terça-feira, 29 de março de 2016

migalha

não era mais do que o sol, do que a lua ou do tamanho de mil manadas de elefantes. mas era mais infinito do que o micróbio da caca do nariz da formiga; do que o grão de areia dentro do menor ínfimo folículo da narina da abelha; do que a mínima partícula do pó no interstício do buraco do umbigo; do que a reles insignificância de uma migalha nos restos do pão comido.

sábado, 19 de março de 2016

chave

observe bem: uma chave, por exemplo, quantos lados tem? observou? quantos? falou dois? está errado. quatro? seis? daquela, com várias reentrâncias e saliências. doze? é sempre par? pode ser que seja ímpar. e vista a partir do furo? aquele, de enfiar o chaveiro? e a partir do lado de dentro da fechadura?

terça-feira, 8 de março de 2016

agenda

num mercado de pulgas, em berlim, comprei uma agendinha antiga. agora, folheando-a, vejo que é de mil novecentos e trinta e dois, e pertenceu a uma mulher chamada ethel hechel, ou heckel. ela coloca o endereço e, no google streets, vejo a rua e o prédio em que ela provavelmente morou. sua letra é tão delicada e ela escreve poucas coisas. nunca poderia imaginar que, oitenta anos mais tarde, estaria nas mãos de uma brasileira, em são paulo.
quando eu morrer, por favor, alguém venda minhas agendas para um mercado de pulgas, uma benedito calixto, para que, daqui a oitenta anos, uma bailarina das ilhas fiji, de visita a são paulo, compre-a e, lá no pacífico, nas máquinas de então, veja minha casa por um holograma pluridiomensional, meu tapetinho de banheiro, minha xícara de asa quebrada e fique se perguntando se eu fui ou não ao médico marcado para o dia oito de outubro.

quarta-feira, 2 de março de 2016

sacola

prestes a completar cinquenta e quatro, não sinto vontade de ser jovem outra vez. e quando penso na juventude, o que me dá muita preguiça, acima de tudo, são as sacolas. filhos pequenos implicam em muitas sacolas: para fraldas, roupinhas extras, comidinhas e um arsenal de equipamentos. além delas, é preciso carregar a própria bolsa, sempre muito cheia quando se é jovem. nas viagens também havia muitas delas, com sleepings, coisas que não couberam na mochila e improvisações de última hora. para a faculdade também eram muitas, com os livros novos, os cadernos inumeráveis e as roupas dos amigos. agora não tenho sacolas, quase, e vou razoavelmente leve para os cinquenta e cinco.