijo

são muitas as tentativas de descobrir o que é que diferencia o humano dos outros animais. a história de que os humanos são os únicos que pensam é balela. os únicos que representam, também. escondem os mortos, idem. sugiro uma, talvez infalível: o beijo. o beijo que faz smack. o beijo na boca, de língua, demorado. o beijo roubado, na rua. o na bochecha, imanência da fraternidade. o na testa, de graça, bênção e cuidado. no pescoço, chupado. no umbigo, no pé, na mão, no seio, no pau, no nariz, esfregadinho. beijo de japonês, de judas, de freira, de morte, de moça, de paz, de sinhá. beijoqueiro, beija-flor, beijinho de coco, de bela adormecida. o beijo não nos salvará, porque ele não salva. ele será nossa marca do humano, quase encostando no bicho, tão perto dele que nos humaniza ainda mais e ainda distante, porque o smack e a língua prolongada sempre nos lembrarão de por que viemos ao mundo: para beijar.

sábado, 24 de setembro de 2016

caretice

necessidade de ordem é caretice. obsessão por resultados é caretice. desenvolvimento acima de tudo é caretice. dançar conforme a música é caretice. submeter-se às circunstâncias é caretice. conformar-se com o inevitável é caretice. achar que os fins justificam os meios é caretice. achar que deus dá o frio conforme o cobertor é caretice. pensar que deus ajuda quem cedo madruga é caretice. imaginar que o prazer é uma compensação pelo trabalho é caretice. acreditar que o só o esforço valoriza a conquista é caretice. dizer cada um com seus problemas é caretice. cada um por si e deus por todos é caretice. a caretice é uma doença e o remédio é desastrar-se.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

cu

amo palavrões: cu, buceta, caralho, bosta, merda, puta e suas derivações. concentram força, simbolismo e vitalidade e, ao mesmo tempo, conferem leveza e humor ao enunciado. "cu", por exemplo, seja em "vai tomar no cu", ou em "idiota é o teu cu", conjuga, em apenas duas letras, as ideias de segurança e de "não chega perto porque vou dar o troco". nesse sentido, "cu" está bem próximo de "caralho". já "merda" chega a imprimir à frase noções de lirismo, desamparo e pedido de ajuda. é só ouvir alguém dizer "merda" e sentir vontade de ajudar. com "bosta" ocorre algo semelhante. "puta" é altamente maleável e serve para elogios, reclamações, esquecimentos, tudo com alto teor de expressividade e afeto. palavrões são patrimônios da língua, sempre a postos para transformações, adaptações e novidades e sempre de forma sucinta e potente. vão sobreviver às palavras chatas, como "altissonante" e "de acordo" e o "fodido", coringa campeão, se deus quiser ainda enterrará o insuportável "ferrado".

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

suzi

meu cunhado trabalhava numa agência de publicidade que tinha a conta da k-suco. por isso ele conseguiu, clandestinamente, que eu ganhasse dois dos prêmios que vinham sendo oferecidos a quem encontrasse embalagens premiadas: uma boneca suzi e uma bola oficial de futebol. fui com minha mãe, de ônibus, até a fábrica da kibon, no morumbi. era bem longe do bom retiro, mas voltamos de lá com a boneca e a bola, que fez muito sucesso entre os meninos da classe, por ser oficial. eles vinham especialmente até minha casa para jogar com ela no quintal do prédio. da boneca eu não lembro nada. só da ida à fábrica e da bola, coisas que ainda estão aqui, ainda que vítreas.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

vertigem

as palavras como se tirasse água de um ovo pelo buraco de uma agulha. os sons como se agarrasse a luz de uma pedra. os ardidos como se contornasse as cordas vocais com a língua. as cores como se uma sabiá atravessasse o pacífico a nado. os abraços como se uma criança faminta soprasse um apito infinito e o mundo parasse, ouvindo-o. esse som, escutem, a espera acabou e seremos todos salvos, como se só ela, essa criança, nos lançasse para o sol.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

