quarta-feira, 24 de agosto de 2016

vertigem

as palavras como se tirasse água de um ovo pelo buraco de uma agulha. os sons como se agarrasse a luz de uma pedra. os ardidos como se contornasse as cordas vocais com a língua. as cores como se uma sabiá atravessasse o pacífico a nado. os abraços como se uma criança faminta soprasse um apito infinito e o mundo parasse, ouvindo-o. esse som, escutem, a espera acabou e seremos todos salvos, como se só ela, essa criança, nos lançasse para o sol.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

pelos

fui conferir meus pontos num sistema de prêmios chamados multiplus, que corresponde aos gastos no cartão de crédito. já tinha um número razoável e a tati disse que eu talvez pudesse conseguir um prêmio interessante. o resultado foi que eu tinha direito a um instrumento para tirar pelo do nariz. não sei como se chama esse objeto. não tenho pelos no nariz. mas penso que, finalmente, o capitalismo cumpriu sua função e disse a que veio. o que pode ser mais útil e essencial do que isso? tirar pelos do nariz ocupa o tempo e o corpo, ou seja, faz com que a pessoa se distraia de si, o que a leva ao despojamento da matéria, de tudo o que lhe pesa no espírito e no bolso. tirar pelos do nariz arranca a pessoa do frenesi de consumismo e alienação do mercado. tirar pelos do nariz faz com que as pessoas se tornem menos capitalistas. é o capitalismo, em sua essência, levando a sua auto-destruição. as profecias cumpridas de marx. não quis a coisa, não resgatei o prêmio. deixei acumular para, talvez, um descaroçador de azeitonas. e, depois, não queria ser eu a destruir a importância de movimentos como o occupy e as jornadas de junho de dois mil e treze.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

bode

todos os dias acordo para uma nova etimologia. não sei qual ela será. talvez claraboia, que é caminho claro ou enjoo, que vem de ódio. tanto quanto eu a procuro, ela me acha e, quando ela me chama, atendo. sou eu que estou sendo descoberta e encontro, em minhas origens, raizes que vêm do árabe e do japonês. vou folheando dicionários, comparando passados e adivinhando as derivações, concluindo que a etimologia é, tanto quanto uma ciência, também uma história, um caso e uma previsão conveniente da memória. por exemplo, filólogos supõem que tragédia venha de tragos, bode, mas isso não é uma certeza. penso: quero que seja o bode, pois assim o bode expiatório seria o trágico acima de tudo. e, como quero, assim será. minto a certeza do bode. traio os leitores e espero, pacificamente, que eles me perdoem ou esbravejem. vocês que nos adivinhem.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

gata

sabe por que minha gata é linda? porque ela não sabe que não sabe; porque ela sabe, sem que o saber tenha objeto; porque ela olha para as coisas como se as coisas fossem ela e ela fosse as coisas; porque agora, agora mesmo, é agora e esse agora fica completo quando olho nos olhos dela; porque a consistência do seu corpo carrega uma gata que coincide exatamente com os limites que ela desenha no espaço; porque ela me ama sem pensar que me ama, nem sabendo o que é amar; porque ela está além, e, por isso, aquém de alberto caeiro e de drummond; e até de e.e.cummings, que queria ter chegado nela; porque ela é igual a todos os gatos mas diferente de todos eles; porque ela é uma dama perto da minha cachorra, que, por sua vez, é uma vagabunda e é por isso que também amo ela; porque ela me explicou, um dia, o que era a elegância e eu não entendi muito bem, mas pelo menos agora tenho um modelo inatingível; porque ela tem um rabo que mexe de um jeito diferente para cada coisa e, finalmente, porque ela gosta muito de danoninho sabor morango.