segunda-feira, 31 de outubro de 2016

confiança

uma reação comum, quando apresento uma interpretação surpreendente de algum texto literário, é perguntar: "mas será que o autor pensou mesmo nisso?". acho estranho, para ser delicada. é um tipo de negação da própria surpresa, do espanto estético, da confiança na potência criativa. antes de entregar-se à credulidade, é melhor armar-se de desconfiança: será mesmo? mas em que mesmo a desconfiança ou a comprovação impossível de que o autor teria ou não teria pensado naquilo modificam o espanto interpretativo? em que reside a superioridade inútil de achar que, caso o autor não tenha pensado nesse efeito, a grandeza passa a ser menor? penso que é uma espécie de sub-produto, para o lado estético, do fetichismo hábil da descrença. como descrer é fácil! acreditem, se quiserem gostar de literatura. acreditem nas interpretações mais absurdas, se elas lhes parecerem convincentes, e garanto que serão mais felizes na confiança inútil da ignorância sobre as escusas ou lídimas intenções dos autores.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

janela

quando eu era pequena, gostava que, toda a noite, meu pai me contasse a mesma piada: o shlomo e o moishe iam dormir. o shlomo dizia pro moishe: fecha a janela, está muito frio lá fora! e o moishe respondia: mas e se eu fechar a janela, vai ficar mais quente lá fora? essa literalidade burra da piada, que me fazia rir tanto, repetidamente, me acompanha até hoje e me faz pensar se não foi ela, entre outras coisas, que me fez gostar tanto de literatura, um tipo de coisa que faz ficar mais quente lá fora.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

beijo

são muitas as tentativas de descobrir o que é que diferencia o humano dos outros animais. a história de que os humanos são os únicos que pensam é balela. os únicos que representam, também. escondem os mortos, idem. sugiro uma, talvez infalível: o beijo. o beijo que faz smack. o beijo na boca, de língua, demorado. o beijo roubado, na rua. o na bochecha, imanência da fraternidade. o na testa, de graça, bênção e cuidado. no pescoço, chupado. no umbigo, no pé, na mão, no seio, no pau, no nariz, esfregadinho. beijo de japonês, de judas, de freira, de morte, de moça, de paz, de sinhá. beijoqueiro, beija-flor, beijinho de coco, de bela adormecida. o beijo não nos salvará, porque ele não salva. ele será nossa marca do humano, quase encostando no bicho, tão perto dele que nos humaniza ainda mais e ainda distante, porque o smack e a língua prolongada sempre nos lembrarão de por que viemos ao mundo: para beijar.