pelos

fui conferir meus pontos num sistema de prêmios chamados multiplus, que corresponde aos gastos no cartão de crédito. já tinha um número razoável e a tati disse que eu talvez pudesse conseguir um prêmio interessante. o resultado foi que eu tinha direito a um instrumento para tirar pelo do nariz. não sei como se chama esse objeto. não tenho pelos no nariz. mas penso que, finalmente, o capitalismo cumpriu sua função e disse a que veio. o que pode ser mais útil e essencial do que isso? tirar pelos do nariz ocupa o tempo e o corpo, ou seja, faz com que a pessoa se distraia de si, o que a leva ao despojamento da matéria, de tudo o que lhe pesa no espírito e no bolso. tirar pelos do nariz arranca a pessoa do frenesi de consumismo e alienação do mercado. tirar pelos do nariz faz com que as pessoas se tornem menos capitalistas. é o capitalismo, em sua essência, levando a sua auto-destruição. as profecias cumpridas de marx. não quis a coisa, não resgatei o prêmio. deixei acumular para, talvez, um descaroçador de azeitonas. e, depois, não queria ser eu a destruir a importância de movimentos como o occupy e as jornadas de junho de dois mil e treze.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

bode

todos os dias acordo para uma nova etimologia. não sei qual ela será. talvez claraboia, que é caminho claro ou enjoo, que vem de ódio. tanto quanto eu a procuro, ela me acha e, quando ela me chama, atendo. sou eu que estou sendo descoberta e encontro, em minhas origens, raizes que vêm do árabe e do japonês. vou folheando dicionários, comparando passados e adivinhando as derivações, concluindo que a etimologia é, tanto quanto uma ciência, também uma história, um caso e uma previsão conveniente da memória. por exemplo, filólogos supõem que tragédia venha de tragos, bode, mas isso não é uma certeza. penso: quero que seja o bode, pois assim o bode expiatório seria o trágico acima de tudo. e, como quero, assim será. minto a certeza do bode. traio os leitores e espero, pacificamente, que eles me perdoem ou esbravejem. vocês que nos adivinhem.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

gata

sabe por que minha gata é linda? porque ela não sabe que não sabe; porque ela sabe, sem que o saber tenha objeto; porque ela olha para as coisas como se as coisas fossem ela e ela fosse as coisas; porque agora, agora mesmo, é agora e esse agora fica completo quando olho nos olhos dela; porque a consistência do seu corpo carrega uma gata que coincide exatamente com os limites que ela desenha no espaço; porque ela me ama sem pensar que me ama, nem sabendo o que é amar; porque ela está além, e, por isso, aquém de alberto caeiro e de drummond; e até de e.e.cummings, que queria ter chegado nela; porque ela é igual a todos os gatos mas diferente de todos eles; porque ela é uma dama perto da minha cachorra, que, por sua vez, é uma vagabunda e é por isso que também amo ela; porque ela me explicou, um dia, o que era a elegância e eu não entendi muito bem, mas pelo menos agora tenho um modelo inatingível; porque ela tem um rabo que mexe de um jeito diferente para cada coisa e, finalmente, porque ela gosta muito de danoninho sabor morango.

domingo, 31 de julho de 2016

óbvio

escrevo porque quero reconhecer a obviedade do óbvio. escrevo porque quero desconhecer a obviedade do óbvio.

sábado, 23 de julho de 2016

vão

desorganizar os roteiros agradáveis do mesmo e especular as estrelas do nada abracadábrico do vão.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

nada

às vezes acho, sinto, que estou quase raspando no não nome, no não centro, no centro do quase nada, no nada do quase, até lá. mas, logo, então, resisto. retorno para o nome errado das coisas que são quase coisas, quase palavras, quase reais. fico aqui, onde se pode, por pouco, ainda fazer uma coisa, quase nada, pelo que não foi, não é, talvez seja. quem sabe lá, onde quase fui, que avistei, também desse, mas lá é tão longe, tão perto, não vou, não.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

meia

em português é menos vaidade, menos meias. em inglês, less vanity, fewer socks. como prefiro o português, em que vaidade e meias não se dividem em contáveis e não contáveis, como em inglês, em que se diz countable and uncountable nouns. quem disse que meias são mais contabilizáveis do que a vaidade? eu diria até que é o contrário. as meias é que são da ordem do abstrato, do conceitual e a vaidade está mais para o pedestre. mas prefiro mesmo é essa indistinção entre açúcar, amor, flocos de chocolate granulado e angústia. tudo menos.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

alguém

tudo está sempre em estado de coincidência, incidindo ao mesmo tempo. para que se torne uma espécie de milagre, basta que alguém as reúna numa história. as coincidências são o amor de alguém por uma narração.

terça-feira, 28 de junho de 2016

ovo

o rapaz me perguntou: noemi, o que você aprendeu na vida? não sabia responder. era como se não tivesse aprendido nada, nunca. quis que fosse assim, por um pouco. moço, nunca aprendi nada não. aliás, teve duas coisas, faz menos de uma semana: pica-paus podem voar de frente, de costas e até de ponta-cabeças e se um ovo boiar num recipiente com água, é porque ele está passado.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

exceção

beira o ridículo o argumento de abrir um precedente, quando alguém pede que se abra uma exceção. "olha, eu até gostaria, mas não é certo abrir um precedente, porque daí todos vão querer". que papo furado! na verdade, a pessoa não quer e está usando uma desculpa, porque abrir um precedente é praticamente sinônimo de exceção e as exceções existem para serem abertas, senão não o seriam. e abrir exceções, ou precedentes, é uma das coisas mais humanistas e generosas que se pode fazer, porque levam em consideração a circunstância, a individualidade e a necessidade do outro, sendo que a regra desconsidera tudo isso. e não é verdade que, depois de aberta uma precedência, todos virão atrás, porque aquelas circunstâncias, que justificaram a exceção, não se repetirão. abram exceções, gente, pelamor!

domingo, 12 de junho de 2016

clãopsia

não quero que meus livros sejam reconhecidos como romances, contos, crônicas, poemas, memórias. quero chamá-los de: coisos, aporveitamentos (assim errado mesmo) ou então clãopsias. e mais: quero uma categoria nos concursos para clãopsias, prateleiras nas livrarias e críticos especializados. ou melhor: livrarias especializadas em clãopsias, cadeiras universitárias, professores, público, viagens internacionais. tudo onde todas essas pessoas falem só o que quiserem, palavras esquisitas, novas, inventadas e os prêmios sejam ou muito dinheiro, muito mesmo ou então nada: uma entrada para o playcenter, um vale-compras no shopping eldorado, um bumerangue. e todos se entenderão porque não haverá palavras específicas para as pessoas se entenderem e todas as palavras serão possíveis, inclusive "ao nível de", "eu enquanto pessoa" e "o quid da coisa".

sábado, 4 de junho de 2016

etiqueta

etiqueta é a pequena ética e, por isso mesmo, existe nela algo de anti-ético, já que a ética não combina com coisas pequenas. a etiqueta do facebook, não declarada e, em muitos casos, extremamente anti-ética, me irrita e cansa. prefiro, na medida do possível, curtir e comentar os posts de que gosto, independentemente da pessoa que o postou. mas isso, fui aprendendo, é perigoso. espero ansiosamente que determinadas pessoas curtam algumas coisas que posto, já que imagino que o conteúdo tem muito a ver com ela, mas é em vão, porque a pessoa é orgulhosa e não abre mão de alguma etiqueta que ela mesma inventou e que ignoro. quer saber, etiqueta? vai tomar banho.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

carícia

pegue uma frase qualquer, extraída de um ensaio filosófico. digamos, essa: "a capacidade de receber representações dos objetos segundo a maneira como eles nos afetam, denomina-se sensibilidade", de kant. em seguida, inicie um processo lento de carícia semântica. acaricie as palavras "capacidade", "receber"e "representações" , fazendo movimentos circulares com os dedos polegar e indicador sobre cada uma delas, de modo a amaciá-las até que elas fiquem tenras. reserve. depois de cerca de cinco minutos, você verá que elas terão se transformado em "girassóis amarelos" ou ainda "gravata florida". passe agora para as palavras restantes: "objetos", "maneira", "afetam" e "sensibilidade". dessa vez, aperte suavemente as consoantes, girando os dedos na horizontal e na vertical, até que você sinta cederem a resistência e a rigidez, dando lugar a um relaxamento total, quando então as palavras passam a topar qualquer parada, até virarem, praticamente, literatura. vá dormir. quando você acordar, surpresa: encontrará palavras calmas, descansadas, dizendo coisas desse tipo: "a pintura de girassóis amarelos me faz um bem danado" ou "aquela música do jorge benjor, caceta!"

sexta-feira, 20 de maio de 2016

amor

quer escrever uma cena de amor? faça assim: diga que um menino de nove anos acorda todo dia de manhã bem cedo para ir à escola. ele desce os degraus da escada de sua casa de quatro em quatro, sai de casa, anda uma quadra e toca a campainha da casa de seu amigo, pierre. é uma casa muito pobre, de um único quarto, que o menino divide com a mãe e mais dois tios, ferroviários. pierre está sempre atrasado e sai do quarto correndo, segurando uma tigela de onde tenta engolir correndo o café com leite que sua mãe preparou. todos os dias, sem exceção, a mãe o vê nessa pressa excitada e, sorrindo afobada, diz: "assopre forte, que esfria mais rápido".
(inspirado em cena de "o primeiro homem", de albert camus)

quarta-feira, 11 de maio de 2016

psicanálise três.

digamos que um psicanalista descobre, na fala de um paciente, um lapso que trai sua aparente generosidade. ele descobre, no fundo de uma fala inocente e humilde, um desejo narcísico e vaidoso. a partir desse momento ele passa a revelar, ao paciente, que sua bondade não é mais do que um disfarce útil e repressivo de um narcisismo mal resolvido. me pergunto: e daí? isso não pode revelar, na verdade, um julgamento moral do inconsciente alheio, por parte do psicanalista? não pode revelar mais sobre quem fala do que sobre quem sofre o diagnóstico? não seria toda generosidade o disfarce de um narcisismo enrustido? isso não seria uma forma madura de lidar com o problema, se é que se trata de um problema? o psicanalista pode acusar o inconsciente do paciente? não se corre um risco aí ou se trata simplesmente de uma prática simplista da psicanálise e o psicanalista é ruim?

terça-feira, 3 de maio de 2016

banana

no rio negro tem um macaquinho com um filhotinho nas costas. estou aqui, tão cansada, meu deus. mas o macaquinho está lá. conforto passageiro, eu sei, minha virgem santa. mas por ser passageiro é bom. o macaquinho é passageiro. a virgem santinha também é. e eu e meu cansaço. filhotinho, você vai crescer e um dia, outra vez, vou te dar banana.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

falcão selvaaaaaageeeeeem

matisse, bach, caetano veloso, uma montanha, um cornetto na padaria, uma cerveja, a cachorra e o pelo dela, ainda o rabo dela abanando amoroso, ler patti smith, comprar um terreno caríssimo na praia, que não vale nada, mas alegra, como ela fez, dar cinquenta reais para alguém e ficar mais leve, comprar um bilhete inútil de loteria, cantar a música antiga do lenine desafinado: "o falcão selvaaaaageeem, o falcão selvageeeeem". tudo isso não é fugir. ou melhor, é fugir sim. é distrair-se, e distrair-se é sair dos trilhos. e sair dos trilhos é voltar para o mundo. porque o mundo é uma bola e, como disse o desafinado heráclito, pantha rei. por isso, fujo. fujo para voltar ao lugar certo.

sábado, 16 de abril de 2016

etimologia

quase me arrastando de tristeza, vou ficar com a etimologia. ela descobre vínculos entre o que é aparentemente separado; reconhece o igual no diferente e o diferente no igual; estabelece pontes entre o passado e o presente; desdobra o presente em novidades; recarrega as palavras de concretude e proximidade com as coisas; inventa possibilidades e arma mentiras plausíveis, que às vezes se tornam verdades alvissareiras. ela não redime, porque o que redime também mata. mas ela alegra e se oferece, gratuita. é a puta que eu não consigo ser.

domingo, 3 de abril de 2016

manu

no dia em que soube que a querida manu morreu, estava caminhando na rua pinheiros, triste, quando uma mendiga me parou e disse algo de que eu só pude ouvir o final: "dois reais". tirei quatro da carteira e ia dando a ela, quando ela disse: "então me deixe lhe dar suas sementes. essa aqui é de fibra de coco e essa outra é de cupuaçu. elas estão secas, parece, mas se a senhora umedecer, elas vão brotar e germinar. essa aqui, de coco, lembra uma, como é que chama, uma orquídea. é uma vagina lilás". fiquei olhando. "a senhora é de onde?", ela perguntou. "de são paulo mesmo". "mas mora onde?'. "no butantã". ela me olhou, expressando algo que parecia pena. também tenho pena de mim, uma passante burra que não entende nada. mas, naquele momento, pensei que o mundo contém a manu e que a manu o contém. que somos um e somos muitos, sempre os mesmos e sempre outros. que o tempo voltou para trás e foi para a frente e a manu é a mulher, a mulher é a semente e que é só umedecer, porque vai germinar. uma vagina lilás, uma orquídea, nossa manu, eu e você,

terça-feira, 29 de março de 2016

migalha

não era mais do que o sol, do que a lua ou do tamanho de mil manadas de elefantes. mas era mais infinito do que o micróbio da caca do nariz da formiga; do que o grão de areia dentro do menor ínfimo folículo da narina da abelha; do que a mínima partícula do pó no interstício do buraco do umbigo; do que a reles insignificância de uma migalha nos restos do pão comido.

sábado, 19 de março de 2016

chave

observe bem: uma chave, por exemplo, quantos lados tem? observou? quantos? falou dois? está errado. quatro? seis? daquela, com várias reentrâncias e saliências. doze? é sempre par? pode ser que seja ímpar. e vista a partir do furo? aquele, de enfiar o chaveiro? e a partir do lado de dentro da fechadura?

terça-feira, 8 de março de 2016

agenda

num mercado de pulgas, em berlim, comprei uma agendinha antiga. agora, folheando-a, vejo que é de mil novecentos e trinta e dois, e pertenceu a uma mulher chamada ethel hechel, ou heckel. ela coloca o endereço e, no google streets, vejo a rua e o prédio em que ela provavelmente morou. sua letra é tão delicada e ela escreve poucas coisas. nunca poderia imaginar que, oitenta anos mais tarde, estaria nas mãos de uma brasileira, em são paulo.
quando eu morrer, por favor, alguém venda minhas agendas para um mercado de pulgas, uma benedito calixto, para que, daqui a oitenta anos, uma bailarina das ilhas fiji, de visita a são paulo, compre-a e, lá no pacífico, nas máquinas de então, veja minha casa por um holograma pluridiomensional, meu tapetinho de banheiro, minha xícara de asa quebrada e fique se perguntando se eu fui ou não ao médico marcado para o dia oito de outubro.

quarta-feira, 2 de março de 2016

sacola

prestes a completar cinquenta e quatro, não sinto vontade de ser jovem outra vez. e quando penso na juventude, o que me dá muita preguiça, acima de tudo, são as sacolas. filhos pequenos implicam em muitas sacolas: para fraldas, roupinhas extras, comidinhas e um arsenal de equipamentos. além delas, é preciso carregar a própria bolsa, sempre muito cheia quando se é jovem. nas viagens também havia muitas delas, com sleepings, coisas que não couberam na mochila e improvisações de última hora. para a faculdade também eram muitas, com os livros novos, os cadernos inumeráveis e as roupas dos amigos. agora não tenho sacolas, quase, e vou razoavelmente leve para os cinquenta e cinco.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

aborto

aborto não é morte. aborto é a vida da mulher. o aborto aborta células. se um conjunto de células é vida, imagine matar um inseto. seria punível por assassinato. ah, mas insetos não têm alma. ah, mas nós vivemos em um estado laico, que não determina mais quem tem alma ou não. se a mulher acha que um punhado de células tem alma, que não aborte. não abortar não é proibido. mas deixe que a mulher que não pensa assim, porque vivemos num estado laico, aborte. essa mulher, e ponho minha mão no fogo em noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos casos, não gostaria de abortar, se está abortando, é porque precisa, não importa o motivo. e se ela determinou que precisa, é porque a vida que este embrião teria, porque ainda não tem, seria infeliz. o aborto é impedir uma vida infeliz e não a retirada de uma vida. ou melhor, duas vidas infelizes. ou melhor, muitas. proibir o aborto é que é condenar mulheres ao assassinato. de si mesmas.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

cautela

para que "o qual"? trata-se do pronome relativo mais metido e inútil da língua. "gosto de sorvete, o qual posso comprar no supermercado". "vi a moça a qual não gosta de cinema". tudo facilmente substituível pelo simples, funcional, humilde e bonito "que". por favor, parem de usar "o qual", "a qual", e, ainda pior, "os quais" e "as quais". "do qual" ainda vai lá, mas com cautela.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

estacionamento

sou um santinho dentro de um altar e olho para as pessoas que rezam para mim. pedem milagres, curas, bênçãos, casamentos, a pessoa amada, chuva e vitória. prosperidade também. mas queria dizer a todos vocês, se possível, que, para essas causas, procurassem os santos aí do lado, porque eu acabei me especializando em vagas de estacionamento. se vocês quiserem lugar para estacionar, podem contar comigo, eu ajudo e garanto, no mínimo, duas vagas por semana, em lugares difíceis como vila madalena ou higienópolis. garanto ausência de guardadores ou, no pior dos casos, bastante trocado na carteira. mas cura, não. cura é com o aquele santo maior, o de madeira. eu sou só de plástico, vagabundo, e, depois desses anos todos, acabei me profissionalizando. inclusive, aceito gorjetas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

aguardo

prefiro aguardar a esperar. a espera é lenta, tem um objeto específico, que provavelmente demora a chegar, atrasa e nos deixa nervosos, raivosos e inseguros. já aguardar, não. aguarda-se sem saber o quê. aguarda-se porque a vida passa, porque houve o passado e haverá o inesperado, ou melhor, o inaguardado, o que não se guardou que ocorrerá e, quando menos se aguarda, surpresa, ele vem e o aguardante se desguarnece e recebe o acontecimento com acolhimento e vontade. já o esperador, coitado, quando vem o que se esperava, baixa os ombros e se conforma, triste, que a coisa chegou, mas atrasada.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

garota

lester young, conhecido como saxofonista, conta que deixou de tocar bateria porque ele demorava muito tempo para desmontar os instrumentos e, quando terminava, as garotas já tinham ido embora. kafka também, numa carta a felice bauer, diz que o motivo mais importante para ele escrever era mesmo conquistar as garotas. cada um tem sua garota. a minha, acho que são os garotos.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

disco

ontem, na chuva que nos pegou desprevenidos e com pressa, sem guarda-chuva e no caminho para um encontro, vi uma mulher sentada na calçada, segurando no colo a filha pequena, estendida como se morta. negras as duas. a mãe chorava muito. parei. a pressa e a chuva chamavam. olhei, ela olhou. continuei.
o que me faz pensar nela agora, não dormir? culpa? dever? era uma cena teatral? arrependimento? por que não dei nem dez reais? mudaria alguma coisa?
a amiga disse que o rio de janeiro é um disco arranhado.
e daí?
o que importa o que senti, o que sinto?
por que não dei dez reais?
o que adianta essa briga interna?
teoria? prática? literatura?
o que tem ela a ver com minhas perguntas?
qual o tamanho do vazio, o colo perdido dos monstros que se escondem, para escutá-los?

sábado, 9 de janeiro de 2016

mala

eles nunca fazem uma mala só para os dois. sempre viajam com malas separadas. ela explicou: se já é tão difícil e a gente passa anos tentando mudar a si mesmo, quanto mais mudar o outro e ele é muito bagunçado. dá para conviver? então a gente convive. agora, mala junto já é demais.